A política externa em transição: o caso da Federação Russa
O final da Guerra Fria e a desagregação do bloco soviético redesenharam o mapa
geoestratégico europeu. O surgimento de quinze novas repúblicas implicou a
reordenação do antigo espaço soviético
1
. A Federação Russa, reduzida em estatuto, dimensão e recursos, procurou, neste
contexto de mudança, manter a sua influência, um objectivo que se revelou
difícil face ao processo de transição que ela própria também experimentava.
Este artigo analisa a política externa em transição de um regime comunista para
o que vieram a ser tentativas falhadas de democratização, resultando na
catalogação do regime político como "democracia de gestão", "democracia
incompleta" e "democracia dirigida" - termos que encarnam uma fórmula
particular de governação que se desenvolveu na Rússia, misturando elementos de
um passado imperial grandioso e nostalgia soviética, com ingredientes
democráticos, como a realização de eleições (independentemente da qualidade das
mesmas). De facto, a hibridez do regime que se desenvolveu na Rússia, a par das
suas opções e acções de política externa, é talvez melhor entendido segundo o
termo "democracia soberana", como analisado adiante.
O processo de formulação e implementação de política externa é complexo, sendo
difícil dissociar poder e preferências, motivações internas e pressão externa,
num regime onde os actores directamente implicados estão sujeitos a influência
de sectores diferenciados da sociedade e de elites políticas, bem como a outras
influências externas, mesmo que de forma indirecta. O caso da Rússia é
paradigmático pelas implicações associadas à transição de Império para Estado,
de uma orientação comunista das políticas e organização social para um
exercício de democratização amorfo, com muitas dificuldades e incertezas a
conduzirem todo o processo. Este culminou num regresso não ao comunismo
soviético ou à experiência da democracia liberal, mas antes a um estilo de
governação centralizado e autoritário. As questões nacionalistas e identitárias
foram instrumentais na transição face ao vacuum que surgiu após a desagregação
da União Soviética e da sua ideologia agregadora, ajudando na compreensão das
escolhas de política externa e do registo autoritário que gradualmente se vai
consolidar. A questão que precisa ser discutida é, deste modo, "porque é que a
oportunidade nos anos 1990 e 2000 foi perdida quando a Rússia estava mais
aberta, do que talvez em qualquer outro período da sua história, para se juntar
ao que convencionalmente se denomina Ocidente, para criar uma nova comunidade
baseada em interesses comuns e, finalmente, valores partilhados"
2
?
O processo sinuoso de transição iniciado há vinte anos, os desafios implicados
e as oportunidades perdidas, são então foco de análise. Este artigo olha também
a Rússia vinte anos depois, sublinhando os elementos de continuidade que
persistem num contexto mudado. Uma análise centrada essencialmente na
formulação e implementação da política externa, no quadro soviético e pós-
soviético, e no modo como esta diferenciação revela as dinâmicas subjacentes às
políticas de acção e reacção em matéria de política externa na Rússia. Deste
modo, pretende-se compreender as linhas de política externa subjacentes à
afirmação da Rússia enquanto actor de relevo no cenário internacional.
DINÂMICAS DE POLÍTICA EXTERNA: INTERLIGAÇÕES ENTRE A ESFERA DOMÉSTICA E O
CONTEXTO EXTERNO
Factores domésticos e externos combinam-se na formulação da política externa,
resultando numa equação onde os recursos internos e a vontade política
conjugados com ameaças e oportunidades externas conduzem a opções políticas
variáveis, sendo o objectivo último a maximização do interesse nacional. Esta
relação interno/externo é assimetricamente bidireccional, uma vez que, apesar
de estas duas dimensões estarem intrinsecamente ligadas, a relação pressupõe
pesos diferenciados. No entanto, e apesar da primazia conferida aos objectivos
de Estado, os governantes não estão imunes a dinâmicas diversas a nível
doméstico e no plano internacional que limitam ou projectam o prosseguimento
destes
3
. "O processo de formulação política é um processo complexo de interacção entre
vários actores, que de modo diferenciado estão envolvidos em estruturas
distintas."
4
Assim, a adicionar à dicotomia interno/externo no sentido amplo, podemos
sublinhar ainda as relações entre o aparelho político detentor das competências
de política externa e grupos de pressão e influência, externos ao aparelho, mas
com influência sobre o mesmo.
Esta fórmula complexa é assim composta por variáveis distintas a diferentes
níveis (externo versus interno interagindo nos diferentes níveis de análise),
que cruzam uma multiplicidade de sectores (política, segurança, economia),
sendo ainda acompanhadas por questões normativas e de percepção, para além das
tradicionais considerações de poder. Este exercício, de forma não exaustiva,
visa explicar a multiplicidade de aspectos subjacentes à política externa, para
além dos modelos tradicionais baseados na escolha racional, políticas
burocráticas, ou o papel da liderança na definição da agenda e formulação de
políticas. E também vai para além dos "rótulos e modelos que nos direccionam
para um particularismo da realidade"
5
, permitindo uma análise alargada de dinâmicas e tendências
6
.
Note-se como na URSS a política externa estava concentrada nos líderes do
Partido Comunista, sendo que o Governo apenas ratificava as decisões aí
tomadas, conferindo-lhes legitimidade. O contexto de Guerra Fria e o modelo
ideológico de base à política marxista-leninista condicionavam fortemente a
política externa e as políticas de desenvolvimento domésticas. O centralismo
dirigista inerente ao modelo permitia um processo de decisão e implementação
unificado, prosseguindo o interesse da União num cenário de nenhuma abertura a
críticas ou pressões antilinha do partido. Neste período, de facto, as
dinâmicas internas estavam rigidificadas no poder centralizado do Partido
Comunista, sendo a política externa condicionada essencialmente pelas
directrizes de afirmação ideológica no contexto de rivalidade bipolar. "É o
mundo lá fora, e não o caos interno, que os levou [soviéticos] a pensar sobre o
cariz e fraquezas do seu poder externo, as dificuldades de intervenção, as
causas da insegurança, o significado da interdependência e os custos da
autarcia."
