O desenho como ferramenta universal. O contributo do processo do desenho na
metodologia projectual.
Ricardo Freitas, desenho de representação / esboço, 2007.
O desenho é provavelmente a forma de expressão que sintetiza melhor a nossa
relação com o mundo. Ele permite-nos, com a elaboração mental, o
desenvolvimento de ideias e a descoberta do que ainda desconhecemos de nós
mesmos.
Alberto Carneiro, escultor e professor (2001)
Sendo este um trabalho sobre a área científica do desenho, não pretende ser
especificamente destinado aos que, de uma maneira ou de outra, estão
relacionados com o desenho, teoria ou prática. Este texto tem como objectivo
ser, também, acessível a um público não especializado, uma vez que defendemos o
desenho como linguagem universal e forma de comunicação privilegiada.
Apresentamos a seguinte estrutura: 1 ' Desenho para todos, onde discorremos
sobre a possibilidades de universalidade do desenho, baseando-nos nas seminais
propostas de Ramalho Ortigão, que de forma visionária e especulativa enunciava
o desenho e a educação visual como principio de todas as formas de comunicação
e linguagem na aprendizagem, inclusive precedendo a leitura; 2 ' Desenho
aplicado, onde reflectimos sobre os desenhos do desenho, passado, presente e
futuro, tipos e tipologias, géneros e aplicações, desde a tradição da
manualidade às possibilidades do digital, enunciando o desenho (mais uma vez)
como fundamental na metodologia projectual das artes visuais e do design entre
outras actividades, assim como reflectimos sobre as possibilidades de um
desenho autónomo.
1. Desenho para todos.
2. Desenho aplicado.
2.1. Desenho projecto. O lugar do desenho na metodologia projectual.
2.1.1. O contributo da tecnologia.
2.2. Desenho autónomo. O desenho como lugar.
1. Desenho para todos.
Começamos com a utilização de uma frase comum: o desenho está em todo o lado.
Todos os objectos e edifícios que nos rodeiam foram desenhados, os utensílios
do dia-a-dia, as roupas, os jardins, as estradas, o urbanismo, tudo em suma. E
se pensar na arquitectura, no design e nas artes plásticas no geral nos ilumina
de imediato a mente, se o universo imagético comum nos faz visualizar o
Partenon, Santa Maria del Fiori, o Guggenheim de Bilbao, ou entre nós a Casa da
Música, e nos faz sentir grandes com as gloriosas capacidades da inteligência
humana no desenho arquitectónico, igualmente nos emocionamos perante as formas
de Miguel Ângelo, as gravuras de Rembrandt, ou a memória de Walt Disney; assim
como vibramos na contemporaneidade com os Sagmeisters gravados na carne, o
carvão de William Kentridge e as aguadas de Marlene Dumas, aspirando ao
descanso numa chaise long dos Eames
[1]
. No entanto, e sem querer entrar em campos que não dominamos, desde o senso
comum, também podemos, ainda, afirmar que muitos dos animais que temos por
companhia em casa ou que utilizamos na alimentação foram “desenhados”, isto é,
foram geneticamente alterados até ao ‘desenho’ pretendido. Desde que existimos
como ser humano não conseguimos parar de desenhar, faz parte de nós.
Desenhamos desde a infância, a infância da humanidade, com os desenhos
rupestres que “iluminaram” as cavernas e desde a infância propriamente dita. A
tentativa de representação, antes da consciência da interpretação ou invenção
faz parte da vontade humana. São, aliás, conhecidos os estudos sobre as vastas
capacidades expressivas e comunicativas dos desenhos das crianças, que de uma
ou outra forma vão sendo “controladas” ao longo do crescimento pelas
convenções, nem sempre pedagógicas, dos adultos. Qualquer um de nós que se
lembre da infância, ou que na idade adulta lide habitualmente com crianças,
sabe que há o impulso de riscar, de ver deslizar pela folha de papel o lápis, a
ânsia pela cor, mas sobretudo pela identificação do resultado com "um
algo", ainda que no suporte nada se reconheça.
