O Estado em reconstrução e a sua constituição. A intervenção no Iraque
A elaboração de uma constituição numa situação de pós-conflito é um processo de
extrema importância para garantir a coesão e reconciliação social, bem como uma
paz duradoura
1
. Para tanto, é relevante não apenas o seu conteúdo, como também a forma como é
elaborada e adoptada, sendo que não raras vezes o procedimento constituinte e o
próprio texto constitucional são impostos externamente ou absorvidos pelas
elites locais de acordo com modelos liberais. O caso recente do Iraque é um
exemplo paradigmático.
Com a autonomização do statebuildingcomo um subproduto do peacebuilding, a
dimensão político-constitucional da reconstrução de um Estado ganhou novo
enlevo. Tratando-se do instrumento jurídico fundamental organizador da
comunidade estadual, a Constituição tem um papel estrutural relevante na
construção política, social e económica de um Estado, bem como na garantia dos
direitos fundamentais dos seus cidadãos. Assume-se, assim, como um elemento
estruturante para o desenvolvimento de um Estado numa situação de pós-conflito,
para a coexistência pacífica dos seus cidadãos e, em última análise, para fazer
cessar a violência e evitar o seu ressurgimento, e assim propiciar uma paz
duradoura.
Porém, tal como no processo de statebuildingno seu todo, também o processo
constituinte nele integrado enferma de diversos dilemas e perversidades. Assim,
ao mesmo tempo que deve ser reconhecida a importância do papel da Constituição
no statebuilding, importa igualmente integrar a problemática nos dilemas
inerentes àquele processo, designadamente os que resultam da intervenção
externa na elaboração da uma constituição.
O caso do Iraque, onde decorre um processo de statebuilding, é, de certa forma,
único
2
. De facto, a necessidade de reconstrução do Estado iraquiano advém não de um
conflito interno, mas antes de uma intervenção militar externa. Esta
especificidade é relevante para o presente estudo uma vez que permite analisar
a influência da intervenção externa no processo de elaboração da Constituição
de uma forma maximizada. A intervenção armada no Iraque foi feita segundo uma
agenda própria dos agressores externos que agiram em função de interesses não
totalmente coincidentes com os dos iraquianos. Naturalmente, tentaram usar a
Constituição para estruturar um Estado de modo concordante com os propósitos
económicos e geopolíticos que presidiram à intervenção, bem como em função dos
seus modelos político-ideológicos de referência.
Posto isto, o presente ensaio pretende estudar a importância da dimensão
político-constitucional como elemento do statebuilding, bem como analisar os
dilemas e perversidades inerentes, designadamente os que resultam da
intervenção dos actores externos. A ilustração do caso de transição política no
Iraque, de Junho de 2003 a Outubro de 2005, facilitará, crê-se, a compreensão
da problemática.
Assim, numa primeira etapa, será abordada a dimensão político-constitucional do
statebuilding, onde se procurará caracterizar a Constituição como um elemento
de statebuildinge descrever a sua elaboração neste contexto. Depois, numa
segunda fase, será estudada a elaboração da Constituição no Iraque pós-
intervenção, abordando a relação entre a intervenção, o statebuildinge o
procedimento constituinte observado no Iraque.
A DIMENSÃO POLÍTICO-CONSTITUCIONAL DO STATEBUILDING
A Constituição como Elemento do Statebuilding
Com o fim da Guerra Fria, as Nações Unidas reciclaram doutrinalmente as
operações de paz clássicas até então predominantes, consagrando definitivamente
as operações de peacebuildingcomo as actividades de segurança dominantes da
organização3. A Agenda para a Paz do então secretário-geral Boutros-Ghali
constituiu um contributo importante para a mudança de paradigma doutrinal ao
estabelecer o peacebuildingcomo uma actividade que tinha como objectivo
identificar e apoiar estruturas que permitissem a consolidação da paz e evitar
o regresso ao conflito
4
. Porém, as chamadas missões de peacebuildingde primeira geração definhavam por
serem demasiado breves, de âmbito limitado e essencialmente focadas em
apressadas reformas político-económicas. Assim, a partir do final dos anos
1990, assistiu-se a uma progressiva evolução para missões de peacebuildingcom
mandatos de âmbito mais alargado e com objectivos a longo prazo. O
peacebuildingé, pois, hoje entendido pelas Nações Unidas como uma actividade
complexa, multifacetada e de longa duração que tem como objectivo criar
condições para uma paz sustentável actuando ao nível das causas estruturais do
conflito, procurando, designadamente, criar as condições para que o Estado
possa exercer de forma efectiva e legítima as suas funções essenciais
5
.
No virar do milénio, o statebuildingcomeçou a emergir como um macro-objectivo
do peacebuilding, em que é dada especial ênfase à reconstrução pós-conflito de
um Estado em fase de transição, designadamente no que respeita ao reforço da
sua capacidade governativa. O statebuildingassenta na ideia de que a segurança
e o desenvolvimento em sociedades pós-conflito dependem da existência de
instituições governativas legítimas, autónomas e eficazes6. Esta dimensão do
peacebuildingsó mais recentemente ganhou consistência própria quando em 2004
autores como Francis Fukuyama7, Simon Chesterman8, James Fearon e David
Laitin9, Stephen Krasner
10
, e Roland Paris
11
, embora com propostas conceptuais diferentes, abordaram o
statebuildingenquanto elemento esquecido do peacebuilding. Mesmo se ainda
envolto em alguma polémica e até suspeição, o statebuildingpassou, desde então,
a merecer uma atenção devota por parte quer de académicos quer de pessoas e
instituições envolvidos em actividades de peacebuilding. O statebuildingé um
processo muito exigente do ponto de vista da sua definição e execução. Em
última análise porque pretende transformar uma entidade política enfraquecida
num Estado de soberania auto-suficiente e capaz de exercer funções
características do Estado moderno, como garantir a sua segurança, a sua
representação externa, a aplicação da lei, a cobrança de impostos, a gestão do
território ou o fornecimento de bens e serviços básicos. Ora, tal ambição não
pode deixar de estar envolta numa enorme complexidade. O sucesso de uma
operação deste género, que é multifacetada e que actua a diferentes níveis
macro e micro, está sujeita a diversas variáveis difíceis de gerir, tais como o
conhecimento preciso da realidade no terreno, a adopção da estratégia
casuística adequada, a identificação das áreas mais carenciadas e o acerto da
intensidade da intervenção ou a duração da operação. Para mais, deve estar
prevista a flexibilidade suficiente que permita uma fácil adaptação das
variáveis em função da evolução do processo.
Toda esta complexidade subjacente e o facto de se estar a proceder a uma
cirurgia cardiotorácica a um Estado com consequências directas na fisiologia da
sua personalidade, não pode deixar de acarretar dilemas que alimentam algum
discurso crítico relativamente ao statebuilding. A própria referência ao termo
«Estado» que se pretende reconstruir pode ser instintivamente associada à
instituição opressiva dominada por elites que hajam alimentado o conflito.