7
Na Rússia da transição, a política externa reflectiu os vários constrangimentos
que a política russa enfrentava internamente. Muitas das dinâmicas até então
reprimidas surgem agora de forma desarticulada, revelando os limites inerentes
ao processo burocrático centralizado que havia vigorado durante décadas. O
pluralismo associado ao modelo democrático em experimentação revelou-se
sinónimo de pressão e desordem. A incapacidade de estruturação de princípios
delineadores assentes em processos discutidos e plurais, acabou por levar à
tendência de centralização dos processos de decisão e implementação de
políticas, incluindo a política externa, e a um crescente autoritarismo,
claramente visíveis na Rússia de hoje.
No entanto, a primeira década pós-Guerra Fria permitiu a identificação de
tendências relativamente à definição dos vectores estruturantes da política
externa russa, coincidentes com as oscilações que na prática vão tendo lugar
durante os anos da presidência de Ieltsin. A partir de meados dos anos 1990
estas tendências cristalizam-se nas linhas fundamentais que a política externa
russa vai acabar por representar, ao conjugar os diferentes vectores numa
combinação flexível mas regular. As divisões internas na Rússia, de longa data,
mas agora com expressão mais vincada, com os euro-atlantistas a favorecerem
ligações mais próximas aos Estados Unidos e à Europa, os eurasianistas a
olharem o cenário a leste para alianças estratégicas, incluindo a China e a
Índia nos seus horizontes, e a afirmação da estratégia Rússia-primeiro
procurando a afirmação do poder russo com base no legado imperial, força
política, influência, e recursos económicos, revelam de forma simplificada o
discurso multidimensional da política externa
8
. De facto, analisando os documentos fundamentais de política externa da Rússia
pós-soviética, pode-se constatar que estas linhas vão gradualmente sendo
demarcadas e prosseguidas enquanto vectores estruturantes, com a Comunidade de
Estados Independentes (CEI) a constituir a área preferencial de actuação,
seguida das dimensões ocidental e oriental, como analisado adiante.
Nesta construção, a definição da identidade russa tem também tido um peso
relevante, apesar de não acarretar o peso ideológico associado à governação
soviética, de não funcionar como modelo de desenvolvimento como nos tempos
soviéticos, e de não oferecer uma alternativa com atractividade normativa para
outros, em particular para as ex-repúblicas soviéticas através de mecanismos de
integração como a CEI. O processo de construção identitária na Rússia, ainda em
definição, já não como soviético, mas também não democrático no sentido
ocidental, tem implicado uma procura constante de recuperação da identidade -
uma nova identidade num contexto diferente. Esta readaptação e busca de
referenciais revela-se fundamental na definição da política externa pós-
soviética, num contexto em que a Rússia já não é a União Soviética, em que o
espaço CEI já não é o espaço soviético, em que as fronteiras da Rússia já não
são as do antigo bloco. Ou seja, a "Rússia [é um] outro Estado que antes não
existia no mapa político ou geográfico global"
9
.
Este processo de auto-redefinição teve e tem tido impacto nas formulações e
acções de política externa, resultando em vários momentos em opções pouco
claras, argumentos incoerentes e acções controversas. As questões relacionadas
com o tratamento das minorias russas nas antigas repúblicas são exemplo do
carácter errático e tantas vezes manipulador das políticas russas para com a
sua vizinhança. A lógica imperial de controlo e manutenção de poder alargado
subjaz a estas acções, onde a par de considerações de realpolitik, percepções e
entendimentos relacionados com o posicionamento, papel e funções da Federação
Russa não podem ser descurados. A identidade russa, combinando heranças do
passado e procurando aprender a lidar com um novo contexto político, social,
económico e estratégico, está ainda em formação. E embora ainda integre muitos
elementos do passado, a Rússia de hoje, apesar da crescente assertividade
política, governação centralizada e estilo autoritário, é uma nova Rússia,
procurando afirmação num contexto diferenciado.
O papel das elites políticas e a sua lealdade para com o poder central tem
também sido um elemento central na história da Rússia. Controlar vozes
dissidentes, punir movimentos de oposição, e monitorizar de perto movimentos
propagandísticos eram práticas comuns nos tempos czaristas, sob o regime
soviético, e são ainda visíveis na Rússia de hoje. "A Rússia é ainda melhor
entendida como uma rede de relações clientelistas. Esta é uma das razões por
que a Rússia pós-soviética tem tanta dificuldade em gerar o seu próprio sentido
de comunidade cívica."
10
A institucionalização do poder centralizado com apoio da elite política
próxima do presidente assegura controlo político e social. Esta governação
forte, que na troca de liberdade por segurança reuniu amplo apoio, tem contudo
enfrentado contestação de movimentos cívicos e grupos de oposição, embora com
expressão limitada. Uma demonstração de que elementos de democratização
experimentados na Rússia pós-Guerra Fria têm sido mantidos sob escrutínio
apertado das autoridades centrais, justificando políticas duras com a
necessidade de ordem; permitindo um estilo autoritário de governação com base
na construção de estabilidade; e realizando processos eleitorais como expressão
máxima de um país democrático, onde a ingerência externa não é bem acolhida -
permitindo o que é actualmente entendido como democracia soberana.
DO IMPÉRIO SOVIÉTICO AO ESTADO RUSSO: QUE POLÍTICA EXTERNA?