Bruno Albuquerque, desenho de figura, 2009.
O desenho de representação do mundo natural teve expressão como actividade
tanto na Grécia como em Roma, segundo descrições de autores da antiguidade
clássica, como Plínio, por exemplo. No entanto, a relevância do desenho como
processo indiscutível para a representação propriamente dita, visível ou não
visível, foi, efectivamente, reconhecida a partir do Renascimento, a sua
tratadística serve-nos de testemunho. Lorenzo Ghiberti, na esteira da
antiguidade clássica, nos seus Commentari (Venturi, s.d.) afirmava: “O desenho
é o fundamento e a teoria” (p. 80). A teorização e registo dos processos
tornou-se instituição; arte e ciência passaram a ter relação directa através do
desenho. É com a "invenção" da perspectiva cónica linear e a sua
capacidade de representação do real a partir da regra da geometria, que com os
seus códigos, o desenho se torna instrumento essencial na comunicação dos
objectos, nas palavras de Loos (1982): "Sem a geométrica reconsideração do
espaço, que torna mensurável as três dimensões do cubo de perspectiva
construído por Filipo Brunellesschi, Paolo Uccelo e Piero de la Francesca, não
teria sido possível a sucessiva matematização do espaço circunstante que, com
Galileu, daria origem ao pensamento científico moderno." (p. 7)
Para Leonardo o desenho era cosa mentale, processo intelectual que serve todas
as disciplinas, que comunica e desenvolve, que é processo e gestão. Sendo
conotado numas áreas com o simbólico e a subjectividade e noutras com a
cientificidade inerente à geometria e matemática. Também Francisco da Holanda
entendeu o desenho como fonte de conhecimento, assim como dom divino, forma de
Deus se manifestar através do executante.
Em Portugal, no século XVIII, o escultor Joaquim Machado de Castro, a pedido de
Pina Manique, elabora o “Discurso sobre as utilidades do Desenho”
[2]
onde considera ser da maior utilidade para todos os cidadãos a prática e o
conhecimento do desenho, e que ambos devem ser dirigidos com bom gosto e na
imitação da natureza. Salientando as suas aplicações nas diversas áreas do
saber, como a medicina através da anatomia, a geografia e a história natural,
entre outras. Referindo, também, que para o desenvolvimento do Estado eram
necessários a instrução e protecção desta actividade. Mas, a conturbada
política portuguesa - sucessivos governos que implicaram sucessivas reformas na
educação - e apesar da reforma de 1836 decretada por Passos Manuel levar ao
estabelecimento em Lisboa e Porto das Academias de Belas Artes, reunindo todas
as “aulas de desenho” existentes nas duas cidades, apenas em 1860 foi criada
uma disciplina com a designação desenho nos planos de estudos liceais. Segundo
Cidália Henriques (2001) “O ensino do desenho no século XIX dividia-se em duas
categorias: o artístico e o industrial. Era evidente, contudo, alguma
ambiguidade nesta dicotomia uma vez que encontramos nas academias de belas
artes, vocacionadas para a formação de artistas, aulas de desenho dirigidas à
preparação de operários industriais orientadas na mesma perspectiva da formação
de artistas.” (p. 44)
É perante as novas necessidades da sociedade, com a revolução industrial, que
surge, a necessidade de repensar o ensino do desenho. A partir de 1884, António
Augusto Aguiar e o seu sucessor Emídio Navarro, do Ministério das Obras
Públicas, Comércio e Indústria, impulsionam a criação de escolas industriais e
do desenho industrial, no complexo sistema educativo português que começava a
reconhecer a urgência de um ensino do desenho sistematizado e rigoroso, tal
como já acontecia noutros países europeus.