Roland Paris e Timothy Sisk identificam cinco categorias genéricas de dilemas
12
. Primeiro, a que advém do modelo de operação, onde sobressai a dificuldade em
encontrar um equilíbrio entre, por um lado, a utilidade de uma intervenção
externa forte e pesada e, por outro, o benefício em conferir aos actores locais
a liderança na condução do processo de reconstrução. Depois, a questão da
duração da operação, sabendo que sendo por natureza uma operação de longa
duração, o statebuildingpode gerar animosidade local contra os actores externos
intervenientes e alimentar uma passividade contraproducente, para além de
consumir muitos recursos, que, é sabido, são limitados. Em terceiro lugar, o
dilema que resulta da dominação pelas elites locais que emergem do conflito no
processo político, por vezes com prejuízo para a efectiva representação das
populações. Um outro dilema é o que resulta da tendência para a intervenção
prolongada criar na sociedade local uma dependência indesejável do auxílio
internacional. Por fim, haverá igualmente a salientar os dilemas relacionados
com as dificuldades em conseguir coerência na actuação entre os vários actores
envolvidos, como também a disparidade que por vezes se verifica entre os
valores que informam em abstracto o statebuilding e as políticas que, por
razões diversas, são efectivamente implementadas no terreno.
Na raiz de vários destes dilemas está o facto de o statebuildingse caracterizar
por ser uma intervenção externa no Estado pós-conflito que haverá que
reconstruir. Não quer isto dizer que a intervenção, pelo menos em teoria, não
possa incluir abordagens quer top-downquer bottom-up. Idealmente, a intervenção
externa deveria até limitar-se a fomentar e apoiar uma forte dinâmica interna
político-social
13
liderada pelos actores locais
14
.
Ainda assim, o que na prática frequentemente acontece é que a intervenção
externa se impõe de forma intrusiva à dinâmica político-social interna. Tal é
facilmente verificável quando são os actores estrangeiros que designam os
actores locais que participarão no statebuilding, escolhendo as elites que
reúnem determinadas características entendidas pelo exterior como sendo as
ideais para reanimar o Estado debilitado ou impondo determinados modelos e
valores que, apesar de não terem reflexo localmente, são entendidos como a
revelação ao ignorante da verdade suprema. Tudo isto, reconheça-se, tanto pode
ser oferecido de forma autêntica e altruísta, de forma ingénua e mal planeada,
como também de forma armadilhada na tentativa de impor uma agenda em proveito
de interesses próprios.
Neste quadro teórico de intrínseca bondade original mas enfermado de dilemas
que correm o risco de a corromperem, podem ser identificadas diversas dimensões
conceptuais. Uma das dimensões clássicas do peacebuildingé a dimensão político-
constitucional
15
que, pelo seu teor, informa de maneira característica o statebuilding. A
construção de um Estado passa necessariamente pela criação de um quadro
político-social que tem a Constituição como vértice proeminente e director.
A Constituição é o estatuto jurídico fundamental organizador da comunidade
estadual. Goza de superioridade jurídica normativa e pretende organizar do
ponto de vista político, económico e social a comunidade estadual e garantir os
direitos fundamentais dos seus cidadãos. Num processo de transição pós-
conflito, a adopção de uma constituição é um passo fundamental para estruturar
o Estado em reconstrução e garantir a estabilidade e funcionamento democrático
das instituições político-sociais, assegurando igualmente a coexistência
pacífica em sociedades multiétnicas em que o factor identidade, que por vezes
anima a violência
16
, constituiu uma variável da coexistência nacional inclusiva e pacífica.
O referente da Constituição é, desde o século XIX, o Estado17. Porém, até
recentemente, a teoria da Constituição debruçava-se essencialmente sobre o
processo constituinte em situações de estabilidade política.
Num contexto de transição pós-conflito, a perspectiva realista encara a
Constituição como um reflexo do equilíbrio de poderes num dado momento, não lhe
reconhecendo qualquer papel especial de mudança ou transição. Já a abordagem
idealista vê a Constituição como um acto fundacional que provoca um corte entre
o antigo e o novo regime político. Contudo, numa situação de pós-conflito é
possível reconhecer, ainda, um constitucionalismo de transição que almeja
enquadrar fenómenos multifacetados de mudança social
18
e de reconstrução de instituições democráticas, que sejam funcionais e
inclusivas numa lógica de transição e não de reforço de estruturas opressoras.
A Constituição afirma-se como um elemento aglutinador de coexistência social e
de paz numa comunidade estadual. Não só serve de referente máximo para o
funcionamento democrático e estruturado dos órgãos de soberania, como
cristaliza os mais fundamentais padrões axiológico-normativos da comunidade,
assegurando o seu regular funcionamento do ponto de vista político, social e
económico em direcção ao desenvolvimento e ao bem-estar.
Reconheça-se, todavia, que esta estabilidade tão desejada que é conferida pela
Constituição tem-se baseado em modelos de democracia liberal que aquele
instrumento fundamental acaba por trazer para uma dada comunidade. Esta
tendência denota não tanto a aceitação do modelo liberal como um modelo
universal, mas mais uma expansão induzida deste modelo
19
. Sendo adoptado de forma mais ou menos marcada pela maioria dos países
desenvolvidos, este modelo acaba por ser a principal exportação dos actores
externos do statebuilding. Esclareça-se que não se trata apenas de exportar um
conteúdo, mas também um procedimento constituinte. Por outro lado, é todo o
ordenamento jurídico e de organização institucional que terá de ser elaborado
de novo ou revisto em função da nova Constituição. Na prática, poderá assistir-
se a uma tendência para a globalização de um modelo de Estado.
Tal vem suscitar uma série de dilemas a que já se fez referência. Assim, a
problemática da intervenção externa no statebuildingtem, como não poderia
deixar de ter, reflexo no procedimento constituinte e no seu produto final.
Sabendo já da relevância que a Constituição tem na organização da comunidade
estadual, este é o apogeu da problemática da intervenção externa no processo de
statebuilding.
A elaboração da Constituição num processo de statebuilding
Existem determinados elementos que caracterizam uma Constituição. Em primeiro
lugar, trata-se de uma lei proeminente que incorpora um núcleo duro de direito
imperativo que se impõe aos membros da comunidade, gozando de supremacia no
seio do ordenamento jurídico interno. Depois, garante os direitos fundamentais
da pessoa humana, enquanto padrão de conduta da comunidade assente num
substrato humano. Acresce que a Constituição prevê uma base institucional, com
inspiração no princípio da separação de poderes, que serve de garantia da ordem
jurídica da comunidade.
