Vida indevida? As acções por wrongful life e a dignidade da vida humana.
1. O problema: as wrongful life claims
A fabulosa evolução da ciência médica nas últimas décadas tem propiciado campo
fértil para o surgimento de complexos e intrigantes problemas. O
desenvolvimento de novos métodos de diagnóstico pré-natal permitiu estender a
intervenção médica até aos confins do início da vida. O progresso da ciência
jurídica, lado a lado com o aperfeiçoamento da ciência médica, fomentou o
surgimento de novas facti-species lesivas em que se procura a adequada tutela
dos dois centros de imputação de interesses em causa: os progenitores e o
nascituro (TEIXEIRA PEDRO, 2008: 272 s). Colocou-se a possibilidade de
configurar o acto do nascimento ou a própria vida enquanto dano. Põe-se a
questão de saber se uma pessoa que sinta a sua própria vida como um prejuízo
pode deduzir uma pretensão indemnizatória contra quem permitiu o seu
nascimento.
A questão foi suscitada pela primeira vez nos Estados Unidos, sendo designada
pela expressão wrongful life, traduzível à letra por vida indevida ou vida
errada. A figura assenta tipicamente no nascimento de uma criança portadora de
graves malformações, passíveis de serem detectadas na fase pré-natal, de acordo
com o estado da arte médica. Nestes casos, a pessoa com deficiência pretende
agir judicialmente[2] contra os médicos, outros profissionais ou instituições
de saúde acusando-os de, com dolo ou negligência, não terem detectado tais
anomalias no âmbito do diagnóstico pré-natal, ou não terem informado
devidamente os pais, impedindo-os, assim, de interromper licitamente a gravidez
[3].
A expressão wrongful lifefoi utilizada pela primeira vez em 1963, no caso
Zepeda vs. Zepeda, por um tribunal do Illinois. O uso desta nomenclatura
generalizou-se por contraposição ao ilícito da morte indevida (wrongful
death), pretendendo significar qualquer acção em que se invocasse a vida como
dano. Enquanto nas acções por wrongful death se reclama que foi posto termo a
uma vida que deveria ter continuado, nas acções por wrongful life alega-se que
uma vida continuou quando deveria ter terminado (COHEN, 1978: 212). Estamos,
deste modo, perante uma questão diametralmente oposta à pergunta de saber se
alguém, representado pelos seus sucessores, pode invocar a sua própria morte
como dano. Neste tipo de casos não nos deparamos com o dano morte mas com o
que pode chamar-se o dano vida (CARNEIRO DA FRADA, 2009: 260). A terminologia
acabou por ser refinada, distinguindo consoante a identidade do demandante,
reservando a expressão wrongful lifepara as acções propostas pela própria
criança. Com efeito, neste tipo de acções quem demanda o médico ou instituição
hospitalar é a própria criança, ainda que através de representantes legais, e
os danos que se invocam são os emergentes do próprio nascimento: a vida com a
deficiência, que não existiria caso o médico tivesse sido diligente.
No âmbito das acções por wrongful life, podemos distinguir dois tipos de
acções, consoante a identidade do demandado.
Por um lado, as acções instauradas pela criança contra um ou ambos os
progenitores com fundamento numa procriação levada a cabo contra indicação
médica, contra o aconselhamento genético. Em resultado deste comportamento, a
criança nasceu fortemente diminuída física e/ou intelectualmente. É o que
sucede, por exemplo, nas acções propostas por filhos de mães toxicodependentes,
que decidem continuar com a gravidez contra a indicação médica, ou nos casos
de mães que recusam tratamentos médicos indispensáveis.
Por outro lado, as acções propostas pela criança contra os médicos por estes
não terem fornecido aos pais as informações necessárias que teriam levado, em
princípio, à interrupção da gravidez, evitando o seu nascimento. Esta é a
típica wrongful life claim, o tipo de acção mais frequente. Ainda que os pais
intervenham como representantes legais do filho, pedem uma indemnização por
danos sofridos pelo filho. O que se pretende indemnizar é o dano sofrido pela
própria criança,por ter nascido com graves deficiências físicas ou mentais,
deficiências que os médicos não detectaram ou sobre as quais não informaram
convenientemente os progenitores.
Deve salientar-se que não estamos perante malformações causadas pelos médicos,
antes perante deficiências que não foram comunicadas aos pais, sendo que estes,
se tivessem sido devidamente esclarecidos, teriam optado por abortar. Não se
pode afirmar que a malformação resulte da conduta reprovável do médico ' ela
deriva de um facto natural. O médico não causa a má-formação, antes não informa
a mãe da sua existência. O médico não se apresenta responsável pela implantação
da deficiência, que surge normalmente logo desde o início da vida pré-natal. No
entanto, a omissão do esclarecimento sobre essa deficiência é tida como
ilícita. O comportamento alternativo lícito do médico teria evitado o
nascimento e, deste modo, a vida gravemente deficiente (CARNEIRO DA FRADA,
2009: 260). De acordo com DIAS PEREIRA (2004: 376 s) isto pode acontecer de
três modos distintos: primeiro, quando o médico não informa (ou informa
insuficientemente) os progenitores da possibilidade de a criança vir a padecer
de uma doença congénita grave; segundo, quando há negligência na selecção de um
embrião para implantação no processo de procriação assistida (diagnóstico pré-
implantatório negligente); e terceiro, quando o médico não avisa a mãe de que o
feto sofre de uma malformação grave.
