Um olhar diferente sobre a República Islâmica
Um olhar diferente sobre a República Islâmica
Margarida Santos Lopes
Redactora principal do jornal Público. Escreve sobre Israel, o mundo árabe e
muçulmano desde 1979. É autora de Dicionário do Islão, Palavras, Figuras e
Histórias (Editorial Notícias) e Arafat, A Pedra Que Os Palestinianos Lançaram
ao Mundo (ed. Público).
NAHID MOZAFFARI (ORG.)
Um Bom Escritor É Um Escritor Morto ' Antologia de Escritores Iranianos
Tradução: Luís Oliveira Santos e Manuel Abrantes
Lisboa, Nova Vega, 2009, 216 páginas
O romancista Esmail Fassih observou, em 1987, que «nas esplendorosas terras do
Irão, um bom escritor é um escritor morto» ' é este o título, em português, de
uma admirável antologia editada pela Nova Vega, que permite um olhar diferente
sobre a República Islâmica. Infelizmente, sob o actual regime teocrático, já
nem os escritores mortos são bons escritores. Veja-se o caso de Anna Karenina
de Tolstoi, arrasado por um grupo de deputados ultraconservadores de Teerão,
porque «propaga a cultura do álcool e das relações extraconjugais, elimina o
estigma associado ao pecado e glorifica a aristocracia».
Tolstoi não foi o único a ser atacado. «Dostoievski precisa de licença»,
titulou em primeira página um jornal de Teerão, referindo-se à decisão do
Presidente Mahmoud Ahmadinejad de reforçar as «competências» dos censores,
dando-lhes poderes não apenas para impedir a publicação de novos títulos mas
também a reedição de clássicos da literatura persa e mundial.
A amarga realidade é constatada em Crónica da Vitória dos Magos, de Hushgang
Golshiri, um dos escritores incluídos nesta antologia, na seguinte passagem: «E
quando dermos por isso, nem sequer permitem Ferdowsi nos nossos cemitérios. As
coisas não tinham chegado a esse ponto, embora houvesse quem dissesse que os
poemas de Ferdowsi estavam a ser eliminados dos manuais escolares» (p. 32).
Autor do monumental Shahnameh (Livro dos Reis), Ferdowsi é o grande poeta
nacional do Irão. Os iranianos inscrevem os seus poemas nas lápides das
sepulturas.
Desde a sua primeira eleição, em 2005, Ahmadinejad recrutou mais e mais
censores para o Ministério da Cultura e Orientação Islâmica e, com isso, mais e
mais editoras abriram falência. Nada é publicado no Irão sem emendas e
aprovação oficial.«Escritores e editores contam histórias kafkianas de censores
invisíveis, que apenas são conhecidos pelos seus números ' a qualquer momento,
o censor 101 pode agarrar numa obra e bloqueá-la», observou Kasri Naji, autor
da biografia Ahmadinejad ' The Secret History of Iran's Radical Leader.
Leia-se esta estória de Ghazi Rabihavi, outro autor que a editora iraniana
Nahid Mozaffari incluiu (p. 58) e cita na introdução (pp. 14-15) da antologia
que organizou:
«Uma vez, um escritor iraniano escreveu um romance de 179 páginas e,
como qualquer escritor iraniano, apresentou-o ao Ministério da
Orientação Islâmica no sentido de obter autorização para o publicar.
Depois o escritor esperou. O livro começava com a seguinte passagem:
Ela sabia que se sentiria melhor assim que o marido lhe trouxesse
uma chávena de café, tal como nos outros dias. De pé à beira da
janela, o vento deslizava delicadamente sobre os seus braços
castanhos e os seus olhos estavam postos sobre o sol nascente que se
erguia sobre os edifícios do governo. Era um nascer-do-sol que era
como um pôr-do-sol. Após treze meses passados a subir as escadas
escorregadias da burocracia, o escritor iraniano conseguiu finalmente
uma reunião com o director da censura. O director era apenas uma
cabeça. O seu corpo estava escondido por detrás da secretária e
parecia reclinar-se delicadamente contra algo macio. A cabeça
proferiu o seguinte discurso: Infelizmente, o seu livro tem alguns
problemas que não podem ser corrigidos. Estou certo de que concordará
comigo. Atente nestas primeiras frases em lado nenhum na nossa nobre
cultura encontrará uma mulher à espera que o marido lhe leve uma
chávena de café. Certo? Bom, outro problema é a imagem do vento
deslizando sobre os braços nus que é provocadora e tem conotações
sexuais. Por fim, em lado nenhum, em qualquer cultura nobre,
encontrará um nascer do sol que se pareça com um pôr-do-sol. Talvez
seja um erro tipográfico. Pronto. Aqui tem o seu livro. Espero que
escreva outro em breve. Nós apoiamo-lo. Apoiamo-lo. E a sua cabeça
escorregou por debaixo da mesa.»