O povo, entendido como uma grandeza pluralística, é o titular do poder
constituinte
20
. Como escreve Jorge Miranda, «é cada povo, em cada momento, que faz as opções
básicas da sua vida colectiva ' políticas, económicas e sociais ' através do
exercício do poder constituinte»21. Compete, pois, ao povo de cada Estado
empreender o procedimento constituinte, processo pelo qual é revelada a
Constituição, conferindo-lhe legitimidade e, logo, conferindo fundamento à
legitimação do exercício do poder político derivado.
Num contexto de statebuilding, a participação do povo na condução do
procedimento constituinte tem, pois, desde logo, uma função legitimadora.
Ademais, é possível estabelecer uma relevância directa entre a participação
popular e o controlo e redução da violência22. Afigura-se, pois, fundamental
que o procedimento seja informado por consultas à população, abertura à
manifestação e debate de posições políticas diferentes e que o processo de
adopção da Constituição seja representativo. Porém, importa ter presente que a
participação popular pode ser muito difícil de organizar e gerir. A intervenção
institucional neste processo é essencial, especialmente em zonas onde não
exista tradição de participação eleitoral ou onde a legitimidade dos delegados
constituintes é posta em causa.
Em processos de statebuildingtêm sido observados diferentes abordagens ao
procedimento constituinte. Este pode ser decomposto em diversas etapas,
nomeadamente, a fase de negociação das regras procedimentais, a de elaboração
de documentos interinos e de princípios directores, a preparação de um
projecto, a adopção do projecto e, finalmente, a sua promulgação e entrada em
vigor. Estas etapas podem ser enquadradas formalmente de modos muito diversos.
Num dos modelos mais comuns, uma comissão elabora o texto a pedido do poder
executivo que depois submete a proposta à assembleia constituinte para
deliberação e aprovação. Um outro processo consiste na elaboração de linhas
orientadoras por uma conferência que elege posteriormente um órgão legislativo
de entre os seus membros. O órgão legislativo nomeia, então, uma comissão para
elaborar o texto, que depois é debatido naquele órgão e sujeito a referendo.
Outras abordagens incluem processos dirigidos pelo poder executivo ou textos
constitucionais que resultam directamente de negociações de paz.
A escolha do órgão deliberativo é fundamental, havendo estudos que demonstram
existir uma correlação entre a maior representatividade do principal órgão
deliberativo e a redução da violência23. Por outro lado, o método de selecção
do órgão deliberativo principal tem, igualmente, relevância, sendo que também
nesta fase a maior representatividade parece estar relacionada com uma redução
da violência. Um outro grande desafio é, assim, o de incentivar os actores
internos com maior poder e influência a participar, sem abdicar da participação
popular no processo, fomentando o diálogo político e garantindo o exercício do
poder constituinte pelo povo24. Uma participação pública ampla e consultas
populares são importantes para desenvolver o sentimento na população de que a
nova Constituição é um instrumento fundamental que lhe pertence e relativamente
ao qual deve diligenciar pela sua implementação, e não um diktatdistante para
ser usado pelas elites em proveito próprio
25
.
No âmbito do statebuildingé característico o esforço em estabelecer processos
eleitorais democráticos como forma de, precisamente, assegurar a
representatividade e acomodar as diferenças de identidades, principalmente em
estados anteriormente autoritários. Paradoxalmente, os processos eleitorais
frequentemente exacerbam as tensões intergrupais e dão origem a novos
conflitos. Para mais, sendo que a partir dos anos 1990 a maioria dos conflitos
tem natureza intra-estatal, a «identidade» tem sido um elemento relevante na
dinâmica do conflito. Daí que o reconhecimento e a gestão da «diferença» se
assuma como fundamental no procedimento constituinte
26
.
A escolha do modelo constitucional de exercício do poder é um outro aspecto que
deve merecer atenção cuidada. A edificação constitucional de estruturas
institucionais que mantenham um comportamento moderado é um aspecto relevante
em ambientes de pós-conflito, sendo determinante para prevenir o regresso ao
conflito
27
. O modelo de maioria simples tende a propiciar conflitos em sociedades
altamente divididas. Em alternativa, podem ser adoptados modelos de divisão
voluntária do poder entre grupos autónomos mas cooperativos ou modelos de
governação integrada que pretende superar as diferenças entre os grupos
encorajando-os a agirem em função de objectivos políticos comuns.
As elites têm uma grande influência no procedimento constituinte, que tanto
pode ser benéfico como intrusivo e deslegitimador. Mesmo quando o procedimento
constituinte é conduzido pelos actores políticos internos, existe por vezes uma
tendência para as elites se apropriarem de modelos constitucionais externos,
frequentemente das antigas potências colonizadoras. São normalmente modelos
liberais que nem sempre espelham a realidade axiológico-cultural local,
incorrendo no drama de criar contextos políticos artificiais que podem
facilmente desabar e redundar num novo conflito. Por outro lado, as elites
podem adoptar modelos que garantam a obtenção ou a conservação de poder para
si, marginalizando a vontade, os interesses e as expectativas da restante
população. Todavia, as elites podem, e devem, ter igualmente um papel relevante
no procedimento constituinte enquanto agirem como representantes de todo o
povo, detentor primário do poder constituinte.
Os actores externos trazem consigo grandes quantidades de recursos que são
muito atractivos para as populações e para as elites locais. Por outro lado,
trazem também modelos próprios que procuram impor, muitas vezes opostos aos das
elites locais
28
. Estas podem reagir de modo diverso, mais ou menos hostil. Naturalmente, as
elites tentarão conduzir o processo de statebuilding, podendo acontecer que os
actores externos se transformem em agentes das elites e que os recursos
internacionais sejam por elas geridos. Contudo, é expectável que os actores
externos imponham condições relativamente ao seu papel no statebuildinge quanto
à gestão dos recursos que trazem, especialmente quando as elites estiverem
ligadas directamente ao conflito que debilitou o Estado. Pode mesmo acontecer
que actores externos e elites locais não consigam chegar a um compromisso. Por
isso, é importante não só que os actores externos procurem cooperar com as
elites e a população em geral envolvendo-os directamente no processo de
statebuilding, como também que se consiga concertar um modelo político-
constitucional para o Estado decidido pelas elites e população locais com o
apoio dos actores externos. Passa, assim, a existir um compromisso público das
elites para com a população e os actores externos relativamente ao procedimento
constituinte e ao substrato fundamental que dele resultará.
A intervenção externa que limite o exercício do poder constituinte de que o
povo é titular retira legitimidade à Constituição e ao processo político
derivado. Aqui reside o grande dilema da dimensão político-constitucional do
statebuilding: a acção dos actores externos não se pode sobrepor à legitimidade
do povo de conduzir o procedimento constituinte. Para além da questão da
legitimidade, a intervenção externa deve, igualmente, ser lícita. O
statebuildingnão pode redundar na violação do direito à autodeterminação ou do
princípio geral da proibição da ameaça ou recurso à força. Philipp Dann e Zaid
Al-Ali identificam três categorias de intervenção externa no procedimento
constituinte, atendendo ao grau de intervenção: total, parcial e marginal
29
. A intervenção será total quando a Constituição não foi redigida nem adoptada
por actores locais, por exemplo, quando resultam de negociações de paz
internacionais. A intervenção pode ser marginal quando a influência se resume a
aconselhamento por peritos estrangeiros a pedido dos actores locais. O processo
constituinte permanece sob tutela dos actores locais. Finalmente, a intervenção
pode ser parcial quando o procedimento constituinte é orientado até um certo
nível, do ponto de vista processual e substantivo, por actores externos, sendo
que o poder último de redacção e adopção da Constituição permanece na esfera
dos actores locais.
