Descontruções e Reconstruções em A Guerra dos Cinco Dias
Descontruções e Reconstruções em A Guerra dos Cinco Dias
Luís Tomé
Professor na Universidade Autónoma de Lisboa e no Instituto de Estudos
Superiores Militares (IESM), é também professor convidado no curso de Defesa
Nacional do IDN. Foi investigador da NATO – EAPC e assessor no Parlamento
Europeu. É co-fundador do Centro Português de Geopolítica, e é autor e co-autor
de cerca de uma dezena de livros e de inúmeros ensaios e artigos. Está a
concluir o doutoramento em Relações Internacionais na Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra com apoio da FCT.
ARMANDO MARQUES GUEDES
A Guerra dos Cinco Dias. A Invasão da Geórgia pela Federação Russa
Lisboa, IESM e Prefácio, 2009, 159 páginas
No dia 7 de Agosto de 2008, a Geórgia encetou uma vasta operação militar contra
a região separatista da Ossétia do Sul onde estavam estacionados peacekeepers
russos. Moscovo reagiu de imediato, fazendo entrar o Exército Federal russo
tanto na Ossétia do Sul como na Abcásia (a outra região separatista da Geórgia)
e, muito mais significativo, no interior do território georgiano incontestado,
ao mesmo tempo que a Força Aérea russa bombardeava posições e cidades
georgianas e que a Armada russa bloqueava e controlava a costa da Geórgia no
mar Negro. Após a mediação da presidência francesa da União Europeia (ue), as
partes em confronto aceitaram estabelecer um cessar-fogo preliminar, a 12 de
Agosto. Nesta altura, porém, a situação estava longe do status quo anterior: os
intensos combates tinham resultado na expulsão dos militares georgianos da
Ossétia do Sul e da Abcásia e no controlo pela Federação Russa de parcelas da
Geórgia incontestada, ocupando cidades como Poti ou Gori e criando buffer zones
em torno das regiões separatistas e check-points no território georgiano. A 26
de Agosto, Moscovo reconhecia as independências da Ossétia do Sul e da Abcásia,
com cujos governos firmou de imediato acordos de assistência bilaterais
«legitimando» o posicionamento protector de tropas russas naquelas regiões. Só
depois, a 9 de Outubro, ficou concluída a retirada russa do território da
Geórgia incontestada.
É este o mote de A Guerra dos Cinco Dias. A Invasão da Geórgia pela Federação
Russa, o novo livro de Armando Marques Guedes, co-editado pela Prefácio e pelo
Instituto de Estudos Superiores Militares (IESM) cujo director, o vice-
almirante Sabino Guerreiro, assina o lúcido prefácio.Neste estudo monográfico,
o antigo presidente do Instituto Diplomático relata os contornos da crise e
leva-nos aos bastidores do conflito, desde os registos discursivos dos actores
directa e indirectamente envolvidos às operações militares, passando pelas
motivações de russos e georgianos ou pormenores inovadores como a «guerra
informática da Rússia e dos hackers na Geórgia», complementados com pertinentes
imagens da guerra e dos principais intervenientes e ainda mapas esclarecedores
colocados em forma de anexo. Estes aspectos já justificariam a pertinência deA
Guerra dos Cinco Dias. A obra vai, porém, muito mais além, contendo vários
outros motivos de nítido interesse.
A iniciativa que originou o deflagrar desta guerra coube ao Presidente da
Geórgia, Mikheil Saakashvili, como, aliás, sublinham os relatórios da OSCE ou
do Parlamento Europeu entretanto divulgados. Saakashvili subira ao poder na
sequência da «Revolução Rosa», em 2003, e embora acusado de práticas
autoritárias, orientou a Geórgia num sentido claramente «pró-Ocidental/anti-
Rússia» e captou o apoio da UE e dos Estados Unidos. Depois de meses de
escalada e de provocações mútuas, a manobra do Presidente georgiano visava
alcançar vários objectivos de uma só assentada: recuperar o controlo da Ossétia
do Sul e da Abcásia, independentes de facto desde o início dos anos 1990 e numa
situação de «conflitos congelados» em virtude da presença russa; desacreditar
os peacekeepers russos ali estacionados, internacionalizando a questão e
substituindo-os por peacekepers ocidentais; remover «abcessos» que travavam a
adesão plena da Geórgia à NATO; contrariar a ressurgência da Rússia e reduzir a
sua influência na Transcaucásia; e fortalecer a sua própria autoridade
internamente. Calculou mal, Saakashvili, muito mal, pois não se pode esperar
dar um murro no nariz do urso sem que este reaja: cerca de dois meses depois da
«troca de cadeiras» dos agora Presidente Medvedev e primeiro-ministro Putin,
uma Rússia ressurgente aproveitou a oportunidade para se afirmar, invocando a
«agressão georgiana» e o «precedente do Kosovo» para amputar a Geórgia, ameaçar
reivindicar a Crimeia ucraniana, travar virtualmente o processo de alargamento
da NATO àqueles dois países, exibir a sua bandeira no mar Negro, articular e
promover os seus interesses numa vasta agenda com os Estados Unidos e a UE e
mostrar, no fundo, não mais estar disposta a recuar e perder influência na
arena internacional e, muito particularmente, no «espaço pós-soviético». Depois
dos energy games, se certos rivais «extra-regionais» só respeitam a linguagem
da força, a nova Rússia mostrava agora uma nova forma de se fazer ouvir e
entender, com uma postura de claro desafio.