É necessário, por outro lado, que a ciência médica não disponha de remédio ou
cura para a malformação presente no feto. Caso contrário, não estaremos perante
uma situação em que a negligência do médico tenha privado os pais de exercerem
a faculdade de abortar mas antes perante um cenário diferente, em que o
comportamento do médico impediu que a criança nascesse saudável. Nos casos
típicos de wrongful life, não existe a opção de que a criança nascesse
saudável: ou nascia com deficiência, ou não nascia (MACÍA MORILLO, 2007: 20).
O impulso decisivo para a difusão e discussão mediática deste problema no
contexto europeu foi dado pelo célebre arrêt Perruche, da Cour de Cassation
francesa, de 17 de Novembro de 2000). Nicolas Perruche nasceu com gravíssimas
malformações, por força da rubéola contraída pela mãe. O Tribunal da Cassação,
reunido em assembleia plenária, decidiu que a criança tinha direito a uma
indemnização porque as faltas cometidas pelo médico e pelo laboratório tinham
impedido a possibilidade de a mãe interromper a gravidez e assim evitar o
nascimento do filho. Pela primeira vez, um tribunal superior concedia uma
indemnização à criança deficiente pelo simples facto de esta ter nascido.
Este caso desencadeou uma viva discussão no seio da sociedade francesa e
europeia. As associações de deficientes encararam esta decisão como uma afronta
aos seus direitos, pondo em causa o estatuto das pessoas com deficiência e
incentivando a prática do aborto. Estalou o debate em volta da questão do
aborto, do eugenismo, da função e limites do diagnóstico pré-natal. Os médicos
obstetras e especialistas em diagnóstico pré-natal começaram a enfrentar
dificuldades acrescidas para segurar a sua responsabilidade civil. Em
consequência do clima de agitação, os ecografistas decidiram suspender a sua
actividade até que o legislador regulasse a sua responsabilidade (DIAS PEREIRA,
2004: 382).
Em reacção ao alvoroço jurídico e social provocado por este affaire, o
legislador francês aprovou a Lei n.º 2002-303, de 4 de Março de 2002, sobre os
direitos dos doentes e qualidade da saúde, que determina no artigo 1º a regra
base de que ninguém pode tirar partido de um prejuízo pelo facto de ter
nascido. No artigo 2º estipula-se que a pessoa que nasceu com um defeito
devido a um erro médico pode obter a reparação do seu dano quando o autor
faltoso provocou directamente o defeito ou o agravou ou não permitiu tomar as
medidas susceptíveis de atenuação. Distingue-se assim o chamado dano pré-
natal (pre-natal injury, segundo a doutrina inglesa) que merece tutela
delitual, do dano da vida indevida (wrongful life) cuja tutela é legalmente
afastada (DIAS PEREIRA, 2004: 385). Deixou, deste modo, de poder ser
indemnizado o prejuízo de viver. O legislador francês pretendeu estancar as
acções de wrongful lifee remeter para o Direito social e para a solidariedade
nacional o apoio aos cidadãos deficientes.
O problema da wrongful life é digno de uma reflexão aprofundada por uma série
de motivos.
Em primeiro lugar, pela sua importância prática, pois este tipo de reclamações
surge com cada vez maior frequência. A proposição deste género de acções é
crescentemente potenciada pelo desenvolvimento das potencialidades de
escrutínio em diagnóstico pré-natal e pelas mudanças sociais e legais ocorridas
nas últimas décadas. Tornou-se cada vez maior a possibilidade de prever
problemas antes da própria concepção (através da análise da história genética
dos pais) ou de determinar com precisão adequada depois da concepção (exames in
utero). Em segundo lugar, esta questão é relevante pois, tocando a sensível
temática dos direitos de personalidade, está intimamente ligada à tutela da
dignidade da pessoa humana, ao direito de procriar enquanto densificação do
direito ao livre desenvolvimento da personalidade, suscitando acesa discussão
sobre eventuais intuitos eugénicos. Por último, trata-se de um tipo de acção
que permite apreciar a capacidade do instituto da responsabilidade civil para
lidar com todo um novo conjunto de dilemas ético-jurídicos, cujas fronteiras
nem sempre são claramente perceptíveis (NUNES VICENTE, 2009: 117 s).
Em Portugal esta questão ainda não foi objecto de apreciação pelo Tribunal
Constitucional. Talvez por isso, ainda não mereceu entre nós um tratamento
aprofundado do ponto de vista do Direito Constitucional e da doutrina dos
direitos fundamentais, excepção feita ao trabalho de CARNEIRO DA FRADA (2009).