A desagregação da União Soviética teve implicações profundas na Federação
Russa, que assumiu muitas das responsabilidades da antiga União, incluindo o
controlo do arsenal nuclear soviético, bem como representações em fora
internacionais, como as Nações Unidas, incluindo um lugar permanente no
Conselho de Segurança. Mas o final da Guerra Fria e o fim da bipolaridade
significaram também um estatuto diminuído no sistema internacional, dada a
redução da sua dimensão, capacidades e recursos. Assim, "a forma do novo
projecto político russo dependia não só do que o país herdou da União Soviética
em termos materiais, mas também do "software" político que seria aplicado para
transformar a Rússia"
11
.
A queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) implicou (1) o
fim de uma ideologia unificada sustentada em princípios marxistas-leninistas
que permitiam coesão social; (2) a perda de identidade, agregada durante
décadas sob a planificação e governação centralizada do Partido Comunista; (3)
um processo de transição para um modelo de governação que a Rússia nunca antes
havia experimentado; (4) novas fronteiras e a redefinição de relações com uma
vizinhança instável, lado a lado com a redefinição do papel e lugar da Rússia
na Europa e no mundo. Este contexto indefinido libertou o nacionalismo
simultaneamente como incentivador à reforma e obstáculo à mudança: a então
elite soviética permaneceu leal a velhos princípios, a sociedade civil e
movimentos sociais eram praticamente inexistentes, a elite dos negócios
beneficiava das lutas políticas internas e de um processo de privatização sem
planificação, fortalecendo-se como classe emergente com poder político e
económico - os oligarcas. Este foi um processo de mudança complexo com impacto
claro na definição de uma política externa diferenciada no contexto pós-Guerra
Fria.
Mikhail Gorbachev foi um político central na transformação da União Soviética
após o desencanto dos anos de Leonid Brejnev, e das curtas lideranças de Yuri
Andropov e de Konstantin Chernenko (1982-1985). Enquanto Andropov se concentrou
na disciplina, Chernenko concentrou-se na concórdia, nenhum deles entendendo
realmente as fragilidades do sistema soviético. Gorbachev, pelo contrário,
concentrou-se na mudança, que ele acreditava tinha de ser um processo iniciado
de dentro para fora que permitisse a modernização e crescimento da URSS
12
. Contudo, as políticas de reestruturação (perestroika) da economia, de
aceleração (uskorenie) e de abertura (glasnost)
13
, indicando um curso reformista que visava a transformação política e o
desenvolvimento económico, quer a nível interno quer na política externa, não
foram capazes de alterar práticas profundamente enraizadas, afastando-se dos
seus objectivos iniciais.
A política externa de Gorbachev reflectia o seu curso reformista a nível
interno, proclamando a "casa comum europeia" como prioridade e o degelo nas
relações com o Ocidente, entendido como um passo necessário para a consolidação
do crescimento económico e a inversão de tendências contrárias à estabilização
económico-social (num contexto de crescentes dificuldades económicas e
descontentamento social). Esta política de aproximação ao Ocidente foi expressa
em medidas concretas, como a assinatura em Dezembro de 1987 do Tratado sobre
Forças Nucleares de Alcance Intermédio, com o grande rival, os Estados Unidos;
o anúncio da retirada soviética do Afeganistão em 1988; e uma política de
abertura e proximidade ao Leste. Internamente, qualificou o sistema económico
socialista e o papel de gestão política operado pelo Partido Comunista como
desadequados à nova realidade que a União experimentava.
Pôs assim em marcha os princípios da dimensão humana contidos na Declaração de
Helsínquia de 1975 (incluindo, por exemplo, a promoção de liberdades civis e
discussão pública), encontrando no entanto oposição do aparelho burocrático que
claramente entendia estas medidas como ameaça à sua autoridade e poder,
agravado pelos movimentos nacionalistas que por todo o espaço pós-soviético
exigiam independência.
Contudo, revelou-se tarefa difícil conciliar as reformas estruturais profundas
a nível político e económico necessárias à consolidação do crescimento no seio
da União, com o forte legado de um sistema que conduziu a resultados limitados
e medidas impopulares. Como acelerador deste processo, Gorbachev procurou
consolidar o seu poder, para que a sua capacidade de decisão e implementação
fosse reforçada, mas foi incapaz de desenvolver a maior parte dos seus
projectos reformistas face à crescente resistência com que se deparava - o
aparelho do partido permaneceu um forte desafiador da perestroika.
"No momento crucial em que Gorbachev abriu as janelas da Rússia ao
mundo em finais dos anos 1980, a Rússia não tinha uma oposição que
apresentasse uma alternativa credível ao sistema, nem indivíduos
pragmáticos dentro da equipa de governação capazes de actuar numa
atmosfera politicamente competitiva. Não menos influente é o facto de
a Rússia ter estado alheada do período da história europeia em que o
espírito constitucionalista floresceu […] Sem essa base a sociedade
russa não podia avançar nos próximos estádios da transformação, "a
hora do economista" e a "hora do cidadão"."
14
No entanto, e apesar destes obstáculos, Gorbachev conseguiu levar a cabo
reformas político-administrativas fundamentais, como o estabelecimento do
Congresso dos Deputados do Povo em 1989, sob a sua liderança, e com maior poder
de decisão que o Soviete Supremo. De facto, foi eleito um novo Soviete Supremo
pelo novo Parlamento e Gorbachev conseguiu aqui reunir amplo poder, permitindo
terminar com o monopólio do Partido Comunista da União Soviética enquanto única
organização política legal. Gorbachev "acabou por erradicar não só a tirania e
burocracia estalinista, mas também a ditadura do Partido Leninista e a
ideologia marxista despoletada pela Revolução de Outubro"
15
.