É fundamentalmente isto que sustenta o subtítulo deste livro (A Invasão da
Geórgia pela Federação Russa), ponto de partida propositadamente controverso.
Efectivamente, muito mais do debater quem originou a guerra propriamente dita e
independentemente dessas discussões que também «desconstrói», Armando Marques
Guedes argumenta que a intervenção da Rússia na Geórgia «fez parte de um
conjunto de medidas russas de afirmação nacional numa das suas zonas de
influência tradicional». Por conseguinte, demonstrando que a reacção russa foi
tudo menos improvisada, enfatiza as proactivas «manobras do Kremlin» antes,
durante e depois do conflito, situando-as nos contextos geopolítico,
geoestratégico e geoeconómico que lhe dão sentido: os efeitos resultantes da
ascensão de Putin, a noção de «democracia soberana», as novas política externa
e doutrina militar russas, os «interesses especiais» de Moscovo no seu
«estrangeiro próximo», os efeitos da crise económico-financeira na Rússia, as
relações com os Estados Unidos, a NATO e a UE, a aliança táctica com os
«Bolivarianistas» da América Latina, a presença naval russa no Mediterrâneo ou
o interesse russo no Árctico são aspectos aqui interligados com a «questão
georgiana». O professor catedrático fornece neste trabalho, assim, informações
e argumentos de sobra para, pelo menos, nos interrogarmos sobre os fundamentos
daquela guerra, situando-a e explicando-a nas suas múltiplas dimensões.
Por outro lado, mesmo que para muitos pareça um problema remoto e um
«terramoto» passageiro, a «guerra dos cinco dias» não podia deixar de ter
profundas implicações geopolíticas nos níveis regional, macro-regional e
global, implicações essas equacionadas igualmente em A Guerra dos Cinco Dias.
De facto, empregando uma análise verdadeiramente multidimensional, Armando
Marques Guedes reflecte sobre as reconfigurações na política internacional
global e, mais concretamente, na bacia do mar Negro à luz do que considera «a
invasão da Geórgia», avaliando não só os reposicionamentos da Federação Russa e
de outros países «residentes» na área mas também da UE, dos Estados Unidos e da
NATO, aludindo igualmente à respectiva «dança sincronizada» dos países
europeus, ao regresso à Europa da «política de grandes potências» e de «zonas
de influência», aos projectos «ocidentais» de expansão ou às políticas de
gestão e segurança energéticas.
A pertinência e o interesse deste livro são salientados ainda pelo facto de as
comunidades académicas, militares e político-diplomáticas parecerem desatentas
à ressurgência da Rússia, às mutações e jogadas geopolíticas na macro-região do
mar Negro à Ásia Central e, em particular, ao significado desta guerra na
Geórgia. Manifestamente, Armando Marques Guedes é dos poucos entre nós que
exaustivamente vem acompanhando e estudando aquelas temáticas, fazendo uso da
sua ecléctica formação académica, de uma ampla variedade de experiências e de
uma invulgar rede de contactos e conhecimentos, incluindo a ligação a
personalidades e think tanks da região e várias anteriores palestras e
publicações sobre temas relacionados. Foi dando continuidade a esse trabalho e
desse acervo que retirou muitas das informações e ilações que apresenta em A
Guerra dos Cinco Dias. A Invasão da Geórgia pela Federação Russa, empregando um
método que apelida de «construtivismo desconstrutivista» e «institucional-
construtivista». Como marca fundamental, o livro desconstrói para remontar
cuidadosamente; descreve mas também analisa; provoca e contra-argumenta ao
mesmo tempo que arrisca explicações; questiona mas responde; denuncia mas
compreende.
E porque a realidade é uma construção permanente, particularmente na sequência
de acontecimentos «detonadores» como esta guerra, Armando Marques Guedes já
deu, entretanto, continuidade àquele estudo, desta feita em conjunto com Radu
Dudau, director do Instituto Diplomático da Roménia, num novo ensaio
esclarecedoramente intitulado The Regional Aftermath of the «Five-Day War»:
Political, Economic, and Security Overheads of the conflict in Georgia. Neste
novo trabalho, nesta altura ainda no prelo e a dar à estampa igualmente com a
chancela do IESM, Marques Guedes e Dudau dão conta das reorientações político-
diplomáticas, económicas e militares do Azerbaijão, da Turquia, da Arménia, do
Irão, da Ucrânia e, claro, da Geórgia, na sequência dos impactos e, portanto,
das oportunidades e dos riscos percepcionados e desencadeados pelo conflito de
Agosto de 2008, relevando as dimensões da segurança e da energia e mapeando, em
síntese, as metamorfoses geopolíticas em curso na Grande Região do Mar Negro.
Trata-se de mais um trabalho de grande interesse e actualidade. Para melhor o
compreender impõe-se, todavia, a leitura prévia e atenta de A Guerra dos Cinco
Dias.
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