A indução externa de modelos constitucionais, por contraponto à sua adopção
voluntária pelas forças políticas internas, pode gerar uma divisão de poder
meramente formal e de compromisso desconfortável para todas as partes. O risco
de regresso ao conflito é, pois, muito maior. Além do mais, o procedimento
constituinte deve permanecer sob o domínio do povo. Assim, apenas as
intervenções externas parciais ou marginais parecem ser de admitir.
A ELABORAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO NO IRAQUE PÓS-INTERVENÇÃO
A invasão e a intervenção externa
A 20 de Março de 2003, uma coligação militar liderada pelos Estados Unidos
invadiu o Iraque, em violação do direito internacional, com o pretexto de que
este Estado possuía armas de destruição maciça o que representaria uma ameaça à
paz e à segurança internacionais (para além das mal fundadas acusações de
colaboração com grupos terroristas). Concluiu-se depois que as armas de
destruição maciça que serviram de justificação à agressão não existiam
30
. Por outro lado, a rápida e esmagadora vitória militar sobre as forças armadas
iraquianas não teve sequência em termos de estabilização do Iraque. Ao
contrário do que previa Donald Rumsfeld, as tropas da coligação não foram
recebidas em Bagdade com as flores com que se agraciam os «libertadores».
A intervenção da coligação liderada pelos Estados Unidos deixou bem patente
uma, pelo menos inicial, falta de planeamento e descoordenação no processo de
transição e de reconstrução do Iraque. É significativo que tenha sido
principalmente o Pentágono a planear o «novo» Iraque. A estratégia de
«desbaatização» que se impôs sobre a de «des-sadamização», esta defendida pelo
Departamento de Estado dos Estados Unidos, é um exemplo da desarticulação no
planeamento que marcou de forma negativa os destinos do Iraque. Por outro lado,
a doutrina neoconservadora que impregnava o Pentágono teve um claro reflexo na
forma como a reconstrução foi conduzida. Assim como tiveram os episódios em que
a competência dos nomeados para exercerem funções essenciais era medida em
função da fidelidade ao Partido Republicano. Este quadro surrealista tem outros
elementos de proporções desequilibradas: o vice-rei Paul Bremer, representante
todo-poderoso da potência ocupante; a falta de recursos humanos e materiais
adequados à reconstrução; a relutância no envolvimento de iraquianos; a
tentativa de imposição de modelos; ou a calendarização da elaboração da
Constituição do Iraque em função das eleições americanas são alguns dos
exemplos. Perante este cenário surrealista de quem vem libertar e trazer a
civilização mas que parece não ter efectivamente planeado o pós-intervenção,
fica a pergunta: mas afinal o que foi a «coligação de boa vontade» fazer ao
Iraque?
A intervenção da coligação liderada pelos Estados Unidos redundou numa ocupação
militar unilateral, com presença prolongada de forças militares da coligação no
território iraquiano. Esta situação dá origem a um regime territorial
particular. Não havendo transferência de jurede soberania a favor do ocupante,
este tem no entanto uma ampla autoridade sobre pessoas e bens situados no
território ocupado. Por outro lado, o ocupante tem diversos deveres,
designadamente o de tomar todas as medidas para restaurar e assegurar a ordem
pública e a segurança, respeitando o direito vigente no território ocupado
31
.
A coligação liderada pelos Estados Unidos, enquanto potência ocupante, tinha o
dever de administrar o território iraquiano durante a fase de transição. O
facto é que, tendo a invasão sido ilícita, todo o processo de administração
estava inquinado ab initio. Só com a adopção de sucessivas resoluções do
Conselho de Segurança foi possível conferir alguma legitimidade internacional
ao processo de transição (mas nunca à invasão). O Conselho de Segurança
reconheceu a 22 de Maio de 2003 que os Estados Unidos e o Reino Unido eram
potências ocupantes32. A Resolução 1483 originou um conjunto de obrigações
positivas para as potências ocupantes, designadamente no que respeita à
promoção do bem-estar da população iraquiana através da efectiva administração
do território, incluindo especialmente o restabelecimento das condições de
segurança e estabilidade, e a criação de condições para que o povo iraquiano
pudesse determinar o seu futuro político.
Na sequência, foi estabelecida a Autoridade Provisória da Coligação (CPA) que
tinha a tarefa de administrar o Iraque de 2003 a 2004, com o especial objectivo
de criar as condições para a elaboração e adopção de uma Constituição. A 16 de
Outubro de 2003, o Conselho de Segurança reconheceu a autoridade da CPA até que
um governo eleito pelo povo do Iraque assumisse funções33. Estava assim lançado
o mote para o processo de statebuildingque se seguiria à invasão, o qual, nos
termos da Resolução 1483, envolveria as potências ocupantes mas também as
Nações Unidas.
O Statebuilding no Iraque
O Iraque tornou-se independente do Reino Unido em 1932. Após o período da
monarquia haxemita, na sequência do golpe de Estado de 14 de Julho de 1958, foi
instaurada a República do Iraque, dominada desde 1968 pelo partido Baas. Em
1979, Saddam Hussein toma o poder e torna-se Presidente do Iraque. Após a
intervenção da coligação liderada pelos Estados Unidos, e de ter sido decretada
mission accomplisheda 1 de Maio de 2003, o Iraque via-se contudo a braços com a
necessidade de empreender um pesado esforço de reconstrução de estruturas
políticas e sociais, transitando de um período autocrático dominado pelo
partido Baas e por Saddam Hussein para uma situação de paz sustentável, no
âmbito de um regime democrático.
Normalmente, as operações de statebuildingsão implementadas na sequência de um
conflito interno, após convite dos actores locais e depois de uma solução
negociada para o conflito. Porém, tal como já referido, no caso do Iraque a
operação de statebuildingdecorre directamente da obrigação e da necessidade
criadas pela intervenção e ocupação pela coligação liderada pelos de Estados
Unidos e por iniciativa primeira dos actores externos. Esta situação leva a que
se torne fácil confundir uma genuína operação pós-conflito de statebuildingcom
a tentativa pelo invasor de estabilizar o território ocupado, conforme é seu
dever e, por vezes, conforme ditam os seus interesses. Estas diferenças são
relevantes e levantam diversas interrogações sobre os limites do statebuildinge
a sua apropriação em situações que resultam de actos ilícitos internacionais de
intervenção externa. Ainda assim, do ponto de vista conceptual, a operação no
Iraque pode ser caracterizada como
statebuilding
34, reunindo uma panóplia variada de actores externos e internos que pretendem
a reconstrução do Iraque em transição para um regime democrático que assegure
uma paz sustentável.