CHEIRAM A TUA BOCA
No país onde o principal censor para o cinema foi até recentemente um cego,
veterano da Guerra Irão-Iraque (1980-1988), a censura tornou-se tão
generalizada que 134 escritores publicaram, em 1994, uma «carta aberta ao povo
do Irão», alertando para uma grave crise social e cultural. Um extracto dessa
declaração consta também de Um Bom Escritor É Um Escritor Morto, magnífico
livro que, em inglês, mereceu o título de Strange Times, My Dear, justa
homenagem a Ahmad Shamlu ' um dos poetas contemporâneos iranianos mais
importantes.
Ao contrário da versão em inglês, a edição portuguesa inclui apenas obras de
ficção e não de poesia, por isso, um dos mais belos poemas de Shamlu, In This
Blind Alley, grito de revolta contra os que usaram o derrube do imperador
Pahlavi para construir uma teocracia e não a democracia, está ausente desta
antologia. A tradução do persa, por Karimi-Hakkak, pode ser lida em From Desire
to Disillusion: Three Poems by Ahmad Shamlu (Iranian Studies, vol. 30, 1997).
«They smell your mouth
lest you might have said: I love you,
they smell your heart.
Strange times, my dear.»[i]
Foi um trabalho excepcional, o de Nahid Mozzafari, doutorada em Estudos do
Médio Oriente pela Universidade de Harvard. Com o apoio de várias instituições,
em particular, do PEN Center USA, não hesitou em instaurar um processo judicial
ao Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, que proíbe a «colaboração
directa» entre editores americanos e escritores de «nações inimigas» (como o
Irão ou Cuba), para dar a conhecer aos leitores ocidentais «os novos rumos» da
literatura iraniana.
QUESTÕES NOVAS E TABUS VELHOS
Assim, os que já conheciam o épico de Ferdowsi, as Rubbâyat de Omar Kayyam, o
Jardim das Rosas de Sa'adi Shirazi, os poemas sufis de Rumi (que muitos veneram
como «o Corão persa») e/ou o Diwân de Hafez (presente em todas as casas
iranianas) podem agora apreciar outros escritores ' homens e mulheres ' como
Simin Daneshvar, a primeira romancista iraniana, que ainda vive em Teerão, ou
Nassim Khaksar, exilado na Holanda.
Daneshvar e Khaksar incluem-se num primeiro grupo, onde também estão Mahmud
Dowlatabadi, Hushgang Golshri e Iraj Pezeshkad ' «os já publicados e
estabelecidos» antes da queda da monarquia em 1979 e que «continuaram a
escrever depois dela». Os seus temas incidem sobre «poder e corrupção,
diferenças de classe ou incerteza de identidade, alienação e fraquezas dos
intelectuais». Absolutamente delicioso, o conto «Consequências atrasadas da
Revolução», de Iraj Pezeshkad, uma crítica mordaz à vida ociosa da antiga elite
da corte Pahlavi agora no exílio.
É extraordinário, também, que alguns destes escritores nos levem, através das
suas narrativas, ao encontro e reencontro de outros, como Nasser Khosrow, o
poeta e filósofo do século xi (pp. 53 e 69), Sadegh Hedayat (1903-1951), famoso
pela linguagem coloquial, autor de Alaviyeh Khanum (p. 62), Hakim Nezami
Ganjavi, que escreveu, no século xii, Leyli e Majnum, tragédia amorosa
semelhante à de Romeu e Julieta (p. 140).
Num segundo grupo, o dos que «começaram a escrever, publicar e a ser lidos
depois da revolução», Nahid Mozzafari incluiu Reza Daneshvar, Farkondeh Aghai,
Aashgar Abdollahi, Seyyed Ebrahim Nabavi (duas vezes detido por a sua sátira
«ser, talvez, demasiado satírica»), Shahriyar Mandanipur, Ghazi Rabihavi e Goli
Taraghi ' a escritora a que totalmente nos rendemos «Num outro lugar» (pp. 164-
211), o conto final.
Este segundo grupo é o dos escritores mais jovens, os que abordam questões
novas e velhos tabus. Destaque para o relato da amizade singular entre o
muçulmano Idris e o judeu Elfi, em «Um quarto cheio de pó» (p. 128), e para a
descrição comovente da execução de um homossexual, em «Pedra Branca» (p. 158).
Um Bom Escritor É Um Escritor Morto é um livro precioso, com excelente tradução
de Luís Oliveira Santos e revisão de tradução de Manuel Abrantes. As notas de
rodapé contribuem, em muito, para esta preciosidade, porque constituem um guia
excepcional para o leitor menos familiarizado com as tradições sociais,
religiosas e políticas da antiga Pérsia e do actual Irão.
NOTA
[i] Tradução da autora: «Eles cheiram a tua boca / não vás ter dito: amo-te /
eles cheiram o teu coração / Tempos estranhos, minha querida».
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