Atendendo à profunda ligação entre o Direito Civil e o Direito Constitucional,
consideramos que a ponderação da figura não pode ser apartada da dogmática dos
direitos fundamentais. O problema da wrongful life é, no seu cerne, de
natureza jurídico-privada, mas não é imune à Constituição, uma vez que os dados
jurídico-constitucionais têm relevância normativa na avaliação e decisão de
litígios jurídico-privados (CARNEIRO DA FRADA, 2009: 283 s).
Do quadro normativo constitucional resulta, desde logo, no seu primeiro
preceito, que Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da
pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade
livre, justa e solidária. O n.º 1 do art. 24º da Constituição dispõe que a
vida humana é inviolável. Para além disso, o n.º 1 do art. 25º estabelece que
a integridade moral e física das pessoas é inviolável. Estes direitos,
guindados à natureza de direitos fundamentais, possuem eficácia imediata, seja
qual for o tipo de relação jurídica em causa, nos termos do art. 18º da lei
fundamental (os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos,
liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades
públicas e privadas). O direito à vida, como direito fundamental da pessoa,
radica na personalidade. Os direitos fundamentais e os direitos de
personalidade que lhe correspondem não são, no seu núcleo, renunciáveis. A
disponibilidade do direito à vida não seria compatível com a dignidade da
pessoa humana (GOMES CANOTILHO, 2002: 464).
Suscitando a ponderação e aplicação das regras do instituto da responsabilidade
civil, a questão em análise levanta sérios problemas de difícil solução, não só
ao nível do apuramento do nexo de causalidade mas também da identificação e
determinação do dano sofrido e da definição do conteúdo das leges artis, à luz
dos progressos e limitações da ciência médica. A responsabilidade civil é
frequentemente utilizada como forma de protecção da vida e da sua qualidade
contra lesões físicas. O problema em presença passa por saber se o Direito
tutela um (eventual) interesse na morte. O dano da vida é distinto do
problema das lesões que podem atingir a criança na fase pré-natal e das suas
consequências. Neste último caso coloca-se o problema de saber se uma
deficiência resultante dessa lesão pode constituir um dano indemnizável. No
caso de que nos ocupamos, diversamente, é a própria vida que é tida como dano.
A pergunta que se coloca é a seguinte: será admissível a existência de um
direito à não existência e de uma indemnização pela sua violação?
2. Wrongful life e wrongful birth
Próximo da figura da wrongful life, por identidade das circunstâncias que estão
na sua origem (erro ou negligência profissional, que a não existir poderia ter
possibilitado uma interrupção voluntária da gravidez) situa-se um outro,
conhecido como wrongful birth. Também nas acções de wrongful birth, traduzíveis
à letra por expressões como nascimento indevido ou nascimento errado,
releva o facto de o evento lesivo ter conduzido a um nascimento indesejado. Os
dois tipos de acções enquadram-se naquilo que os Autores anglo-saxónicos
apelidam de birth torts (ilícitos civis resultantes do nascimento). De acordo
com a doutrina norte-americana, as acções de wrongful life e de wrongful birth
distinguem-se essencialmente em dois aspectos: quanto à legitimidade activa e
quanto à sua virtual procedência (ÁLVARO DIAS, 1996: 380 s).
A primeira grande diferença entre os dois tipos de acções prende-se com a
identidade do demandante (MOTA PINTO, 2005: 217 s) (NUNES VICENTE, 2009: 120).
Nas wrongful birth actions a acção é intentada pelos pais da criança, não
enquanto seus representantes legais, mas em nome próprio. Estas acções são
propostas pelos progenitores contra os profissionais médicos em virtude do
nascimento de uma criança não desejada, exigindo uma indemnização pelos danos
resultantes da gravidez e da educação da criança. Neste tipo de acções os pais
invocam os danos por eles sofridos, sejam danos patrimoniais ou morais. Estamos
perante uma lesão do direito às informações necessárias para decidir sobre a
procriação. Desde que são oferecidos serviços de diagnóstico pré-natal e a lei
considera a interrupção da gravidez não punível em certos casos, a grávida tem
direito ao funcionamento normal e eficaz desses serviços para obter as
informações relevantes sobre o andamento da gestação, de tal modo que possa
beneficiar do regime da interrupção voluntária da gravidez quando for caso
disso. Mesmo antes do nascimento e da verificação de outros danos no feto, a
grávida já sofreu uma diminuição do seu direito à autodeterminação informada '
uma lesão provocada pela má prática do médico (GUILHERME DE OLIVEIRA, 2005:
231).
O segundo aspecto que distingue claramente as acções por wrongful life das
acções por wrongful birth prende-se com o seu êxito prático: enquanto as
primeiras têm sido geralmente julgadas improcedentes, as segundas têm registado
um assinalável êxito junto dos tribunais.
A quase totalidade da doutrina e da jurisprudência europeia admite esta acção,
concedendo aos pais o direito a uma indemnização por violação do seu direito à
autodeterminação (em especial da mãe), concretamente no que toca ao planeamento
familiar. O direito à autodeterminação é um direito de personalidade, cuja
tutela é abrangida pelo direito geral de perso¬nalidade reconhecido no art. 70º
do nosso Código Civil, para além de ter acolhimento no texto constitucio¬nal
(art. 26º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).