A conjuntura era extremamente complexa. Primeiro, do ponto de vista interno, a
sociedade encontrava-se dividida em diversos grupos étnicos. Desde logo, pelos
árabes sunitas que, apesar de constituírem uma minoria da população35,
dominaram as estruturas governativas do Iraque desde os anos 1960. Temiam agora
o seu afastamento do poder e eventuais retaliações por parte dos outros grupos
étnicos. Depois, pelos xiitas, que constituíam a maioria da população
iraquiana, mas que durante o regime de Saddam Hussein foram marginalizados do
processo político. No Norte, os curdos, nação sem Estado, foram sujeitos no
Iraque a graves violações de direitos humanos. Para além das suas pretensões
históricas à criação de um Estado curdo independente, no Iraque reclamam uma
autonomia alargada e maior fruição dos recursos energéticos que se situam no
seu território. Para além destes grupos étnicos, existe ainda no Iraque um
conjunto de minorias, como os turcomanos, os caldeus, os yezidi ou os assírios,
que temem que a sua identidade e os seus interesses sejam marginalizados no
grande jogo de acomodação de tensões entre curdos, sunitas e xiitas. Por outro
lado, a comunidade iraquiana no exílio exerce grande influência política junto
dos Estados Unidos e do Reino Unido. Um outro aspecto interno a ter em
consideração é o factor islâmico. Durante o regime de Saddam Hussein, a
actividade político-religiosa era reprimida. Com a deposição do regime, a
influência de sectores político-religiosos, nomeadamente dos xiitas, fez-se
sentir imediatamente.
Em termos regionais, há que considerar a relação, por vezes hostil, entre o
Iraque e o Irão e entre os Estados Unidos e o Irão. O Irão tem, por seu lado,
grande influência na comunidade xiita iraquiana ao ponto de poder
desestabilizar o processo de transição em curso no Iraque. Por outro lado,
também a Síria tem uma relação difícil quer com o Iraque quer com os Estados
Unidos, tendo, designadamente, oferecido abrigo a alguns antigos altos
funcionários iraquianos do partido Baas. Finalmente, a Norte, a Turquia tem
interesse na estabilização do Iraque, na concessão da menor autonomia possível
aos curdos e na protecção dos direitos dos turcomanos.
Do ponto de vista internacional mais amplo, os Estados Unidos e outros estados
apressaram-se a anunciar um processo de transição democrática no Iraque que
iria servir como exemplo para o resto do Médio Oriente, assim contribuindo para
a estabilidade e a paz na região. Porém, as expectativas de uma transição
rápida foram goradas. Aliás, experiências como as da Bósnia ou de Timor-Leste
deveriam ter servido de aviso para a longa duração de uma operação de
statebuildinge para os riscos de se pretender contrariar a paciência aqui
exigida pelo inultrapassável factor tempo.
A economia do Iraque assentava essencialmente na exportação de petróleo. O
Iraque tem desde 2002 as terceiras maiores reservas de crude dos estados
pertencentes à Organização dos Países Produtores de Petróleo36. Para além de
constituir um estímulo para a intervenção e depois estabilização do Iraque, a
rentabilização das reservas de crude foi desde o início encarada como o
principal sustento do Estado e da sua reconstrução. As prioridades foram, desde
logo, o pagamento de salários e dos custos com a gestão corrente do governo.
Igualmente importante, era assegurar a produção de electricidade, a
distribuição de água e a rede de esgotos, bem como a extracção e refinação do
petróleo. Porém, quando a CPA tentou elaborar um orçamento para o Iraque,
descobriu que o seu rendimento nacional, devido à má gestão pelo regime
anterior, não era suficiente para fazer face às despesas necessárias com a
reconstrução do Estado. A única solução passava, de início, por um novo Plano
Marshall com a injecção de capitais americanos, mas muito mais dispendioso.
O plano traçado em 2003 pela CPA envolvia três fases, antes da soberania ser
devolvida plenamente aos iraquianos. Os primeiros objectivos seriam eliminar as
ameaças bélicas internas e abrir o aeroporto até 31 de Outubro desse ano, para
além de atingir a produção da energia necessária aos gastos industriais, das
instituições governativas e domésticos. A segunda fase abrangia a dimensão
económica, e previa a privatização das empresas estaduais, a conversão de
rações em pagamentos em dinheiro, a eliminação de subsídios e tarifas, a
aprovação de leis de protecção de investimento e a abertura do mercado
financeiro a bancos internacionais. Tratava-se de preparar o Iraque para aderir
à Organização Mundial do Comércio. Anunciava Paul Bremer: «Vamos criar a
primeira verdadeira economia de mercado livre do mundo árabe.»
37
. A terceira fase envolvia a reforma político-institucional. Neste domínio,
havia que reabilitar as instituições governativas, tendo sido adoptada uma
estratégia de afastamento de todos os quadros ligados ao partido Baas ao invés
de uma estratégia de mera «des-sadamização». Uma vez que pertencer ao partido
Baas significava, correntemente, mais uma estratégia de sobrevivência laboral
do que uma genuína convicção ideológica, grande parte dos funcionários
governamentais pertenciam ao partido. Esta estratégia levou a que em resultado
da purga as estruturas governativas ficassem privadas de altos quadros e
funcionários essenciais ao seu funcionamento.
A CPA nomeou um Conselho Governativo multiétnico e multirreligioso, que incluía
mulheres e homens, constituído por vinte e cinco membros. Porém, uma vez eleito
o presidente do Conselho, muitos membros deixaram de participar nas reuniões e
usavam o seu novo estatuto para fins pessoais. Depois, foi nomeada uma comissão
preparatória para delinear um plano para a redacção da nova Constituição.
Seguir-se-ia a atribuição progressiva de mais poderes ao Conselho Governativo,
a redacção da Constituição, a submissão da Constituição a referendo popular, a
eleição de um governo e, finalmente, a transição de soberania para o Iraque.
Este processo político de transição deveria estar completo em 2004 ou 2005.
A elaboração da Constituição
O procedimento constituinte no Iraque desenrolou-se em duas fases. A primeira
iniciou-se com a invasão do Iraque pela coligação e terminou com a eleição da
Assembleia Nacional Transitória (ANT). Nesta fase, o projecto de Constituição
foi elaborado essencialmente pelas autoridades ocupantes, com a colaboração de
determinados actores iraquianos. A segunda fase, durante a qual a Constituição
foi efectivamente elaborada e adoptada, teve início depois das eleições de
Janeiro de 2005 e findou com o referendo que teve lugar a 15 de Outubro desse
ano. Na realidade, o processo constituinte foi, pois, regulado por dois regimes
diferentes e sucessivos38.