Em suma, apesar das muitas dificuldades associadas a um processo intricado de
transição política, social e económica, a agenda de Gorbachev permitiu uma
política externa diferente, mais aberta ao Ocidente, mais democrática para com
o Leste - especialmente os estados-satélite desde a II Guerra Mundial -, bem
como mais flexível relativamente às repúblicas constituintes da URSS. Estas
mudanças profundas permitiram o fim da Guerra Fria e conduziram à queda do
Império Soviético.
"Foi Gorbachev que simbolizou a transcendência das revoluções
progressistas e que assim permitiu à Rússia o regresso às políticas
"normais", um tipo de políticas que não incluía uma fronteira
emancipatória. O sujeito da emancipação acabou por não ser o povo no
sentido dos sujeitos soberanos da democracia, mas uma elite
transformadora guiada pelos princípios de liderança e modernização
das elites para as populações."
16
Como reacção a mudanças rápidas, o renascimento do nacionalismo deu-se como
resultado de uma federação enfraquecida, como forma de promover unidade e
coesão, contudo há muito perdida.
Boris Ieltsin chegou à política sob anuência de Gorbachev na altura em que o
último se tornou Presidente da URSS (1985). Apesar de uma trajectória sinuosa,
em 1989 foi eleito para o Congresso dos Deputados do Povo e tornou-se mais
tarde Presidente do Parlamento russo. Nesta altura, Ieltsin e Gorbachev
prosseguiam objectivos incompatíveis, com o primeiro a enfrentar hostilidade
interna em relação a medidas que se revelaram difíceis e não recompensadoras, e
o último a criticar duramente Gorbachev por actuar lentamente na reforma do
sistema, exigindo um ritmo mais acelerado e medidas mais resolutas. Face à
situação de tensão vivida, agravada pela sucessão de declarações de
independência de antigas repúblicas, foi convocado um referendo para aferir
sobre o futuro da União enquanto federação de repúblicas soberanas
igualitárias, cujo resultado foi favorável à preservação da URSS enquanto
entidade agregadora, mas não aglutinadora, das diferentes repúblicas. Na Rússia
uma outra questão foi colocada a escrutínio: se a eleição presidencial se devia
manter como processo selectivo e fechado, ou ao invés, se deveria decorrer a
nível nacional com participação alargada das populações.
O referendo da União de Março de 1991 foi favorável a eleições presidenciais
directas, que culminaram na vitória de Boris Ieltsin, marcando claramente o
descontentamento generalizado com o processo de transição iniciado por
Gorbachev. A tentativa falhada de golpe de Estado em Agosto de 1991, criticando
os falhanços da perestroika e glasnost, sinalizava então uma União Soviética
fragmentada que oficialmente cessou a sua existência a 25 de Dezembro. Mesmo
antes da desagregação da União, a CEI foi criada a 8 de Dezembro de 1991, num
acordo entre a Rússia, a Bielorrússia e a Ucrânia, procurando constituir um
mecanismo agregador e facilitador de uma transformação pacífica da velha URSS
numa nova forma de organização que perpetuasse o poder da Rússia no antigo
espaço soviético. Contudo, isto não evitou que as repúblicas seguissem o seu
próprio curso, independentemente da sua adesão à nova organização, à excepção
das três repúblicas do Báltico, que nunca foram estados-membros da CEI. Além do
mais, a Comunidade acabou por se revelar institucionalmente disfuncional,
significando que o objectivo russo de influência e controlo se revelou
limitado, apesar do seu poder na área.
A POLÍTICA EXTERNA DE IELTSIN: APROXIMAÇÃO A OCIDENTE, ENVOLVIMENTO A LESTE E
BALANCEAMENTO LESTE-OESTE
Em Junho de 1991, proclamando a Rússia como democracia plural, Boris Ielstin
foi eleito Presidente, legitimado pela sua capacidade de liderança na defesa de
direitos e liberdades fundamentais, com particular relevo aquando do golpe de
Estado. Para além disso, no seguimento destes desenvolvimentos, o Partido
Comunista foi banido. No entanto, eleito como uma nova face da reforma, Ieltsin
não foi bem-sucedido no processo de transição democrática, tornando-se
progressivamente dependente e ávido de poder, centralizando autoridade e
deixando pouco espaço de manobra para visões alternativas em formação na nova
Rússia. Os críticos da postura europeísta promovida por Gorbachev apelaram a um
enfoque da política externa na Eurásia, enquanto os nacionalistas pressionaram
para a concentração das decisões políticas nas questões internas, para que a
Rússia pudesse reunir condições económico-sociais e políticas essenciais à sua
projecção externa de forma sustentada no que era definido como o seu
"estrangeiro próximo", leia-se ex-espaço soviético.
Ieltsin enfrentou dificuldades na procura de equilíbrios com o Parlamento,
resultando da política plural que culminou num referendo e voto presidencial de
confiança em Abril de 1993. No Verão desse ano, Ieltsin reuniu uma convenção
constitucional para redigir uma nova Constituição pós-soviética, reflectindo as
mudanças que ocorreram e melhor espelhavam a nova Rússia que então se
desenhava. No entanto, nas lutas internas pelo poder, o Parlamento, de forma
autónoma, também criou um comité constitucional para o mesmo efeito, levando
obviamente à apresentação de duas versões distintas do projecto constitucional.
Numa clara demonstração de poder e de desafio à autoridade do Parlamento, a 21
de Setembro de 1993, Ieltsin dissolveu-o e impôs a lei presidencial, marcando o
referendo sobre a nova Constituição para Dezembro desse mesmo ano. O Parlamento
declarou a acção de Ieltsin ilegal, destituiu o Presidente e nomeou o seu vice,
Alexander Rutskoi, como legítimo representante da autoridade. A tensão aumentou
e no início de Outubro os confrontos violentos que se seguiram ao cerco do
edifício do Parlamento conduziram, sob as ordens de Boris Ieltsin, à
intervenção policial e consequente detenção de todos aqueles que se encontravam
no seu interior, incluindo o porta-voz do Parlamento e Rutskoi. Após os
incidentes, foram marcadas eleições para um novo Parlamento, bem como a
realização do referendo constitucional, ambos tendo lugar em Dezembro de 1993.