De uma análise das decisões jurisprudenciais dos tribunais europeus e norte-
americanos resulta que, quando confrontados com estas inquietantes demandas, os
tribunais tendem a conceder indemnizações pelas des¬pesas excepcionais de
sustento de uma criança deficiente, e uma indemnização pelos danos morais dos
pais, mas rejeitam a pre¬tensão indemnizatória apresentada pela criança, pelo
dano pessoal de ter nascido (DIAS PEREIRA, 2004: 378 ss).
No quadro do Direito português vigente estão reunidos os pressupostos legais
para responsabilizar civilmente os médicos que, na área da medicina pré-natal,
violem negligentemente as leges artis ou não cumpram o seu dever de
esclarecimento e informação. Essa responsabilidade deverá abranger os danos
patrimoniais (especialmente, os custos adicionais resul¬tantes da deficiência)
causados aos pais e à criança nascida, bem como os danos não patrimoniais,
resultantes da privação da possibilidade de praticar licitamente a interrupção
da gravidez. Os progenitores podem também reclamar uma indemnização pelo
desgosto e sacrifício que pode representar o nascimento de uma criança
deficiente (DIAS PEREIRA, 2004: 391).
Entre nós, apenas SOARES PEREIRA (2009: 298) formula dúvidas sobre a
possibilidade de intentar acções por wrongful birth. No seu entender, se é
indubitável que o nascimento de uma criança comporta alterações no equilíbrio e
no estilo de vida dos progenitores, também o normal é que tal nascimento
consubstancie uma ocasião de alegria na própria família. É certo que os
progenitores têm direito a uma paternidade consciente e responsável. Mas
repugna a consideração do nascimento de um filho como dano, especialmente como
não patrimonial. O Autor lembra, citando FAVILLI, que não se encontra fundada
e motivada a «crismação» da inviolabilidade de um tal direito no sentido de uma
freedom of choice, reconhecida nos EUA como garante do direito ao aborto.
3. Contra: a indisponibilidade do direito à vida
Como vimos, nos casos de wrongful life a pessoa com deficiência pretende agir
judicialmente contra os médicos acusando-os de, com dolo ou negligência, não
terem detectado anomalias detectáveis no âmbito do diagnóstico pré-natal, ou
não terem informado devidamente os pais, impedindo-os, assim, de interromper
licitamente a gravidez.
A primeira reacção de quem é confrontado com uma acção em que se reclama contra
o nascimento ou contra a vida não pode deixar de ser a estranheza. Há quem
sustente que não é possível haver unanimidade nesta matéria, porque, para além
da questão jurídica, estão em causa concepções morais, filosóficas,
religiosas, económicas e políticas (PINTO MONTEIRO, 2006: 132). Algumas
decisões entenderam mesmo que os tribunais não eram as instituições adequadas
para resolver a questão, pois esta levantava problemas morais e não jurídicos.
O problema era mais teológico e filosófico que legal (assim, por exemplo, um
tribunal da Califórnia no caso StillsvsGratton, em 1976). Outros defendiam que
a admissibilidade deste tipo de acções deveria ser deixada ao cuidado do
legislador, por a noção de wrongful life ser um conceito radical (caso Zepeda
vs. Zepeda, já referido).
É evidente que os tribunais têm legitimidade e competência para se pronunciarem
sobre este problema. A moral, a ordem pública e a lei estão constantemente
entrelaçadas. Cabe ao legislador reflectir as mudanças de perspectiva da
sociedade. No caso Superintendent of Belchertown State School vs. Saikewicz, de
1977, o Supreme Court do Massachusetts reconheceu que quando estamos perante
problemas de vida e morte, a lei não pode separar-se da moralidade.
Embora este problema levante questões de vária ordem, vamos debruçar-nos apenas
sobre o plano jurídico. Esgrimem-se argumentos contra e a favor, todos eles de
grande pertinência. Pois bem: iremos dirigir a nossa atenção apenas para um dos
pontos que se localiza no centro da discussão ' a contrariedade (ou não) deste
tipo de acções com o valor da vida e com a dignidade do ser humano.
Um dos principais argumentos invocados contra a admissibilidade das acções de
wrongful life é o de que a reparação de danos próprios da criança pressuporia
reconhecer-lhe um direito a não nascer ou um direito à não existência,
direito que não tem qualquer consagração legal (MOTA PINTO, 2005: 220), (PINTO
MONTEIRO, 2002: 383 ss). Esta posição encara o dano sofrido pela criança como o
dano por ter nascido, assentando no pressuposto de que a criança reclama, com
o pedido indemnizatório, que teria sido preferível a não existência à
existência em tais circunstâncias (ÁLVARO DIAS, 1996: 380). De acordo com a
doutrina dominante, pedir essa reparação seria pedir ao Direito que
considerasse a morte preferível à vida deficiente, o que seria de todo
impossível, por contrariedade aos pilares de um sistema jurídico civilizado.