Inicialmente, a CPA pretendia nomear uma conferência nacional para redigir a
Constituição, ao invés de o fazer através de eleições democráticas. Quer as
Nações Unidas quer alguns sectores religiosos manifestaram-se contra esta
hipótese inicialmente avançada pela CPA. O grande ayattolahAli al-Sistani, um
clérigo xiita recatado mas com uma enorme influência em todo o processo de
transição, afirmou peremptoriamente que o plano era inaceitável e que não havia
garantias de que o «Conselho produza uma Constituição que responda aos
superiores interesses do povo iraquiano»
39
. A CPA acabou por aceitar um processo que incluía eleições directas e a
elaboração de uma lei transitória que estabelecesse o enquadramento para a
elaboração da Constituição.
A Lei de Administração para o Estado do Iraque durante o Período de Transição
(TAL) foi adoptada a 8 de Março de 2004, durante o período de ocupação.
Efectivamente, a tal foi elaborada pelo Conselho Governativo do Iraque, nomeado
pela CPA. Para além desta interferência, funcionários da CPA intervieram
directamente no processo de redacção, primeiro para assegurar que a tal seria
redigida num curto espaço de tempo e depois para garantir que determinadas
disposições seriam incluídas no documento final.
O preâmbulo da tal confere-lhe uma entoação liberal, apelando ao «povo do
Iraque, desejoso de reclamar a sua liberdade que foi usurpada pelo anterior
regime tirânico». Depois, no artigo 4.º da tal é estabelecido que o governo
iraquiano será republicano, federal, democrático e pluralista. De facto, quase
todas as partes envolvidas apoiavam alguma forma de federalismo para o Iraque.
Naturalmente, a Turquia avisava, contudo, que uma estrutura federal seria
instável e não tinha precedente na região40. O capítulo II da tal consagrava
uma carta de direitos fundamentais inspirada no Bill of Rights dos Estados
Unidos. O seu artigo 61.º define um calendário para o período transitório.
Primeiro, a Assembleia Nacional redigiria o projecto de Constituição até 15 de
Agosto de 2005. Depois, o projecto seria submetido ao povo iraquiano através de
referendo a realizar até 15 de Outubro do mesmo ano. Se o resultado do
referendo fosse positivo, seriam realizadas eleições para um governo permanente
até 15 de Dezembro de 2005. Assim, após a eleição da ANT foi constituído o
Comité Constitucional composto por 55 membros de forma proporcional à
representação dos diversos partidos na ANT. Como os sunitas boicotaram as
eleições, a comunidade sunita estava sub-representada naqueles dois órgãos.
Ainda assim, foram empreendidos esforços no sentido de integrar sunitas no
Comité Constitucional. A verdade é que os 25 sunitas entretanto escolhidos para
participar na redacção da Constituição apenas integraram os trabalhos durante
três semanas. Pese embora esta situação anómala, pode reconhecer-se ao Comité
uma suficiente representatividade.
Em meados de Agosto, o controlo do processo de redacção passou para o Conselho
de Liderança na tentativa de que fosse terminado dentro do prazo estabelecido.
Com esta mudança, as tentativas de empreender um processo participado a nível
nacional foram goradas. Por outro lado, uma vez que as regras de funcionamento
do Conselho não eram claras, tal permitiu que funcionários americanos
interviessem de forma directa nas negociações. Chegaram mesmo a encorajar o
afastamento dos representantes sunitas para facilitar a obtenção de um
consenso.
Verificou-se, pois, uma intervenção externa dos Estados Unidos e de outros
estados da coligação no processo constituinte
41
. Em primeiro lugar, sabendo que a tal, elaborada sob influência directa dos
Estados Unidos e do Reino Unido, funcionou como base da nova Constituição,
observou-se uma transferência por osmose da interferência externa inicial para
o texto da Constituição definitiva do Iraque. Depois, foram as potências
ocupantes que determinaram o quadro procedimental para a elaboração da
Constituição, tendo, igualmente, influenciado o Comité Constitucional. Por
outro lado, funcionários da Embaixada dos Estados Unidos em Bagdade intervieram
directamente no intuito de salvaguardar os interesses da coligação e, em
particular dos Estados Unidos, no contexto das negociações.
Ainda assim, o Comité Constitucional conseguiu incorporar algumas disposições
que se assumiam como um reflexo axiológico-normativo da sociedade do Iraque.
Por outro lado, a Constituição prevê mecanismos capazes de resolver os focos de
potencial violência: reverter a política de arabização no Norte; estabelecer
uma estratégia para a questão do petróleo e para a distribuição dos seus
rendimentos; e evitar a corrida ao controlo do poder central adoptando uma
estrutura altamente descentralizada
42
. Ao contrário do que acontecia com a tal, a Constituição adopta o islão como
religião oficial e fonte de direito43. Por outro lado, incluiu uma carta de
direitos fundamentais diferente da prevista na tal, permitindo a limitação de
direitos a título excepcional. Tendo adoptado um modelo de Estado federal, a
Constituição apressou-se a consagrar o Curdistão como uma região federal,
deixando para mais tarde a designação de outras regiões federais, num
federalismo assimétrico, e a fazer da capital, Bagdade, uma província autónoma.
A Constituição acabou por ser adoptada a 15 de Outubro de 2005, na sequência do
referendo popular. Entraria em vigor após a sua publicação no jornal oficial e
a tomada de posse do novo Governo. Todavia, a Constituição e o Estado que os
iraquianos pretendiam inicialmente, uma versão mesopotâmica do modelo
escandinavo, não era compatível com os propósitos que alimentaram a intervenção
da coligação no Iraque. A Constituição e o Estado que enquadrava foram antes
moldados segundo um modelo neoliberal
44
. Comparando a Constituição de 1990, os projectos de 30 de Junho e de 20 de
Julho de 2005, e o texto da Constituição adoptada, verifica-se uma evolução
nesse sentido. O texto de 1990 estabelecia no seu artigo 12.º que competia ao
Estado a responsabilidade de planear e dirigir a economia nacional com o
propósito de estabelecer um sistema socialista científico e revolucionário. O
projecto de 20 de Junho ainda faz referência à justiça social como sendo a base
da construção da sociedade. Já o artigo 25.º da Constituição em vigor alude a
um modelo económico neoliberal. Num outro exemplo, o artigo 110.º da
Constituição vigente dispõe que será implementada uma estratégia política para
desenvolver a indústria petrolífera com base nas mais «modernas técnicas
assentes nos princípios de mercado e encorajando o investimento». Nem a
Constituição de 1990, nem os projectos de 2005 previam disposições semelhantes.