Em 1880 Ramalho Ortigão (Henriques, 2001) escrevia: “O desenho é a base de todo
o ensino escolar e de toda a educação do homem. A fonte de todos os
conhecimentos humanos é a observação. Toda a noção que não se baseie na
observação dos fenómenos tem o carácter anedótico, não tem o carácter
científico. Por isso todos os pedagogos, desde Froebel, exigem que a educação
da criança principie pela adestração dos sentidos no exame directo de todas as
propriedades dos corpos, a cor, a forma, o volume, o peso, etc. ..., é pelo
estudo do desenho que logicamente deve começar qualquer instrução. O exame da
forma convencional das letras, que serve de base à leitura, deve vir depois do
exame da forma das coisas que serve de base ao desenho.” (p. 47)
Passados 130 anos continuamos a advogar pela disseminação do desenho no ensino,
pela sua universalidade como elemento estruturador e de comunicação do
pensamento dos cidadãos, perdendo o preconceito de ser (apenas) do domínio da
arte e tornando-se muito mais operativo aos mais variados níveis.
2. Desenho aplicado.
O desenho é uma área do conhecimento transversal a várias actividades –
artísticas ou técnicas, simbólicas ou objectivas. A história do desenho
acompanha a história da arte, a história da arquitectura e a história do design
(se as entendermos separadas), mas também dentro do âmbito normativo, a
história das engenharias (que sempre o usaram); no entanto, e pese a sua
relevância, o seu reconhecimento como actividade autónoma é relativamente
recente. O desenho foi considerado, desde sempre, como veículo e projecto.
Se considerarmos que o início do projecto no design e na arquitectura, assim
como nas artes plásticas, são substancialmente dominados por preocupações
conceptuais, podemos afirmar o desenho como ‘deriva’, reflexiva ou compulsiva,
instrumento organizacional do fluir da ideia, processo de adição e subtracção
simultâneas, de função operativa para a construção da forma.
Faremos aqui a exposição, ainda que breve, do que julgamos serem as duas
“versões” predominantes da aplicação do desenho tal como o entendemos na
representação e/ou apresentação – o desenho do projecto e o desenho autónomo,
sendo o primeiro ambivalente e de “serventia” a várias áreas do conhecimento,
como as artes visuais (no geral), a arquitectura e o design, e o segundo
exclusivo das artes plásticas.
Miguel Gonçalves, desenho de diagramático, 2009.
2.1. Desenho projecto. O lugar do desenho na metodologia projectual.
“No urbanismo, na arquitectura e no design, onde a interacção com o público é
imediata quando inevitável, a importância da consciência de uma necessária
participação na transformação da sociedade é evidentemente determinante. Em
tais disciplinas, a diferença do que acontece na pintura ou na escultura, o
desenho não pode exprimir a afirmação individual do artista devendo antes de
mais ser um testemunho da sua responsabilidade social e devendo, ao mesmo
tempo, exprimir a coexistência e a convergência de necessidades interiores e de
necessidades exteriores (o lugar, o cliente,...).”
Guido Giangregorio, arquitecto e professor (2001)
Desenho, projecto e objecto. Termos, conceitos, inerentes às artes plásticas,
ao design e à arquitectura. Intimamente ligados, são também subsequentes.
Primeiro a ideia, o primeiro desenho sob a forma de esquisso, quase
inteligível, imediato, muitas vezes inquieto, hesitante...; depois, as
primeiras certezas, o projecto no papel, a procura até à consolidação; por fim,
a realização, o objecto, a concretização. O desenho manual ou computacional é
ferramenta essencial na metodologia projectual das artes visuais e da concepção
de objectos de maior ou menor escala (arquitectónicos ou pequenos utilitários
ao nível do design industrial).
Segundo Alan Pipes (Pipes, 2007), pertence ao desenho o momento Eureka, Pipes
considera o impulso do registo como inevitável, intenso e imediato. São os
registos e acções que não se mostram, são os ‘desenhos pensamento’, de elevado
grau de intimidade, pois são monólogo para quem inventa. Do domínio conceptual,
são os primeiros desenhos projectuais, inscritos numa metodologia que se quer
aberta, onde o desenho é ferramenta essencial.