Seria ilógico um indivíduo reclamar que não deveria existir uma vez que a
public policy favoreceria sempre a vida sobre a não-existência. Os Autores que
defendem que estas acções são contrárias aos princípios da ordem pública citam
frequentemente filósofos gregos, a Bíblia ou os ditames da providência e do
destino. Outros referem que o direito à vida é inalienável (COHEN, 1978: 223).
A maioria dos Autores que centra o problema na identificação da vida como
dano rejeita frontalmente este tipo de acções. Defende-se que tal
identificação é contrária ao próprio conceito de dano e que é impossível
considerar como dano aquilo que é um benefício. Defender que a própria vida é
um prejuízo corresponderia a um acto de disposição da própria vida. Pretender
que a própria vida é, sem si mesma, um dano para com base nisso aceder a uma
indemnização seria juridicamente inconcebível, porque inconciliável (CARNEIRO
DA FRADA, 2009: 271).
Por outro lado, as regras da responsabilidade civil obrigam-nos a comparar a
situação em que o lesado se encontra com a situação em que estaria se não
tivesse existido o facto danoso, de acordo com a teoria da diferença. Se alguém
alega um dano para obter uma indemnização, quer sempre prevalecer-se da
situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento conducente à reparação
(veja-se o art. 562º do Código Civil). Deste modo, somos obrigados a ter em
conta a alternativa, que neste caso corresponde a um não-ser. Como refere
STOLKER, in wrongful life claim the child is forced by the rules of the game
to compare its handicapped existence with non-existence (apud NUNES VICENTE,
2009: 133). Ora, nos casos em análise não existiria um dano, pois não se pode
comparar a existência com deficiência com a não existência. Seria inaceitável
a invocação de um dano consubstanciado na própria vida: a criança não poderia
afirmar preferir não ter nascido, a nascer com a deficiência, sob pena de a
comparação do dano actual ser feita com o da não existência, impossível de
quantificar. O Direito não dispõe de critérios para calcular o valor pecuniário
do prejuízo de ter nascido.
No caso Gleitman v. Cosgrove, de 1967, o New Jersey Supreme Court negou o
direito da criança a uma indemnização por falta de danos reconhecíveis: o
demandante estaria a exigir que se medisse a diferença entre a sua vida com
deficiência contra the utter void of non-existence, sendo impossível
determinar tal diferença. Ao alegar que nunca deveria ter nascido, a criança
torna logicamente impossível ao tribunal medir os seus alegados danos, uma vez
que é impossível efectuar a comparação requerida pelas medidas de reparação de
danos. Uma vez que o dano causado à criança é a sua própria vida, os tribunais
encaram a sua tarefa como sendo a de medir a diferença entre a não-existência
(a posição do demandante se não fora a negligência do médico) e a vida com
deficiência (a posição do demandante após a negligência do médico).
A doutrina portuguesa defende maioritariamente a necessidade de distinção entre
o pedido indemnizatório que é formulado pelos pais (wrongful birth) e o pedido
deduzido pela própria criança (wrongful life),defendendo a rejeição deste
último. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Junho de 2001 foi a
primeira (e até à data, única) decisão do nosso tribunal superior sobre a
questão da wrongful life. Para além de outras questões, sobre as quais se
debruçou, o Supremo concluiu que o que estava verdadeiramente em causa era o
direito à não existência, concluindo que este direito não pode ser configurado
legalmente[4].
O Supremo Tribunal entendeu que os pais teriam, eventualmente, o direito à
interrupção da gravidez, mas não era esse o direito que estava em discussão,
uma vez que o Autor era o próprio filho. De acordo com o aresto, a questão, tal
como colocada, partia do pressuposto de que a criança afirmava não querer
existir, reclamando o direito a uma indemnização por isso acontecer. Nas
palavras dos Conselheiros, tal direito, que não encontra consagrações na nossa
lei, mesmo que exista, não poderá ser exercido pelos pais em nome do filho. Só
este, quando maior, poderá, eventualmente, concluir se devia ou não existir e
só então poderá ser avaliado se tal é merecedor de tutela jurídica e de
possível indemnização. As acções intentadas pelos filhos pelo dano de ter
nascido só poderão, deste modo, ser intentadas pelos filhos quando a lei
vigente lhes conceder o poder de pleitearem por si próprios.
Neste caso estava sob análise um pedido de indemnização por danos patrimoniais
e morais sofridos pela própria criança.No entanto, o tribunal referiu que
problema seria diferente se os autores da acção fossem os pais, e se o pedido
de indemnização dissesse respeito aos danos sofridos por estes. Deste modo,
embora recusando o pedido indemnizatório tal como formulado, o Supremo Tribunal
de Justiça deixou em aberto a hipótese de uma futura wrongful birth action ou
de uma acção por wrongful life, quando o Autor atingir a maioridade.
Este acórdão decidiu em conformidade com a doutrina dominante no Direito
comparado, sendo aplaudido pela generalidade da doutrina portuguesa que se
ocupou do problema. No entender de PINTO MONTEIRO (2006: 137), relator do
aresto, o que estava em causa nesta acção era o direito à não existência; o
direito a não nascer ( ). Ora, no seu entender, o nosso ordenamento jurídico
reconhece e tutela o direito à vida, bem como outros direitos de personalidade,
mas não tutela o direito à não existência. Mesmo que, por imposição
legislativa, se admita o direito à não vida, como será o caso do suicídio ou da
eutanásia, ainda assim, sempre o caso em análise ultrapassaria esses limites.