A nova Constituição foi aprovada conferindo ao Presidente amplos poderes,
incluindo o poder de exercício da "liderança da política externa da Federação
Russa"
17
.
Este é um período conhecido como período romântico, quando boas relações com o
Ocidente são privilegiadas e é prosseguida uma política de não-ingerência no
espaço pós-soviético. A doutrina Sinatra - "I'll do it my way" - permitiu às
antigas repúblicas consolidarem o seu curso de independência, muitas das quais
pela primeira vez, dado que apesar da autonomia que formalmente gozavam no
quadro da URSS, esta equivalia na realidade a uma relação de submissão face ao
poder central do Partido Comunista em Moscovo. Neste período, a postura de
Moscovo, centrada na necessidade de reformas internas, possibilitou o
desenvolvimento de novas instituições capazes de governar o país após décadas
de sistema de partido único. Nas palavras do conselheiro presidencial Sergei
Stankevich em Março de 1992, "a nossa política externa não se processa nas
direcções e prioridades das de um Estado desenvolvido. Pelo contrário, a
prática de política externa… vai ajudar a Rússia a tornar-se Rússia"
18
. Contudo, as políticas de Ieltsin baseavam-se mais na ideologia do que no
nacionalismo, factor este que acabou por transformar-se numa fabricação para a
conquista e manutenção do poder político. Um efeito perverso do desejo de
controlo e autoridade que Ieltsin vai procurar, entendendo-o como necessário à
governação.
Apesar do acordo quanto ao pacote alargado de reformas necessárias, quer a
nível institucional quer económico e social, a transição de um modelo de
organização e desenvolvimento socialista, planificado e centralizado, não foi
simples. A inexistência de um plano de reforma económica no curto ou médio
prazo, um quase contra-senso face à tradição de planificação associada ao poder
central da URSS, complicou ainda mais o processo de transição para uma economia
de mercado. A privatização de empresas russas, entendida como forma de
invalidar o regresso a um sistema comunista, beneficiou essencialmente a elite
próxima de Ieltsin. "Os velhos oficiais soviéticos apoiavam enfaticamente
[Ieltsin] enquanto tomavam conta de bens públicos - desde o pequeno comércio à
indústria petrolífera -, e se transformavam em capitalistas ao mesmo tempo que
a inflação dizimava os rendimentos da população comum."
19
Esta política errática desacreditou o Presidente e permitiu o desenvolvimento
de actividades paralelas ilícitas, incluindo crime organizado e crescente
corrupção. As sementes da mudança democrática murcharam definitivamente:
autoritarismo e centralização predominavam, uma nova classe com amplo poder
político e económico emergiu, e a população estava simplesmente exposta aos
efeitos nefastos e, de algum modo, perversos, de uma transição destinada ao
falhanço.
Num contexto pró-ocidental, Andrei Kozirev assume a pasta dos Negócios
Estrangeiros em inícios de 1992, prosseguindo uma política de aproximação ao
Ocidente, definindo a Rússia como aliada natural da Europa. Esta abordagem foi
evidenciada na procura de integração em instituições ocidentais, solicitando a
adesão ao Conselho da Europa (materializada em Fevereiro de 1996, após muitas
dificuldades essencialmente associadas às acções militares russas na República
da Tchetchénia), aderindo à Parceria para a Paz no contexto da NATO (em Junho
de 1995, procurando assegurar que a sua participação constituísse um factor de
promoção de confiança enquanto simultaneamente procurava evitar os planos de
alargamento da organização aos estados do Leste), e aprofundando relações com a
Comunidade Europeia, com base na assinatura do Acordo de Parceria e Cooperação
(APC) em 1994, a par do estreitamento de relações com Washington. No entanto, e
revelador das dificuldades de resposta do Ocidente às mudanças profundas em
curso, o esperado apoio económico internacional chegou tarde e revelou-se
insuficiente, sendo que a condicionalidade associada acabou por gerar
sentimentos antiocidentais e uma exigência interna de mudança, essencialmente
promovida pelos grupos nacionalistas e comunistas. As críticas sobre a
ingerência ocidental nos assuntos russos, em particular no que toca ao
tratamento das minorias russas fora do país (leia-se espaço pós-soviético),
aumentaram o descontentamento e levaram as autoridades de Moscovo a adoptarem
uma política mais interventiva. Note-se, no entanto, o cariz reactivo desta
opção.
Na sequência destes desenvolvimentos, Ieltsin aprovou um novo conceito de
política externa em Abril de 1993, reflectindo já o tom reactivo ao crescente
desencanto com a opção ocidental e aos baixos benefícios resultantes dessa,
levando à equação de democracia com caos, oportunismo e corrupção. A vizinhança
próxima tornou-se foco de atenção de Moscovo, assumindo primazia na agenda de
política externa russa, tendência esta que se mantém até aos nossos dias.
Referências ao ex-espaço soviético incluem o uso de expressões como "interesses
vitalmente importantes", constituindo uma "primeira prioridade" e tornando-se
de "importância fundamental", e reflectindo também uma política mais
equilibrada entre Ocidente e Oriente.
"A Federação Russa, apesar da crise que atravessa, permanece uma
grande potência em termos do seu potencial, da sua influência no
curso dos acontecimentos mundiais e da responsabilidade que assume
como resultado disso. É responsável não só pela nova ordem mundial
que emergiu após o colapso do campo socialista, mas especialmente
pela criação de um novo sistema de relações positivas entre os
estados que faziam parte da União Soviética, oferecendo a garantia de
estabilidade nestas relações."