A chamada metodologia projectual, o projecto com método, é sobretudo utilizada
no design e na arquitectura; quanto às artes plásticas, e apesar de alguma
regra auto-imposta por parte dos artistas, podemos afirmar a utilização de um
‘não método’ ao longo da história da arte. Sendo que entendemos este ‘não
método’, a recusa de regra, como referente à procura implicada na função
poética da arte, o não compromisso com a resposta social, ao colectivo, ao
cliente do produto. A arte não tem de racionalizar o processo, responde a si
própria. A excepção verificou-se a partir de Duchamp e das vanguardas que o
rodeavam na tendência conceptualista. Utilizamos as palavras de Joaquim Vieira
(Vieira, 1995), num texto sobre desenho e projecto (da arquitectura): “O
projecto ocupa espaço nas artes plásticas através do exacerbamento da vertente
intelectualista, pela ilusória racionalização do acto artístico e dos fenómenos
de comunicação da obra.” (p. 27)
A metodologia projectual, no design e na arquitectura, é garante de regra no
desenvolvimento do projecto. É a abordagem científica que estrutura e
direcciona, objectivando a ideia na resposta à proposta, na procura da solução.
Por oposição ao desenvolvimento do projecto baseado na intuição, o designer e
professor alemão Gui Bonsiepi (Bonsiepi, 1975), por exemplo, tal como
Christopher Alexander, entende que se esperam duas coisas da metodologia:
”...oferecer uma série de directivas e clarificar a estrutura do processo
projectual. Tem portanto, em si uma componente praxiológica e uma componente
hermenêutica. A metodologia do design baseia-se na hipótese de que, subjacente
ao processo projectual, mesmo na variedade de situações problemáticas, existe
uma estrutura comum, isto é, constantes que formam, por assim dizer, a armação,
fazendo uma abstracção do conteúdo particular de cada um dos problemas
projectuais.” (p. 205) No entanto, os mesmos autores censuram essa mesma noção
de metodologia perante a ideia de uma metodologia fechada, grelha impositiva,
motivo apenas de estudo e não de desenho: “...Na realidade, aqueles que estudam
a metodologia projectual sem praticar o design, são, em geral, designers
frustrados, enfraquecidos, que perderam, ou jamais tiveram, a exigência de dar
forma às coisas.” (p. 204)
Samuel Monte, desenho projectual, 2009.
Muitos são os autores que trabalharam sobre a metodologia projectual,
destacamos aqui, o anteriormente citado, Bonsiepi e o artista e designer
italiano Bruno Munari (1907-1998) na clarificação do processo e do seu
faseamento, o primeiro pelo enfoque sistémico com ênfase na problematização e
pesquisa e o segundo pela sua visão mais voltada para o processo criativo com o
seu eficaz ‘arroz verde’
[3]
.
Independentemente do método proposto, é na divisão por etapas, que os teóricos
da metodologia projectual, neste caso do design, concordam, são elas: 1ª -
estruturação do problema projectual; 2ª - projecto; 3ª - realização do
projecto. Sendo que a primeira contempla toda a recolha de dados relativos ao
“problema existente” e sua avaliação; já a segunda contempla a procura da
solução, o desenvolvimento do projecto propriamente dito. É aqui que o desenho
dá a sua contribuição, como elemento de especulação que é; assim como no
domínio do rigor computacional, propondo o protótipo para construção, a
terceira etapa.
Relevante é a clarificação, neste momento, do tipo de desenho que estamos a
enunciar quando o relacionamos com projecto - o desenho projectual, ideacional
e operativo. Para o Professor Joaquim Vieira o desenho é uma arte, o projecto é
uma técnica. No entanto, um “cabe” no outro, complementando-se. Apesar da sua
relevância artística ser secundária, enquanto instrumento, não podemos deixar
de referir que entendemos a intervenção do desenho manual no desenvolvimento do
projecto como o momento criativo por excelência, a componente gráfica explorada
pelo individuo que usa o lápis (caneta, marcador, ou outro) confere ‘poesia’ ao
projecto, uma vez que quem desenha, quem regista e investe contra o papel dando
forma às coisas, imprime o seu cunho. Transporta consigo as suas experiências,
as suas hesitações e certezas. O desenho dá ao projecto a oportunidade de
transgressão e crescimento.