A intervenção externa na elaboração da Constituição do Iraque foi, pois,
parcial. Mas parcial no seu grau máximo, sendo que a intervenção resvalou
frequentemente para a ingerência indevida. Poder-se-á até defender que foi
total no que respeita a alguns procedimentos e disposições essenciais da
Constituição com reflexos políticos, sociais e económicos imediatos.
CONCLUSÃO
Numa situação de pós-conflito, os actores internacionais não podem pura e
simplesmente deixar ao abandono milhões de pessoas num Estado debilitado, sem
lei, pobres, doentes, com medo e sem expectativas. Quando o conflito resulta de
uma intervenção externa, como aconteceu no caso do Iraque, a obrigação ética,
jurídica e humana de empreender (também) um processo de statebuildingé
incontornável. Porém, a tentação de intervir de forma parcial ou mesmo total,
ao invés de apenas marginal, é muito grande. O que é ainda mais notório no caso
extremo de uma invasão, como a do Iraque, em que os interesses que a motivaram
arrasaram na sua passagem impiedosa os princípios que informam o statebuilding,
incluindo o fundamental procedimento constituinte.
Este desvario arrisca-se a contribuir para a caracterização do
statebuildingcomo uma quimera, ou pior, como um instrumento de expansão
«imperialista». Pelo contrário, o statebuildingé um instrumento útil na
transição pós-conflito, independentemente da sua origem. Haverá, porém, que
saber gerir os dilemas que dele decorrem e criar e cumprir regras que garantam
que não é indevidamente apropriado para legitimar transições preconcebidas de
forma maquiavélica antes ainda de existir qualquer conflito ou que extravasem
as necessidades e os interesses locais e regionais.
Apesar dos ténues esforços de outreache de participação popular no processo de
transição política, o statebuildingno Iraque, designadamente no que respeita à
elaboração da Constituição, foi uma transição top-downliderada pelos Estados
Unidos e por outros estados da coligação, bem como por algumas elites
iraquianas. Este modo de empreender a transição é contrário ao que se deve
pretender num processo de statebuilding, que deve assentar essencialmente numa
dimensão local caracterizada por ampla participação e representatividade. Este
facto levou ao falhanço de conseguir um acordo em 2005 relativamente à partilha
do poder político e económico no Iraque45. Realmente, é duvidoso que do
processo tenham resultado instituições legítimas, autónomas e eficazes.
Actualmente, o Estado iraquiano ainda não consegue garantir o bem-estar das
populações, a sua prosperidade e o fim da violência.
Do que transparece das necessidades identificadas no processo de elaboração de
uma Constituição numa situação de pós-conflito, os actores internacionais,
incluindo as Nações Unidas, não estão devidamente habilitados para conduzir um
procedimento constituinte, ou mesmo para o orientar
46
. As lições que se podem retirar do exemplo extremo do Iraque são fundamentais
para identificar as áreas em que o auxílio externo na elaboração de uma
Constituição num processo de transição política pós-conflito pode ser
optimizado. Em primeiro lugar, relativamente à participação da população, esta
deve acontecer de forma permanente, começando antes sequer da adopção de
qualquer projecto de Constituição. A população deve ser informada sobre o
procedimento constituinte e sobre as propostas em discussão. Deve eleger,
igualmente, o órgão que adoptará o projecto de Constituição. Bem assim, a
aprovação da Constituição deve ser precedida de referendo popular. Em segundo
lugar, todos os grupos políticos da comunidade estadual devem participar no
procedimento constituinte de acordo com um critério de representatividade. O
projecto de Constituição deve ser elaborado por uma assembleia constituinte
eleita pela população, sem estar condicionada a prioripor quaisquer
directrizes. Finalmente, a intervenção dos actores externos pode ser benéfica
se for marginal ou até parcial num nível de baixa intensidade, aconselhando e
fornecendo os meios logísticos necessários. A intervenção pode ser oferecida,
mas só deve acontecer quando for solicitada. Idealmente, a celeridade da
intervenção permitirá maximizar os benefícios que o longo processo de
statebuildingpode ter. Contudo, o momento adequado depende da conjuntura que
envolve cada situação. Por outro lado, a imposição de condições relativamente
ao seu papel no statebuildinge quanto à gestão dos recursos que trazem, se bem
que aceitável dentro de certos limites, não pode de modo algum condicionar nem
a vontade e o poder constituinte do povo nem o poder de decisão dos seus
representantes.
Os actores externos devem, pois, cuidar para que a dinâmica de transição seja,
no limite do possível, conduzida pelos actores locais e para que a sua
intervenção seja equilibrada. Nestes termos, é inegável que o statebuildinge a
elaboração de uma Constituição são fundamentais para os milhões de pessoas em
todo o mundo que se viram fatalmente envolvidas num conflito que lhes consome
as expectativas e lhes alimenta o desespero.
NOTAS
*
O autor agradece o apoio que lhe é conferido pela Fundação Calouste Gulbenkian
para a realização do programa de doutoramento.
1
BRAHIMI, Lakhdar ' State Building in Crisis and Post-Conflict Countries.
[Consultado em: 4 de Junho de 2009]. Disponível em: http://unpan1.un.org/
intradoc/groups/public/documents/UN/UNpAN026305.pdf.
2
DIAMOND, Larry ' «Lessons from Iraq». in Journal of Democracy. Baltimore. vol.
16, n.º 1, 2005, pp. 9-23.
3
PARIS, Roland, e SISK, Timothy ' Managing Contradictions: the inherent dilemmas
of Postwar statebuilding[Consultado em: 8 de Junho de 2009]. Disponível em:
www.ipacademy.org/asset/file/211/iparpps.pdf.
4
UNITED NATIONS ' An Agenda for Peace: Preventing diplomacy, Peacemaking and
Peace-keeping. Report of the secretary-general A/47/277 ' s/24111 of 17 June
1992.
5DPKO ' United Nations Peacekeeping Operations: Principles and guidelines.
[consultado em: 4 de Abril de 2009]. Disponível em: http://pbpu.unlb.org/pbps/
library/capstone_doctrine_eNg.pdf.
6
PARIS, Roland, e SISK, Timothy ' «Understanding the contradictions of postwar
statebuilding». In The Dilemmas of statebuilding: Confronting the
Contradictions of Postwar Peace Operations. Oxon: Routledge, 2008, pp. 1-20.
7FUKUYAMA, Francis ' State-building: governance and World Order in the 21st
Century. Nova York: Cornell University Press, 2004.
8CHESTERMAN, Simon ' You, the People: the United Nations, transitional
administration, and state-building. Oxford: Oxford University Press, 2004.
9FEARON, James, e LAITIN, David ' «Neotrusteeship and the problem of weak
states». In International Security. Cambridge. vol. 28, N.º 4, 2004, pp. 5-43.
10KRASNER, Stephen ' «sharing sovereignty: new institutions for collapsed and
failing states». In International Security. Cambridge. vol. 29, N.º 2, pp. 85-
120.