SOARES PEREIRA (2009: 299), na esteira de ÁLVARO DIAS (2001: 500 ss) entende
que as acções por wrongful life levantam muitas dúvidas quanto à reparação de
danos não patrimoniais. No seu entender, se a invocação ou defesa de um
direito a não nascer («the right not to be born»), por se entender que a vida
em certos casos não vale a pena ser vivida, poderá por vezes ter uma componente
altruísta, não menos verdade é que esse argumento também tem muito de «instinto
de sobrevivência dos pais». Por outro lado, não é possível comparar a
existência com a não existência. Assim, conclui, com ÁLVARO DIAS, que a
presunção a favor da vida não pode deixar de ser o critério rector.
Nesta óptica, as acções por wrongful life seriam inaceitáveis, uma vez que a
dignidade humana proibiria a degradação da vida a um sem-valor. O titular da
vida estaria impedido de reclamar uma indemnização pelo dano da própria vida,
uma vez que o direito à vida seria irrenunciável. Embora esta
irrenunciabilidade não encontre apoio directo no texto constitucional, o
direito à vida, enquanto direito de personalidade máximo, seria absolutamente
indisponível, uma vez que qualquer restrição voluntária ao mesmo seria sempre
contrária aos princípios da ordem pública, nos termos do art. 81º, n.º 1 do
Código Civil.
Alguns Autores, embora rejeitando as acções por vida indevida, reconhecem a
contrariedade de valorações com a atribuição de uma indemnização aos pais. Com
efeito, parece pouco coerente reconhecer o direito de indemnização aos pais
pelo nascimento da criança e não o fazer em relação à própria criança que é
quem, afinal, sofre todas as consequências da actuação negligente ou dolosa do
médico. Assim, por exemplo, MENEZES CORDEIRO (2007: 332) entende que a solução
estará no alargamento dos escopos da responsabilidade civil e da tutela da
confiança na execução dos contratos, reconhecendo uma indemnização aos pais
por violação do contrato e do dever de informar.
4. A favor: a não contrariedade ao valor da vida
A especial associação entre o dano reclamado e a própria vida nas acções por
wrongful life levou a que na sua análise se tenham envolvido de forma expressa
ou implícita crenças e concepções de natureza ética, moral ou religiosa, que
impedem uma correcta análise do tema desde o ponto de vista da responsabilidade
civil. Muitos dos estudos sobre estas acções baralham argumentos de aceitação
ou de rejeição que se inspiram apenas em determinadas posições acerca do valor
supremo ou absoluto da vida. A resposta a dar a esta questão deve ser uma
resposta técnica, deixando de lado, na medida do possível, as crenças próprias
de cada um, limitando-se a analisar a ocorrência, nestes casos, dos
pressupostos da responsabilidade civil (MACÍA MORILLO, 2007: 21).
Na discussão desta temática é usual o recurso a um vocabulário dos direitos,
sendo invocada frequentemente a inexistência de um direito a não nascer
(JECKER, 1987: 150). Em nosso entender, a utilização deste tipo de discurso
pode perturbar a compreensão do que verdadeiramente está em causa neste tipo de
acções. Neste sentido, MOTA PINTO (2007: 16) defende que não é útil trabalhar
com um pretenso «direito a não nascer», ou com um «direito à não-existência»,
cuja difícil articulação, pela contradição que encerra em si mesmo, logo remete
o julgador para uma atitude negativista. Tal noção, embora corrente, parece-nos
mesmo, susceptível de criar confusões, dando a entender que a posição da
criança se tem de fundamentar num tal direito, e pode obscurecer a
problemática substancial, e os resultados práticos que estão em causa ' no que
não é, aliás, mais do que uma expressão dos inconvenientes da utilização da
forte linguagem dos direitos quando estão em causa problemas éticos e
jurídicos de fronteira. De igual modo, ARAÚJO (1999: 84 s), embora debruçando-
se sobre o problema da conciliação dos interesses da criança com a liberdade
dos progenitores, nas acções dirigidas contra estes, desaconselha o recurso,
para uma solução, à linguagem dos direi¬tos, entendendo que o problema se
aproxima antes do dever de informação e consenti¬mento médicos.
Há que reconhecer, desde logo, que o nosso ordenamento jurídico não atribui um
valor absoluto e indiscutível à vida, uma vez que a sua protecção sofre algumas
relativizações em alguns casos (por exemplo, na legítima defesa e no estado de
necessidade). Estas relativizações também se manifestam ao nível da própria
disponibilidade do direito por parte do seu próprio titular, por exemplo, com a
não punição do suicídio. O surgimento de algumas decisões sobre o direito a
morrer com dignidade demonstra, por outro lado, que por vezes os princípios de
ordem pública favorecem a não vida sobre a vida. COHEN (1978: 224) questiona
se, por analogia, não se pode defender que, em certas circunstâncias, a não-
existência seria preferível à vida tal como ela é, e que por isso a pessoa foi
prejudicada pelo simples facto de nascer.