Em 1975, Bonsiepi afirmava que: “Pode ser oportuno recordar que o designer
industrial é essencialmente alguém que “faz objectos” e, bem ou mal, por vezes
tem de utilizar o lápis e desenhar – uma actividade que não pode ser
substituída fantasiando programas para as calculadoras electrónicas.” Hoje, em
2009, sabemos que a realidade é “ligeiramente” diferente, também Bonsiepi, em
várias oportunidades aposteriori, já afirmou a contribuição dos meios digitais
no desenvolvimento do projecto, principalmente ao nível da comunicação. Mas é
com o trabalho de Steve Garner (Garner, 1992) que prosseguimos, neste caso ao
nível do design industrial / produto: “Para as profissões do design de produto
houve uma diminuição no uso de modelos físicos tais como equipamentos de teste
e modelos de argila ou espuma em favor de modelos digitais permitindo um maior
controle do desenvolvimento do produto e suporte de técnicas de avaliação, tais
como a avaliação visual, a simulação de condições e a análise final do
produto.”
2.1.1 O contributo da tecnologia.
Ingénuo parece o pensamento ou mesmo a afirmação da obsolescência do desenho
perante o desenvolvimento técnico e computacional, não se trata aqui de fazer
prevalecer uma forma de fazer sobre a outra, mas de compreender a sua
complementaridade.
Com a introdução da tecnologia, primeiro com a fotografia e depois com o
computador e o software de desenvolvimento e apoio à concepção de imagens e
objectos, o ensino do desenho e do seu uso no projecto, aparentou perder algum
terreno nas escolas de arte e design e arquitectura. As soluções gráficas
pareciam mais eficazes quando produzidas mecanicamente. No entanto, todas as
questões colocadas em redor das novas abordagens do desenho (provenientes da
era digital), e das suas possibilidades, vieram consolidar a importância de uma
base rigorosa e tradicional no ensino / aprendizagem do desenho como forma de
consolidar a ‘manipulação’ e apresentação da ‘primeira ideia’ no projecto.
Comprovando a plena convivência nos planos de estudos actuais do avanço
tecnológico e da tradição, revelando o desenho mais uma vez como processo não
só manual, mas também intelectual.
Desde a década de oitenta (do século XX) até hoje que a chamada democratização
do da tecnologia (computadores mais acessíveis, laptops,...) possibilitou que o
trabalho de projecto tivesse uma componente computacional muito mais elevada.
Surgiram e evoluíram programas de apoio que se tornaram essenciais para o
design, a arquitectura e a engenharia. Assim como para outras variantes e
cúmplices do desenho como o são a ilustração e a animação, ou o desenho de
jogos.
Contemporaneamente, as tecnologias como o CAD/CAE/CAM tornaram possível para o
design e engenharia do produto, por exemplo, um maior controlo das últimas
fases do projecto, o modelo computacional do objecto proporciona a
representação computacional quase total do objecto, apresentando um número
infinito de visualizações / representações.
É essencial o desenvolvimento de competências ao nível do uso das tecnologias
nas áreas aqui tratadas que se relacionam directamente com o desenho, no
entanto, terminamos este breve apontamento com as palavras do Professor Vasco
Branco (2001): “Mas bastará substituir o lápis por um “mouse”, na litografia
“Desenhar” de Escher, para se escrever um pensamento sobre a relação entre
design e as tecnologias da informação/comunicação? Quem desenha, desenha-se a
si próprio; quem não tem de si desenha nada, e se tiver um computador
exponencia/disfarça a sua incompetência.” (p. 123)
2.2 Desenho autónomo. O desenho como lugar.
Nunca como nos últimos anos se fizeram tantas exposições de desenho. Se no
ponto anterior analisamos a função mais comum do desenho, ou melhor, o desenho
função - o desenho ao serviço do projecto, aqui vamos derivar sobre o desenho
como lugar. O desenho como fim em si mesmo. O desenho como obra.