11PARIS, Roland ' At War's end: building Peace after Civil Conflict.Cambridge:
Cambridge University Press, 2004.
12cf. PARIS, Roland, e SISK, Timothy ' Managing Contradictions: the inherent
dilemmas of Postwar statebuilding.
13JEONG, Ho-Won ' Peacebuilding in Postconflict societies: strategy and
Process. Boulder: Lynne Rienner, 2005.
14BRAHIMI, Lakhdar ' State Building in Crisis and Post-Conflict Countries.
15RAMSBOTHAM, Oliver ' «Reflections on UN post-settlement peacebuilding». in
Peacekeeping and Conflict Resolution. Londres: Frank Cass Publishers, 2000, pp.
169-189.
16
HAYSOM , Nicholas ' «Conflict resolution, nation-building & constitution-
making». In New England Journal of Public Policy. Boston. vol. 19, N.º 2, 2005,
pp. 152--170.
17CANOTILHO, José Joaquim Gomes ' Direito Constitucional e teoria da
Constituição. Coimbra: Livraria Almedina, 1998.
18SAMUELS, Kirsti ' «Post-conflict peace-building and constitution-making». in
Chicago Journal of International Law. Chicago. Vol. 6, n.º 2, 2006, pp. 1-20.
19RICHMOND, Oliver ' «The globalization of responses to conflict and
peacebuilding consensus». in Cooperation and Conflict. Tampere. vol. 39, N.º 2,
2004, pp. 129--150.
20CANOTILHO, José Joaquim Gomes ' Direito Constitucional e teoria da
Constituição.
21 MIRANDA, Jorge ' «Constituição e Integração». In A União Europeia e
Portugal: a actualidade e o Futuro. Coimbra: Livraria Almedina, 2005, pp. 173-
202, p. 174.
22WIDNER, Jennifer ' Constitution Writing and Conflict Resolution[consultado
em: 8 de Junho de 2009]. Disponível em: www.wider.unu.edu/publications/working-
papers/research-papers/2005/en_gb/rp2005-51/.
23
ibidem.
24SAMUELS, Kirsti ' «Post-conflict peace-building and constitution-making». in
Chicago Journal of International Law. Chicago. vol. 6, N.º 2, 2006, pp. 1-20.
25
USIP ' Iraq's Constitutional Process: shaping a Vision for the Country's
Future. [consultado em: 8 de Junho de 2009]. Disponível em: www.usip.org/files/
resources/sr132.pdf.
26HAYSOM, Nicholas ' «Conflict resolution, nation-building & constitution-
making».
27SAMUELS, Kirsti ' « Post-conflict peace-building and constitution-making».
28
BARNETT, Michael, e ZÜRCHER, Christoph ' «The Peacebuilder's Contract: how
External Statebuilding Reinforces Weak Statehood». in The Dilemmas of
Statebuilding: Confronting the Contradictions of Postwar Peace Operations.
Oxon: Routledge, 2008, pp. 23-52.
29DANN, Philipp, e AL-ALI, Zaid ' «The Internationalized Pouvoir Constituant:
constitution-making under external influence in Iraq, Sudan and East Timor». In
Max Planck Yearbook of United Nations law, vol. 10. Leida: Martinus Nijhoff
Publishers, 2006, pp. 423-463.
30De recordar que os inspectores das Nações Unidas que se encontravam no
terreno a verificar o respeito pelas resoluções do conselho de segurança
relativamente à existência de armas de destruição maciça tiveram de retirar do
Iraque pouco tempo antes da invasão sem lhes ter sido dada a possibilidade de
chegar a qualquer conclusão.
31cf. Convenção da Haia IV sobre as Leis e os Costumes de Guerra em Terra,
adoptada na Haia, a 18 de Outubro de 1907.
32
Resolução do Conselho De Segurança 1483 (2003), de 22 de Maio de 2003.
33Resolução do Conselho De Segurança 1511 (2003), de 16 de Outubro de 2003.
34
PARIS, Roland, e SISK, Timothy ' Managing Contradictions: the inherent dilemmas
of Postwar Statebuilding; BRAHIMI, Lakhdar ' State Building in Crisis and Post-
Conflict Countries.
35
Actualmente apenas 32 por cento a 37 por cento da população (fonte: CIA ' The
World Fact book: Iraq. [Consultado em: 4 de Junho de 2009]. Disponível em:
www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/iZ.html).
36Fonte: OPEC: ORGANIZ ATION OF THE PETROLEUM EXPORTING COUNTRIE S ' Annual
statistic bulletin:2007. [Consultado em: 10 de Junho de 2009]. Disponível em:
www.opec.org/library/Annual%20statistical%20bulletin/Asb2007.htm.
37apud CHANDRASEKARAN, Rajiv ' Imperial Life in the Emerald City: Inside
Baghdad's Green Zone. Londres: Bloomsbury, 2008, p. 182.
38WOLFRUM, Rüdiger ' «Iraq ' From Belligerent Occupation to Iraqi Exercise of
Sovereignty: Foreign Power Versus International Community Interference». In Max
Planck Yearbook of United Nations Law, vol. 9. Leida: Martinus Nijhoff
Publishers, 2005, pp. 1-45.
39
apud
ARATO, Andrew ' «Sistani v. Bush: Constitutional Politics in Iraq». In
Constellations Journal. Nova York. Vol. 11, N.º 2, 2004, pp. 1-27, p. 1.
40PILPG ' Establishing a stable democratic Constitutional structure in Iraq:
some basic considerations. [Consultado em: 20 de Maio de 2009]. Disponível em:
www.publicinternationallaw.org/publications/reports/iraqreport.pdf.
41DANN, Philipp, e AL-AL I, Zaid ' «The Internationalized Pouvoir Constituant:
Constitution-Making under External Influence in Iraq, Sudan and East Timor».
42IMAN, Mona ' Iraq at a Juncture: Constitution, Referendum and Elections.
[Consultado em: 20 de Maio de 2009]. Disponível em: http://usip.forumone.com/
resources/iraq-juncture-constitution-referendum-and-elections.
43cf. Artigo 2.º da Constituição.
44
DOCENA, Herbert ' Iraq's Neoliberal Constitution. [Consultado em: 4 de Junho de
2009]. Disponível emhttp://www.fpif.org/pdf/papers/0509constitution.pdf. Leia-
se neste sentido, a título de exemplo, o muito sugestivo artigo 25.º da
constituição do Iraque, que dispõe que «o estado garantirá a reforma da
economia iraquiana de acordo com os princípios para assegurar o pleno
investimento dos seus recursos, a diversificação das suas fontes, e o
encorajamento e desenvolvimento do sector privado».
45PAPAGIANNI, Katia ' «State Building and Transitional Politics in Iraq: the
Perils of a Top-down Transition». In International Studies Perspectives.
Portland. N.º 8, 2007, pp. 253-271.
46BRAHIMI, Lakhdar ' State Building in Crisis and Post-Conflict Countries.