20
Mais tarde, em Novembro, Ieltsin anunciou a nova doutrina militar,
identificando as principais linhas de actuação estratégica, o cariz não
ameaçador dos meios militares russos (nucleares e não nucleares), e a
identificação de fontes de instabilidade existentes ou potenciais, bem como de
eventuais ameaças. A doutrina afirma que os "interesses vitais da Federação
Russa de modo algum colidem com a segurança de outros estados e são assegurados
no quadro de relações interestaduais equitativas e mutuamente benéficas". Além
do mais, o documento determina "a orientação estritamente defensiva da
actividade [militar] de modo a assegurar a segurança militar da Federação Russa
e dos seus aliados, protegendo o compromisso da Federação Russa com os
objectivos de prevenção de guerras e conflitos armados, a sua eliminação da
vida da humanidade, desarmamento universal, eliminação de blocos militares, e a
sua determinação para lutar pela materialização dos ideais do humanismo,
democracia, progresso social, e paz e segurança universais"
21
.
O novo conceito de política externa e a doutrina militar reforçam o interesse
nacional, a interconexão próxima entre a política e os militares, e a vontade
de posicionar a Rússia enquanto actor fundamental nas relações internacionais.
Assim, a partir de 1993, e apesar das dificuldades associadas, o curso de
reafirmação tornou-se claro na orientação política do Kremlin: reafirmar o
papel da Rússia como actor influente, em particular em termos regionais. Este
objectivo foi prosseguido através de influência e poder político, pressão
político-económica e presença militar dissuasora no espaço pós-soviético, para
descontentamento de algumas destas repúblicas. Como garante da estabilidade na
sua área de vizinhança, a Rússia assumiu-a como de interesse estratégico
nacional evitando ingerências externas. Desde 1995 esta abordagem consolidou-
se, com a definição inicial de uma política externa multivectorial pelo
Kremlin. Em meados dos anos 1990, a política externa russa encontrava-se
traçada em torno de dois eixos principais: um mais restrito revestido de
primazia que incluía as repúblicas ex-soviéticas, e outro mais alargado,
envolvendo o Ocidente (entenda-se Europa e Estados Unidos) e a Ásia, embora
inicialmente não enquanto dimensões de relevância paralela, com a primeira a
dominar a agenda. Até ao final da década pós-Guerra Fria esta tendência foi
reforçada.
Após as eleições de 1995, Ievgeni Primakov, um líder pragmático, assumiu o
Ministério dos Negócios Estrangeiros entendendo que "a Rússia não tem inimigos
permanentes, mas tem interesses permanentes"
22
, definindo assim a base para as suas opções em termos de política interna e
externa. Conhecido como o "Eurasianista", prosseguiu uma política mais
equilibrada que Kozirev, ao recalibrar a dimensão oriental como peça
fundamental nos interesses de política externa russos. Isto é também uma
demonstração do descontentamento face às políticas ocidentais lidas na Rússia
como agressivas, em particular na perpetuação da velha imagem da NATO como
"inimigo", e evidentemente como contrárias aos interesses do Kremlin.
"Na base dos falhanços de Ieltsin em política externa […] esteve a
sua falta de visão de para onde estava a conduzir o país. Apesar da
produção de documentos solenemente listando "conceitos" e
"doutrinas", não foram claramente definidos objectivos políticos, e
Ieltsin manteve a rotação de pessoal a tal ritmo que a implementação
dos objectivos se revelou impossível. Esta falta de filosofia
condutora - nas palavras de Dimitri Simes, "com tácticas políticas em
detrimento de política substantiva" - produziu uma política externa
que parece serpentear de situação em situação."
23
As relações tortuosas de maior ou menor proximidade ao Ocidente, o
relacionamento nem sempre fácil com as novas repúblicas independentes, e a
prossecução do objectivo de reconhecimento da Rússia enquanto potência
internacional marcaram os anos de Ieltsin, não pela sua capacidade de gestão de
interesses e oportunidades, mas antes pela sua incapacidade de formulação e
implementação de políticas coesas e claramente orientadas para os objectivos
máximos da política externa russa, nomeadamente a promoção do interesse
nacional. Contudo, a personalidade e vontade de poder de Ieltsin têm reflexo
directo na política externa russa com hesitação e reacção a definir os
contornos de uma política externa volátil e nem sempre clara. A política
externa russa operava a dois níveis: "o que a Rússia realmente queria (política
externa A), e o que foi forçada a fazer (política externa B). A tensão levou a
incoerência e sinais confusos."
24
UMA SEGUNDA OPORTUNIDADE? O REALISMO ASSERTIVO DE VLADIMIR PUTIN
Desde que ganhou a presidência russa em 2000, Vladimir Putin definiu a sua
política externa como multivectorial e multipolar. Os principais documentos
adoptados no início do seu primeiro mandato afirmam o potencial
desestabilizador de uma "estrutura unipolar do mundo com o domínio económico
dos Estados Unidos", a CEI como área de importância estratégica e a dimensão
oriental (região Ásia-Pacífico) como área de relevo na política externa de
Moscovo (Conceito de Segurança Nacional, Doutrina Militar e Conceito de
Política Externa, todos de 2000). Uma consagração da tendência iniciada com
Primakov no segundo mandato de Ieltsin. Assim, a Rússia almeja uma política
externa equilibrada onde a procura de pólos múltiplos visa diversificar aliados
e permitir a alteração de relações privilegiadas numa constante procura de
contrapeso e primazia. A fórmula multivectorial ganha, deste modo, uma nova
dimensão com Putin.
