O Homem Do Meio-Termo
O Homem Do Meio-Termo
Helena Ferreira Santos Lopes
Gao Wenqian.
Zhou Enlai: The Last Perfect Revolutionary.
Nova York, Public Affairs, 2007, 345 páginas
«Quando examinava o papel que Zhou Enlai representara na Revolução Cultural,
Deng -Xiaoping observou: Sem o Primeiro-Ministro, a Revolução Cultural teria
sido bem pior. E sem o Primeiro-Ministro, a Revolução Cultural não se teria
arrastado por tanto tempo» (p. 162). Esta ambivalência da actuação política de
Zhou Enlai serve de base a uma recente biografia daquele que foi o primeiro-
ministro chinês entre 1949 e 1976. Figura admirada mas algo enigmática, Zhou
Enlai mereceu comentários entusiasmados de Henry Kissinger ' que o descreveu em
Diplomacia como «o administrador elegante, encantador e brilhante» ' e de André
Malraux, que nas suas memórias o apelidou de perfeita encarnação do sábio
confucionista. Na China, Zhou permanece uma das figuras mais intocáveis da
história da República Popular (rpc), daí o subtítulo da obra The Last Perfect
Revolutionary, remetendo para uma ideia que se pretende, se não rebater, pelo
menos matizar.
A história da feitura desta biografia daria ela própria um livro digno de
interesse. Gao Wenqian, filho de dois membros do Partido Comunista Chinês (pcc)
vítimas de purgas, autodidacta que conseguiu um lugar na Direcção Central de
Investigação Documental encarregue de redigir um estudo biográfico de Zhou
Enlai, viu-se obrigado a deixar a China após ter apoiado os protestos pró-
democracia em Tiananmen em 1989. O produto do seu trabalho, uma investigação
onde tivera acesso a fontes classificadas do pcc, foi transferido por partes
para os Estados Unidos, país de onde é natural a mulher do autor. Em 1992, Gao
Wenqian emigrou para os Estados Unidos e conseguiu um lugar no John King
Fairbank -Center for East Asian Research em Harvard, onde começou a escrever o
que resultaria na versão chinesa de Zhou Enlai's Later Years, banido na China
após a sua publicação e que, em 2007, viu a luz do dia nesta versão em inglês
adaptada da original, sem algumas passagens relativas aos meandros da política
interna chinesa mas com o acrescento de toda uma primeira parte que cobre os
anos iniciais daquele que foi o ministro dos Negócios Estrangeiros e primeiro-
ministro da rpc durante décadas.
Nos últimos anos têm surgido algumas biografias de personalidades políticas
chinesas, como Generalíssimo: Chiang Kai-shek and the China He Lost, de
Jonathan Fenby, ou o polémico Mao: The Unknown Story, de Jung Chang e Jon
Halliday. Zhou Enlai já merecera outros estudos biográficos, que oscilaram
entre a apologia e a crítica. Gao Wenqian parece por vezes tomar o primeiro
caminho, mas firmar tal sentença será precipitado. A análise crítica do autor
sobe de tom nos capítulos dedicados à Revolução Cultural, que ocupam uma parte
significativa da segunda metade do livro. É aí que a sua tese é enunciada mais
claramente: apesar de toda a inteligência e know-how político de Zhou Enlai,
sem o seu apoio Mao não teria ido tão longe na Revolução Cultural.
ACTOR DE CENAS-CHAVE
Nos seus tempos de juventude, Zhou Enlai integrara um grupo teatral na
prestigiada Escola Secundária de Nankai, e não surpreende que o seu talento de
actor lhe tenha sido útil ao longo da vida. Uma vida cheia de cenas-chave no
que respeita à história da China. Um desses momentos foi certamente a visita de
Richard Nixon à rpc em 1972, que abriu caminho para o restabelecimento de
relações diplomáticas entre os Estados Unidos e aquele país, interrompidas com
a vitória dos comunistas em 1949.