Os desenhos não se expõem - dirão os mais conservadores, ou modernos, se
preferirem. Não se expõe o registo do pensamento, não se expõe o processo. O
desenho é processo, tanto em definição, como pela natureza dos materiais em que
se desenvolve e apresenta.
Quem desenha desenha-se, isto é “dá o corpo ao desenho”, introduz no desenho as
suas experiências, gestos, vida. Nas palavras de Le Corbusier (Vieira, 1995), é
necessário desenhar para levar ao nosso interior aquilo que foi visto e que
ficará então inscrito na nossa memória para toda a vida. Temos com o desenho
uma relação de simbiose: damos e ele dá-nos. (p. 39)
Ao desenho pertence também a subjectividade e a especulação, não só a
especulação do processo inerente ao projecto, mas a especulação artística
exponível, domínio do gesto “solto” ou “contido”, intencional ou do acaso (bem
vindo quando reconhecido e controlado).
Miguel Gonçalves,desenho autónomo, 2009.
A conquista da autonomia do desenho, como disciplina / forma de expressão não
subordinada, deu-se no século XX, especialmente desde os anos sessenta. Como as
reflexões do artista plástico Bruce Nauman sugerem, esta valorização,
reconhecimento e legitimação, deveu-se principalmente ao vínculo do desenho com
o processo mental e energia criativa que são a génese da obra de arte. Para
Nauman o desenho é pensamento (Molina, 1995): “O primeiro tipo de desenhos
poderia chamar-se conceptual: fixam uma ideia. Chega-se então a um certo ponto
em que já não pertencem a este tipo, e ao fazê-los o objectivo já não reside na
representação de peças mas em ‘agarrar a energia’ das ideias. Deve considerar-
se que o desenho está terminado quando se atinge o ponto em que a ideia se
define como necessária. Os desenhos podem descrever-se como modelos para uma
concepção mental à qual se ‘dá corpo’ através do desenho.” (p. 33) Apesar do
paralelo que aqui podemos estabelecer com o desenho projectual de outras áreas,
nas artes plásticas (onde Nauman nos serve de exemplo) este momento da criação
passou a ser exposto, apresentado ao público, publicado e comercializado.
Havendo uma inversão da tradicional função do desenho, sendo valorizado o
processo criativo, da experimentação e da espontaneidade. Os surrealistas, nos
anos vinte, já haviam “acreditado” estas características do desenho,
considerando-o “eco” das pulsões e sonhos, como verificamos nos desenhos
automáticos ou nos cadavre exquis.
No entanto, segundo o Professor Juan José Gomez Molina (1995), qualquer
intenção de isolar o desenho na obra de um artista, caracterizando-o como
autónomo, é uma situação enganosa, para o autor: “o desenho, a necessidade de
desenhar, atende sempre a uma intenção específica (...) A valorização do
dese-nho não vai depender tanto do seu valor autónomo como obra de arte,
mas da sua vinculação ao processo pelo qual o artista o transforma numa parte
significativa de si mesmo.” (p. 34)
Marcelo Santos, desenho de figura, 2009.
Aqui, relatamos a contradição, assumindo o desenho nas suas inúmeras
possibilidades, terminamos citando uma definição de 1992 do escultor Richard
Serra que nos parece sintetizar e harmonizar a discussão (Serota &
Silvester, 1992): “O desenho é sempre indicativo do modo como os artistas
pensam. Não consigo referir imediatamente nenhuma obra digna desse nome, na
qual o desenho não seja um elemento chave. Quando falo em desenhar, não me
refiro ao desenho como uma disciplina diferente da pintura ou da escultura. Há
o desenho do desenho e há o desenho na pintura, assim como há desenho na
escultura.” (pp. 21-22)
Apêndice: como se ensina desenho?