Os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 adicionaram um novo elemento
ao desenho da política externa: uma nova ordem internacional sob a primazia dos
Estados Unidos. Putin expressou o seu apoio à luta global contra o terrorismo e
as vozes críticas ocidentais relativamente ao desrespeito e violação de
direitos humanos na Rússia, e em particular na República da Tchetchénia, foram
praticamente silenciadas
25
. Com um olhar realista sobre o interesse nacional e as prioridades de política
externa da Rússia, o chamado "nacionalismo pragmático"
26
, a projecção de poder e curso afirmativo de Vladimir Putin assentam numa ordem
interna estável e crescimento económico, essencialmente apoiados nos
rendimentos do petróleo e gás natural, que têm conferido à política russa mais
independência e autoconfiança relativamente ao seu papel e lugar nos assuntos
internacionais. Este curso é assumido pelas autoridades russas, com o ministro
dos Negócios Estrangeiros Sergei Lavrov argumentando que "a política externa
russa hoje é tal que, pela primeira vez na sua história, a Rússia está a
começar a proteger o seu interesse nacional usando as suas vantagens
comparativas [geopolítica energética]"
27
. Esta combinação de factores internos e externos tornou possível este curso
afirmativo, com ordem e crescimento em casa a sustentarem a procura de
reconhecimento e legitimidade nas políticas regionais e globais.
A eleição de Dmitri Medvedev como Presidente da Rússia (Março de 2008), apesar
de implicar continuidade à democracia soberana, trouxe uma nova abordagem face
aos temas económicos. Uma mudança muito necessária, expressa numa política de
diversificação de investimentos, e no desenvolvimento de outras áreas
sectoriais (não energéticas) de forma a ultrapassar uma excessiva concentração
nos recursos energéticos.
Esta excessiva dependência de um sector económico tornou a economia russa
extremamente vulnerável, demonstrando a necessidade de ajustes estruturais para
evitar flutuações inesperadas nos preços do petróleo e do gás, com
consequências directas no desempenho e resultados da economia russa. De novo,
esta acção política visa fortalecer os fundamentos da economia, conferindo-lhe
uma base sólida, entendida no Kremlin como parte essencial de uma política
externa afirmativa e efectiva.
CONCLUSÃO: A POLÍTICA EXTERNA RUSSA VINTE ANOS DEPOIS
A política externa russa, apesar das variações experimentadas especialmente nos
anos de Ieltsin, manteve os princípios estruturantes e objectivos pós-Guerra
Fria de organização e consolidação interna, e de projecção internacional.
Essencialmente, o que foi marcando esta variação foi a conjugação de meios e
oportunidades na definição e prosseguimento dos objectivos definidos enquanto
interesse nacional. Enquanto Ieltsin, apesar da sua preocupação com as questões
internas, se revelou muito vulnerável aos desenvolvimentos externos, reagindo e
ajustando-se continuamente a estes, Putin alterou o enfoque para as questões
domésticas, enquanto base de sustentação de uma política externa assertiva.
Assentando numa visão pragmática das possibilidades e limites russos, Putin
conferiu substância ao conceito de política multivectorial, definido por
Primakov em meados dos anos 1990, imputando às acções externas russas um
sentido de continuidade e estabilidade ao incluir a CEI como área prioritária,
bem como as dimensões ocidental e asiática.
Contudo, ao alargar a capacidade de actuação, Putin obteve também maior
flexibilidade, articulando estas diferentes dimensões no seu melhor interesse e
no jogo alargado de projecção de poder numa ordem internacional crescentemente
interdependente
28
.
"A preocupação com problemas internos económicos e sociais é uma forma mais
efectiva de proteger os interesses nacionais e assim tornar a Rússia
verdadeiramente um grande país sem depender do velho conceito da "grande
Rússia"."
29
O curso afirmativo das políticas russas é, deste modo, resultado quer de
processos endógenos quer de processos com uma dimensão exógena, seguindo uma
abordagem multinível, visível em políticas duras em casa e numa postura
assertiva nos assuntos internacionais. Com Putin e actualmente Medvedev, esta
tem sido construída sobre um entendimento assimétrico da dicotomia interno/
externo, com enfoque claro na dimensão interna e na necessidade de consolidação
e estabilidade doméstica para alicerçar solidamente o curso afirmativo da
política externa.
O contexto complexo onde a formulação e implementação da política externa
soviética e mais tarde russa tem tido lugar, demonstra que a "Rússia é ainda
movida pela nostalgia de grande potência e pelo desejo de estabilidade interna,
mais do que por atracção pelo estilo de reformas ocidentais"
30
. De facto, em 1989-1991 a transição da política externa soviética para um novo
modelo não conseguiu quebrar velhas práticas. Em 2000, o mesmo aconteceu, não
trazendo democracia às decisões e acções de política externa. "A Rússia falhou
em liberalizar e ocidentalizar, mas não quer também voltar à matriz clássica:
isto é, poder personalizado a par do desejo de se tornar um pilar
civilizacional que seja uma alternativa ao Ocidente, e pretensões de ser
único."
31
Isto resulta em ambivalência e falta de clareza levando a uma conclusão
simples: "quase duas décadas após a queda do comunismo deve-se concluir que
ainda não foi encontrado um equilíbrio satisfatório entre integração e
autonomia."
32
NOTAS
1
Arménia, Azerbaijão, Bielorrússia, Cazaquistão, Estónia, Geórgia, Letónia,
Lituânia, Moldova, Quirguistão, Rússia, Tajiquistão, Turcomenistão, Ucrânia e
Usbequistão.
2
SAKWA, Richard - ""New Cold War" or twenty years' crisis? Russia and
international Politics". In International Affairs. Vol. 84, N.º 2, 2008, p.
261.
3
Cf. por exemplo SAIDEMAN, Stephen, e AYRES, R. William - "Pie crust promises
and the sources of foreign policy: the limited impact of accession and the
priority of domestic constituencies". In Foreign Policy Analysis. Vol. 3, N.º
3, 2007, p. 191.