Ao invés de iniciar o livro pelo começo da vida de Zhou Enlai ' embora se siga
depois uma ordem cronológica dos acontecimentos ', o autor optou por um
primeiro capítulo dedicado precisamente à visita de Nixon à China, para o
sucesso da qual o papel de Zhou foi indispensável. Preferiu mostrar o pico de
uma carreira (a visita de Nixon é considerada «o auge da carreira de Zhou
Enlai» [pp. 16-17]), para depois enquadrar essa mesma vida no quadro das
mudanças políticas da China do século xx. Não o fez com o grau de importância
que Jonathan Spence atribuiu ao contexto no seu Mao, sendo que aqui o sujeito
focado detém a prevalência, mas é possível revisitar pelo percurso de Zhou toda
uma história do século xx chinês, dos últimos tempos do decrépito Império ao
fervilhante digladiar de forças no tempo da República, anos formadores de
muitos dos que viriam a ocupar lugares de topo no pcc. É aqui que se agrupam os
capítulos dedicados à juventude de Zhou Enlai e ao seu progressivo empenho na
causa revolucionária como activista estudantil (foi uma das figuras de proa do
Movimento de 4 de Maio e fundador do grupo clandestino misto Sociedade do
Ressurgimento em 1919), a sua educação no Japão e, depois, em França, onde
contribuiu para organizar grupos de estudantes e células comunistas, bem como o
seu proeminente papel nas relações com os nacionalistas, servindo de
intermediário entre estes e os comunistas durante a guerra civil, e os
primeiros contactos com Mao.
A partir do capítulo v o paralelo entre Zhou e Mao ganha destaque, denotando-se
desde os anos vinte do século passado, segundo o autor, uma tendência do
primeiro para controlar o segundo, que se perpetuaria até à morte de Zhou. Isto
apesar de Zhou, no final daquela década, ter ocupado posições superiores a Mao
na hierarquia do pcc, algo tão mais impressionante quando se ganha a real
consciência da conformação de Zhou a um papel subalterno ao «Grande Timoneiro»
nas décadas posteriores.
Como ministro dos Negócios Estrangeiros da China, cargo que ocupou de 1949 a
1958, Zhou foi a voz da rpc no plano internacional. Contudo, as suas visitas de
Estado e a sua intervenção, por exemplo, nos assuntos políticos asiáticos, são
completamente subalternizadas, ou mesmo omissas, neste trabalho que privilegia
as vicissitudes da política interna chinesa.
O SERVO FIEL E HUMILHADO
Em todo o livro emerge a ideia de Zhou como um equivalente moderno da figura do
funcionário imperial, imbuído das virtudes confucionistas de serviço ao
imperador, um homem moderado, capaz de manter alguma ordem no caos semeado por
Mao. «Alguém tinha de segurar o forte e o país. Zhou era indispensável. Nesse
sentido, ele representava o papel do letrado-confucionista, uma tradição de
serviço nacional que, em conjunto com o sentido de lealdade como ministro do
seu imperador influenciou fortemente a sua visão política» (p. 166). Mao e
Zhou são caracterizados quase como antípodas complementares: «Zhou acreditava
no meio-termo ' o derradeiro ideal confucionista. Se Mao era por natureza uma
personalidade fracturante e provocadora, Zhou era o diplomata, superiormente
ponderado, subtil, encantador» (pp. 64-65).