Começamos este “apêndice” do texto, “em cima” do tradicional lamento (português
e não só) sobre a falta de preparação ao nível do desenho (entre tantas outras
coisas) dos alunos que nos “chegam às mãos”. Os professores do ensino
secundário queixam-se dos professores do ensino básico, e os professores do
ensino superior (primeiro ciclo) queixam-se dos professores do ensino
secundário. Entenda-se, queixamo-nos constantemente, quase por tradição e fado,
dos ensinamentos que precederam o nível de ensino em que trabalhamos. No
entanto, devemos aqui referir, e por conhecimento de causa, que, na realidade,
os programas, tanto do ensino básico como do ensino secundário são o
suficientemente extensos e completos para preparar os jovens para o ensino
superior no geral e para o ensino superior especializado nas áreas directamente
dependentes do desenho. Agora, a questão que se coloca é: mas, esses programas
são integralmente cumpridos? Se a oferta é boa, o que falha? Não sendo este o
lugar ideal para responder a estas questões, deixamos apenas dois apontamentos
– a massificação do ensino e a “tolerância” instituída em alguns níveis de
ensino, como forma de garantia de uma escolarização mais elevada, levou a que
disciplinas relacionadas com as artes e a prática física/desportiva (as
chamadas expressões, que incluem a educação visual, musical e física) fossem
relegadas para um segundo plano, no primeiro ciclo foram remetidas para
actividades extracurriculares, e no ensino básico, no geral, a componente
lectiva das disciplinas artísticas foi reduzida. Importante é reflectir sobre a
contradição da relação destas medidas com a relevância dada às artes e
tecnologias na actualidade.
Em analepse, voltamos a Ramalho Ortigão e à sua proposta estruturante – o
desenho como base; retomamos também (de forma romântica, se quiserem) o ideário
renascentista de Leonardo e a compreensão do mundo material e imaterial, físico
e simbólico, através do desenho e da experimentação que este possibilita.
Então, qual deverá ser a estrutura das disciplinas de desenho
[4]
no ensino superior? Além das questões enunciadas anteriormente no corpo de
texto, que entendemos como essenciais, queremos aqui acrescentar, de forma
breve, uma possível abordagem para adquirir competências base ao nível do
desenho, de forma a promover uma evolução sapiente dentro desta área científica
e na transversalidade que a mesma permite:
a) Da teoria à prática – a história do desenho.
Como vimos, a história do desenho acompanha a história da arte, incluindo a
história do design e a história da arquitectura, se quisermos ser mais
específicos. Na tradição e nas rupturas o desenho foi rede infinita das imagens
e dos objectos. Consideramos fundamental a exposição teórica de conteúdos nas
disciplinas de desenho, preferencialmente numa análise especulativa da sua
história. De forma amplamente ilustrada, através de um universo imagético
variado, dando visibilidade aos seus instrumentos, materiais, procedimentos,
autores e funções.
b) Desenho à mão livre, mimesis e invenção.
“O senhor Palomar decidiu que daqui para a frente redobrará as suas atenções:
em primeiro lugar, para não deixar fugir os apelos que lhe chegam das coisas;
em segundo lugar, para atribuir à operação de observar a importância que ela
merece. Nesta altura sobrevém um primeiro momento de crise: seguro de que a
partir de agora o mundo lhe revelará uma riqueza infinita de coisas para olhar,
o senhor Palomar experimenta fixar tudo aquilo que lhe vem à mão: não obtém
nisso qualquer prazer e deixa de o fazer. Segue-se uma segunda fase na qual
está convencido de que as coisas a observar são apenas algumas e não outras e
que deve ir à procura delas; para isso tem de enfrentar problemas de escolha,
exclusões, hierarquias de preferências; cedo se apercebe de que está a estragar
tudo, como sempre acontece quando põe de permeio o seu próprio eu e todos os
problemas que tem com o seu próprio eu.”