Ademais, deve ter-se em conta que neste tipo de acções não é a vida, em si
mesma, que consubstancia o dano, mas sim a vida com deficiência. O dano
invocado pela criança assenta, não na discussão, como refere ARAÚJO (1999: 96),
de saber se há um limite (e onde está) para lá do qual a vida perde de tal
modo o sentido que a sua ocorrência é um dano para quem a experimenta, mas
apenas e tão-somente na necessidade de responsabilizar o profissional
negligente que ilegitimamente se substituiu aos pais na tomada de uma decisão
que só a eles pertence (CARDOSO CORREIA, 2007: 106). Neste sentido, o acórdão
do tribunal de 2ª instância holandês no célebre caso Kelly Molenaar declarou
procedente a acção por wrongful life, defendendo que não incumbe ao tribunal
decidir sobre a vida ou sobre a morte da criança, pois essa é uma decisão que
cabe apenas aos progenitores.
É usual considerar-se que neste género de pleitos a criança deve demonstrar que
estaria muito melhor se nunca estivesse nascido (better off dead). Basicamente,
a criança pretenderia demonstrar que seria preferível o vazio da não existência
à vida tal como a experimenta. Ora, se fossem entendidas desta forma simplista,
estas acções deveriam ser tidas como ilógicas, uma vez que esbarrariam no
chamado «problema da não identidade»: quando o dano que se invoca só poderia
ser evitado se se obstasse ao nascimento do indivíduo cuja existência tem um
valor absoluto, no sentido de não ser radicalmente posto em causa pela
verificação do dano, da deficiência incurável, então trazer esse indivíduo à
existência com a deficiência não o coloca numa situação pior do que qualquer
outra possível, não podendo apurar-se, pois, aquela diferença negativa' em que
consiste o dano (ARAÚJO, 1999: 97). Com base neste argumento, uma boa parte da
doutrina entende que este tipo de acções será sempre inadmissível pois a
criança não pode ter uma pretensão indemnizatória contra aquele sem cujo
comportamento errado não teria de todo chegado a nascer.
No entanto, dar relevância a esta contradição é, na verdade, uma forma de
ofensa à criança que peticiona a indemnização. Com efeito, se levarmos ao
extremo o argumento da não-identidade estaremos a dizer que não só a criança
nasceu com uma grave deficiência, como, na medida em que não teria podido
existir de outro modo, é-lhe vedado sequer comparar-se a uma pessoa «normal»,
para o efeito de obter uma reparação pelo erro médico . Deste modo, a
existência da criança é um dado que não pode estar em causa, para efeitos de
fixar a sua legitimidade (MOTA PINTO, 2007: 17 s).
É verdade que a criança não tinha alternativa: ou nascia com deficiência, ou
não nascia de todo. É óbvio que é impossível estabelecer uma comparação entre a
vida deficiente e a não-vida, estado sobre o qual nenhum ser vivo se pode
pronunciar com conhecimento de causa. Nunca poderemos comparar a situação
actual da criança (viva, com deficiências graves) com a situação hipotética
(nunca ter nascido, nunca tendo portanto chegado a ser vítima de qualquer
ofensa ou prejuízo). O requisito do dano continua, reconhecemo-lo, a suscitar
muitas dificuldades, uma vez que o nascimento sem a deficiência não teria sido
possível. O dano não é a deficiência de per si, nem o próprio nascimento, mas
antes o nascimento nessa condição, ou seja, o nascimento deficiente. O problema
é saber se este é um dano juridicamente reparável. A dúvida que se nos depara é
a de determinar se a atribuição de uma indemnização à pessoa que nasceu
deficiente não colide frontalmente com o princípio da dignidade da pessoa
humana, por se desqualificar ou valorar desfavoravelmente a vida das crianças
deficientes, validando, ainda que implicitamente, o eugenismo (NUNES VICENTE,
2009: 134).
No nosso modesto parecer, as acções de wrongful life não contendem com a
dignidade da existência humana e com a indisponibilidade do direito à vida. Com
efeito, não está em causa qualquer reconstituição natural pela qual se
pretenda eliminar a criança, nem se procura auxílio para uma morte digna ou
autorização para o suicídio. O Autor da acção não pretende auto-limitar nenhum
direito de personalidade, concretamente o direito à vida. A criança não
pretende abdicar da sua vida, muito pelo contrário, ela pode intentar uma acção
justamente porque está viva e é sujeito de direito (NUNES VICENTE: 2009, 136).
A indisponibilidade da vida humana não é posta em causa pelo simples facto de
se atribuir uma indemnização à criança. Só estaríamos a pôr em causa o valor da
vida se a atribuição da indemnização levasse implícito um juízo sobre esse
valor, sobre o valor da existência humana comparada com a não existência, o
que afectaria a dignidade humana sendo contrário a qualquer sistema jurídico
civilizado (MOTA PINTO, 2007: 19). Assim, no julgamento dos casos em apreço
ser ou não ser não é a questão, nem há, sequer, que desempenhar o papel de
Hamlet (MOTA PINTO, 2007: 19).