Boa parte dos capítulos da segunda metade do livro dedica-se ao papel que Zhou
desempenhou durante a Revolução Cultural. O autor imputa-lhe alguma
responsabilidade no apoio a Mao Zedong, que garantiu a este a lealdade de
alguns quadros mais antigos do partido, do Governo e do Exército que estimavam
o primeiro- -ministro. Mas também muitas linhas são empregues para provar como
Zhou tentava minorar os efeitos das ideias destruidoras de Mao. O papel de Zhou
foi, várias vezes, o de um «agente duplo». Por um lado, a sua aprovação foi
determinante para a purga de algumas personalidades, nomea-damente de Lin Biao,
o sucessor de Mao caído em desgraça que veio a morrer num mal explicado
acidente de avião quando fugia, provavelmente para a União Soviética. Por
outro, o autor não deixa de referir também aqueles para cuja «salvação» a acção
de Zhou Enlai foi indispensável, como Song Qingling, a viúva de Sun Yat-sen.
Foi também durante os anos da Revolução Cultural que o sempre fiel Zhou mereceu
os ataques mais ferozes da parte do próprio Mao. Instrumentalizando a sua
última mulher, Jiang Qing, e a sua clique radical como executora dos seus mais
virulentos ataques, Mao obrigou Zhou a uma sucessão de humilhantes autocríticas
que viriam a culminar num derradeiro acto de crueldade humana de Mao para com o
seu primeiro-ministro: a negação de tratamento quando lhe fora diagnosticado
cancro na bexiga, forçando-o a um lento e excruciante agonizar. Tal atitude por
parte de Mao Zedong é explicada pelo terror que este tinha de ser suplantado e
o seu legado desfeito por um dos colaboradores que o rodeavam, como ocorrera a
Estaline após a sua morte, com os seus crimes a serem denunciados por Nikita
Khruschev. Fora precisamente o medo de um «Khruschev chinês» que alimentara a
campanha contra Liu -Shaoqi e que terá motivado os ataques -contínuos a Zhou
Enlai, que aumentaram quando Zhou se afirmou mundialmente com a visita de Nixon
em 1972. «Mao ressentia-se muito do que na China havia sido celebrado como as
conquistas diplomáticas de Zhou Enlai, e mesmo se Zhou estivesse em melhores
condições de saúde, o Presidente teria empreendido todo o seu esforço em
assegurar que todas as oportunidades para brilhar no palco internacional lhe
seriam negadas» (p. 257). É assim que para aparecer publicamente na Sexta
Sessão Especial das Nações Unidas, em 1974, o escolhido não é Zhou Enlai, então
já gravemente doente, ainda que fosse a mais relevante figura no campo das
relações externas chinesas, mas Deng Xiaoping, que Mao promoverá como
substituto do primeiro-ministro («Para neutralizar Zhou Enlai, Mao trouxe Deng
Xiaoping para a ribalta» [p. 247]), o mesmo Deng Xiaoping que havia sido
afastado do poder em determinados momentos da Revolução Cultural. Apesar de
«Deng ter assegurado o seu regresso político às custas de Zhou Enlai» (p. 247),
a visão modernizadora de Deng de dar prioridade ao desenvolvimento económico
era algo com que Zhou estava em consonância.
As últimas aparições públicas de Zhou Enlai na recepção oficial do Dia
Nacional, a 30 de Setembro de 1974, e no Congresso Nacional, em Janeiro de
1975, revelam um homem respeitado pelos que o rodeavam e que tentou até ao fim
manter inquestionável a sua lealdade para com Mao, que viria a morrer oito
meses depois de Zhou, no mesmo ano de 1976. O funeral de Zhou Enlai foi uma
enorme manifestação de apoio popular e, até hoje, Zhou permanece uma das
figuras menos criticadas dos anos «Mao». Com esta biografia, Gao Wenqian
procura analisar o que de justificado existe nessa alta estima em que Zhou é
tido até hoje, mas contrapondo as suas acções menos desculpáveis, que
evidenciaram um político hábil na navegação das águas incertas e perigosas do
Governo da China comunista, mas também alguém que «compreendeu o sentido do
velho adágio chinês de que ir com a maré é mais fácil do que se lhe opor» (p.
130). E isso vem com a sua quota-parte de responsabilidade, quando estamos a
falar de um regime que levou à morte milhões de pessoas.
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