Italo Calvino em Palomar (1985)
Desenhar, desenhar, desenhar e desenhar. Através de escolhas, enfatismos e
exclusões. Quem desenha aprende e reaprende a ver todos os dias. A experiência,
tanto a nível pedagógico como da prática efectiva do desenho, traduz que se
observa melhor, observando e que se desenha melhor desenhando. Aqui a fórmula
do – “é como andar de bicicleta”, nem sempre funciona. A mão que descansa
demasiado perde a destreza, o cérebro precisa de ser treinado e a mão
obediente. Principalmente nos primeiro anos, até a resposta ser imediata e a
linguagem madura. A compreensão do desenho como procedimento do intelecto,
anteriormente referido, isto é como execução e demonstração do pensamento, faz-
nos afirmar o ensino do desenho a partir da observação e representação do real,
num processo gradual e intenso, que é expressão e razão, antecipador do
projecto, da autonomia ou outra qualquer forma de fazer sob a qual o desenho se
possa apresentar.
No desenho de observação podemos considerar géneros do desenho, tipos de
desenho e tipologias processuais do desenho. Nestas poderiam inscrever-se
tantas e tantas outras subdivisões, mediante o autor ou a época estudada – da
prática ou da teoria. Academicamente, consideram-se géneros do desenho: a
figura humana, o objecto (ou natureza morta) e o espaço (ou paisagem, urbana ou
rural). Dentro destes géneros fundamentais, é iniciática a abordagem
diagramática - educadora e disciplinadora do olhar e da mão. Isto é, um olhar
participativo, selectivo e ordenador, conjugado com a mão obediente e
controlada na transposição da tridimensionalidade para o suporte bidimensional.
Com consciência da dificuldade que supõe a abstracção necessária a este
processo, o diagrama é âncora e rede, sistema métrico estruturador que permite
ao observador compreender a “tradução” da tridimensionalidade, do volume
ocupado pelos objectos, para o plano do papel. Dominada esta fase, integrado o
conceito e transformado em representação, servirá ainda como base para as mais
variadas soluções gráficas. O conhecimento do diagrama serve o esquisso, serve
o esboço e o estudo, o seu conhecimento e domínio permite ao gesto afirmar-se
de forma rápida ou lenta mediante as intenções e as necessidades de quem
desenha. Permite uma mais eficaz abordagem ao 'desenho de massas', por exemplo;
Forma de fazer que se desenvolve através de um envolvente e continuado
movimento da linha (ou mancha), veículo de demonstração da tridimensionalidade
do objecto. Fórmula gráfica antecedente, ou antepassada do desenho de modelação
3D, hoje apresentada em softwares como o Blender, Discreet Maya, ou Solid
Works, entre outros.
E se até aqui abordamos o desenho de representação através da manualidade,
aproveitamos a última frase do parágrafo anterior para consolidar o nosso
entendimento da estrutura das disciplinas de desenho no ensino superior –
primeiro uma abordagem pela representação tradicional, garantia da compreensão
do real, para, e em sequência, a introdução de outros procedimentos que
permitam a invenção – o projecto e a autonomia (anteriormente abordados). Isto
é, os programas das disciplinas de desenho devem ser abrangentes, os conteúdos
devem permitir a aquisição das competências básicas para um exercício efectivo
do desenho, mas devem deixar espaço ao desenvolvimento de uma linguagem
própria, expressão da intenção.
Em conclusão, a aprendizagem do desenho é um processo evolutivo que requer as
doses certas de rigor e disciplina, equilibradas com a “liberdade” e
expressividade, para o conhecimento, desenvolvimento e afirmação de uma
competência e/ou linguagem que tanto pode ser meio como fim nas várias áreas
onde é utilizado.
Ana Sousa, desenho de figura, 2009.