4
HILL, Christopher - The Changing Politics of Foreign Policy. Basingstoke:
Palgrave MacMillan, 2003, p. 28.
5
NAU, Henry - "Why we fight over foreign policy". In Policy Review. Vol. 14,
N.º 2, 2007, p. 26.
6
Esta proposta de abordagem foi desenvolvida no artigo da autora sobre
"Ukraine's muli-vectorial foreign policy: looking West while not overlooking
its Eastern neighbour". In UNISCI Discussion Papers, Unidad de Investigación
sobre Seguridad y Cooperación Internacional, Universidade Complutense, Madrid,
N.º 20, Maio de 2009, pp. 232-249.
7
LEGVOLD, Robert - "The revolution in Soviet foreign policy". In Foreign
Affairs. Vol. 68, n.º 1, 1988-1989, p. 96.
8
Cf. PORTER, Bruce - "Russia and Europe after the Cold War: the interaction of
domestic and foreign policies". In WALLANDER, Celeste (ed.) - The Sources of
Russian Foreign Policy after the Cold War. The John M. Olin Critical Issues
Series: Westview Press, 1996, p. 121; LOWENHARDT, John - "Russia and Europe:
growing apart together". In The Brown Journal of World Affairs. Vol. VII, N.º
1, 2000, pp. 167-174.
9
KORTUNOV, S. V. - "The fate of Russia: several observations on "new" Russian
identity". In FREIDIN, Gregory (ed.) - Russia at the End of the Twentieth
Century: Culture and its Horizons in Politics and Society (Conference Papers -
Stanford 1998). Stanford: Stanford University, 2000, p. 7.
10
HOSKING, Geoffrey - Russia and the Russians: A History. Harvard: Belknap
Press, 2003, p. 6.
11
GODZIMIRSKI, Jakub - "Putin and post-Soviet identity: building blocks and Buzz
words". In Problems of Post-Communism. Vol. 55, N.º 5, 2008, p. 15.
12
SAKWA, Richard - Soviet Politics in Perspective. 2.ª edição. Londres:
Routledge, 1998, pp. 72, 75-76.
13
Ibidem, p. 72.
14
SHEVTSOVA, Lilia - "Post-communist Russia: a historic opportunity missed". In
International Affairs. Vol. 83, N.º 5, 2007, p. 892.
15
DANIELS, Robert - "From Gorbachev to Putin". In The Nation, 20 de Outubro de
2008, p. 32.
16
SAKWA, Richard - "Perestroika and the challenge for democracy in Russia". In
Demokratizatsiya. Vol. 13, N.º 2, 2005, p. 272.
17
The Constitution of the Russian Federation, cap. 4, artigos 80.º e 86.º.
Disponível em: http://www.constitution.ru/en/10003000-05.htm.
18
Sergei Stankevich citado em RICHTER, James - "Russian foreign policy and the
politics of national identity". In WALLANDER, Celeste (ed.) - The Sources of
Russian Foreign Policy after the Cold War. Nova York: Westview Press, 1996, p.
69.
19
DANIELS, Robert - "From Gorbachev to Putin". In The Nation, 20 de Outubro de
2008, p. 33.
20
Foreign Policy Concept, Russian Federation, 1993.
21
The Basic Provisions of the Military Doctrine of the Russian Federation,
edital 1833, Presidência da Federação Russa, 2 de Novembro de 1993. Disponível
em: http://www.fas.org/nuke/guide/russia/doctrine/russia-mil-doc.html.
22
DONALDSON, Robert H., e NOGEE, Joseph - The Foreign Policy of Russia: Changing
Systems, Enduring Interests. 3.ª edição. Nova York: M. E. Sharpe, 2009, p. 131.
23
DONALDSON, Robert H. - "Boris Ieltsin's foreign policy legacy". Artigo
apresentado na 41st Annual Meeting of the International Studies Association,
Los Angeles, 18 de Março de 2000.
24
SAKWA, Richard - ""New Cold War" or twenty years' crisis? Russia and
international politics", p. 242.
25
FREIRE, Maria Raquel - "Triangulating power: Russia, Europe and the United
States security policies and interests projection in a globalizing world". In
STIVACHTIS, Ioannis (ed.) - International Order in a Globalizing World.
Aldershot: Ashgate, 2007.
26
LIGHT, Margot - "In search of an identity: Russian foreign policy and the end
of ideology". In Communist Studies and Transition Politics. Vol. 19, N.º 3,
2003, p. 48.
27
"Russia: Kremlin sees its foreign policy star on rise". Radio Free Europe/
Radio Liberty (RFE/RL), 21 de Março de 2007.
28
FREIRE, Maria Raquel - "The Russian Federation and CIS States". In KOLODZIEJ,
E., e KANET, R. (eds.) - Consensual or Coercive Hegemon: Either or Neither?
American Power and Global Order. Athens GA: University of Georgia Press, 2008.
29
SLEZNEVA, Ludmilla - "Post-Soviet Russian foreign policy: between doctrine and
pragmatism". In FAWN, Rick (ed.) - Realignments in Russian Foreign Policy.
Londres: Frank Cass, 2003, pp. 26-27.
30
DANIELS, Robert - "From Gorbachev to Putin", p. 36.
31
SHEVTSOVA, Lilia - "Post-Communist Russia: a historic opportunity missed", p.
906.
32
SAKWA, Richard - ""New Cold War" or twenty years' crisis? Russia and
international politics", p. 242.
* Professora auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Doutora em Relações Internacionais pela University de Kent (Canterbury), Reino
Unido. Autora de Conflict and Security in the Former Soviet Union: the Role of
the OSCE (2003)
Rua Dona Estefânia, 195, 5 D
1000-155 Lisboa
Portugal
ipri@ipri.pt