Na verdade, do que se trata neste tipo de acções não é da vida como valor ou
desvalor, mas antes, realmente, dos sofrimentos e das necessidades causadas
pela deficiência. A indemnização não deve compensar o dano de ter nascido mas
sim a dor e o sofrimento que a criança experienciou após o nascimento (burden
of his existence). Neste sentido, como referem DEUTSCH e SPICKHOFF, o
ressarcimento é o equivalente indemnizatório do fundamento da responsabilidade,
que está no não reconhecimento da deficiência (apud MOTA PINTO, 2007: 19.) Não
se trata de apreciar a «qualidade de vida» que é assegurada através do
nascimento, o impacto do nas¬cimento na afectação e oneração de recursos
escassos, a ponderação do direito a nascer com o direito a viver dos que virão
a ver-se obrigados a partilhar meios de sobrevivência escassos com uma nova
vida que não se sustenta a ela própria. Nem se trata de sustentar a
proposição absurda de que a ordem jurídica assegura a alguém o «direito a
nascer normal», a ponto de dizer-se que a negação desse direito envolveria ipso
facto o mecanismo da indemnização (ARAÚJO, 1999: 99).
Neste sentido, no acórdão do Supremo Tribunal Holandês, de 18 Março de 2005, no
já referido caso Kelly Molenaar, entendeu-se que a perspectivação implícita do
nascimento de uma criança seriamente deficiente como dano' não leva obviamente
pressuposto qualquer juízo sobre a consideração do valor dessa criança, ou da
sua existência como pessoa, e ainda menos implica que a própria vida de Kelly
seja marcada como um dano. Concordamos, deste modo, com ARAÚJO (1999: 96),
quando refere: se este tipo de acções pretendessem pôr em causa o respeito
tradicional pelo valor intrínseco e absoluto da vida, elas deveriam ser pura e
simplesmente banidas.
Valorando devidamente as circunstâncias típicas que subjazem a este problema,
podemos questionar, com PINTO MONTEIRO (2002: 383): será que se respeita mais
a dignidade humana quando se recusa a indemnização, ou, pelo contrário, não
será precisamente o respeito pela pessoa humana a exigir que se lhe reconheça
esse direito a fim de suportar a vida com um mínimo de condições materiais e de
dignidade?. MOTA PINTO (2007: 20) responde neste último sentido, e também nós.
Com efeito, a atribuição de uma indemnização à própria criança não atinge a sua
dignidade, uma vez que não tem de assentar na conclusão de que a existência
como deficiente é menos valiosa do que a não-existência. Ao atribuir uma
indemnização à própria criança está-se justamente a promover a dignidade humana
da criança.
Esta solução (a atribuição de uma indemnização à criança pelo facto de ter
nascido com uma deficiência que não teria sido possível evitar depois de ter
sido detectada) é, reconheça-se, algo contra-intuitiva. Mas estamos com MOTA
PINTO (2007: 21, 2008: 750) quando entende que se deve proceder a uma reanálise
das intuições em jogo, centrada nos resultados práticos em questão, o que nos
leva a uma alteração da conclusão, para além da cortina de fumo de problemas
como os do valor comparativo da vida e da não-vida ou da dignidade humana.
Dando-se em consequência de erro médico o nascimento de uma criança deficiente,
o primeiro e mais directo visado é a própria criança. A forma como a acção é
apresentada é irrelevante quando comparada com o facto, incontestável, de que
nasceu uma pessoa com deficiências severas, que busca a reparação dos danos
sofridos, pessoa essa que está viva e não morta. Não deve ser dada demasiada
importância ao facto de a lesão ser apresentada de forma diferente pela criança
ou pelos pais: eu nasci com deficiências, eu não deveria ter nascido, eu
sofro, eu quero uma reparação no primeiro caso; ou se eu soubesse que o meu
filho tinha um grave problema genético, teria posto fim à gravidez e evitado os
danos, no segundo, por o primeiro sublinhar o sofrimento e a dor de uma pessoa
e o segundo se centrar na perda de possibilidade de exercício de uma faculdade
legalmente reconhecida (CANELLOPOULU BOTTIS, 2004: 55).
Deve ser admitida a indemnização da criança, sendo indiferente que a acção seja
intentada pelos pais ou pelo próprio filho (GUILHERME DE OLIVEIRA, 2005: 229).
Porque é que há-de repugnar que se conceda a indemnização ao filho, se já não
repugna atribuir tal indemnização se forem os pais a peticioná-la (PINTO
MONTEIRO, 2002: 383)? Concordamos com aqueles que entendem que é um truque
legal que as acções por wrongful life, que são apresentadas pelos pais, sejam
geralmente recusadas, mas as acções por wrongful birth sejam aceites. Na
expressão eloquente de CANELLOPOULU BOTTIS (2004: 55), aquilo que um advogado
astuto não conseguir numa porta, conseguirá abrindo a porta seguinte.