O comércio de couro dourado/guadameci entre Córdova e Lisboa: um contrato de
venda de 1525
No pequeno mas interessante livro Cordobanes y guadameciles de Córdoba
encontra-se referência aos grandes contratos de fabrico de guadamecis,
exportados para outros locais europeus; entre eles está um, relativo a
exportação para Lisboa, para el rey de Portugal, datado de 15251.
Graças à disponibilidade da Dra. Alicia Córdoba Deorador, do Arquivo Histórico
daquela cidade, pude ter acesso ao contrato original; a ela também devo o
trabalho de paleografia. Antes de comentar este importante e raro documento, é
necessário algumas explicações prévias.
O guadameci: materiais e técnicas
O couro trabalhado pela técnica do guadameci implica o uso de couro de carneiro
como suporte (como é estabelecido nos regimentos quinhentistas de Madrid,
Córdova e Valência). Este tipo de couro usado para os guadamecis foi, em 1575,
referido pelo cronista espanhol Ambrosio de Morales: y es tanta la ventaja de
adereçarse bien los cueros en Cordoua, que ya por toda España, qualesquier
cueros de cabra en qualquier parte que se ayan adereçado, se llaman cordouanes,
por la excelencia deste arte que en aquella ciudad ay. [...] Las badanas sirven
para los guadamecis, que se labran tales en Cordoua2. Temos, assim, o curtume
do couro de cabra ' denominado cordouan/cordovão por força da qualidade e fama
do original de Córdova ', e o couro de carneiro, denominado badana, a ser
utilizado nos guadamecis. O cronista faz a correcta separação entre uma
curtimenta peculiar das peles de cabra e uma técnica decorativa cujo suporte é
o couro de carneiro.
Um pequeno parágrafo sobre o cordovão: este couro de cabra é um produto fino,
resistente e suave do curtume, de designação devedora à toponímia, mas foi
curtido noutros locais da Península; em Lisboa, uma postura camarária de 1465
regulava o curtume do cordovão3; o regimento dos borzeguyeyros çapateiros
coqueiros cortidores çurradores e odreyros, de 1489, refere a participação de
muçulmanos no curtume, a par de cristãos e judeus4. Segundo os regimentos de
1572, era o cordovão aplicado em calçado, cintos, adargas e selaria5; também
era usado como coberta de pequenos baús do século XV, como observei, com
ornamentos obtidos por incisão e puncionamento6.
O citado texto de Ambrosio de Morales é comentado por John Waterer '
investigador e primeiro director do museu inglês do couro, em Northampton ', no
seu livro de dedicado aos guadamecis; contudo, mais do que the clear-cut
distinction between two types of leather7, o que se trata é da diferença entre
um produto do curtume ' o cordovão ' e o uso do couro de carneiro para o
fabrico dos guadamecis; ou seja, uma matéria-prima específica é usada para
aplicar técnicas particulares de ornamento.
A badana é de curtume vegetal ' é curtida com substâncias vegetais, como o
sumagre e casca de árvores, ricas em tanino (daí o termo corrente, nas actuais
lojas de curtumes, de carneira de casca). É uma pele pouco resistente, sendo,
pois, de uso secundário na manufactura utilitária.
A pele é lavada para retirar os produtos do curtume, secando esticada. Evitando
a parte mais rugosa como as patas e o pescoço do animal, o couro é cortado num
rectângulo, no sentido do comprimento da pele (tal como obrigava o regimento
cordovês)8.
Havia medidas padronizadas e oficiais para a sua dimensão: em Córdova, o
regimento estipulava 0,627 x 0,533 aproximadamente9, havendo dois exemplares
deste molde antiguo em ferro sellados con el sello de la Cibdad10. O
tamanho oficial madrileno era 0,61 x 0,516 aproximadamente11; as medidas
estão em metros. O regimento lisboeta de 1572 também estabelecia um padrão para
os guadamecis da cidade, distinto dos originários de Castella12; tendo em
atenção os tamanhos espanhóis, é de crer que o modelo lisboeta não se afastava
muito daqueles, pois também se fabricava panos/rectângulos, para formar
panejamentos/cobertas de parede.
Depois do corte, lavagem e secagem, um buril vinca o desenho no rectângulo
ligeiramente humedecido, eventualmente traçado numa folha (na época, talvez
pergaminho ou papel grosseiro), seguindo os motivos da moda. O couro, depois de
seco, é coberto de um tapa-poros (como a goma-laca). Um produto mordente ' cola
de coelho, por exemplo ', serve para, como o nome indica, fixar a folha de
prata sobre a superfície da pele. Tal folha de prata é produto dos artífices
chamados bate-folhas, que transformam a prata em finíssimas folhas; o mesmo
realizam com o ouro, usado na escultura sacra e na talha, mas raras vezes
empregue no guadameci. O regimento lisboeta revela o uso de folha de prata, ao
estipular que, em exame, o oficial teria de a fixar nas peles; adiante, refere
o mesmo documento de 1572 que o dourado teria de ser de prata13, isto é, sob o
verniz dourado está a folha de prata.
A referência aos moldes de brocado14, molde del caracolillo15, molde de
las granadas16 e, mais especificamente, ao molde de madera por donde se han
de perfilar los brocados para estos dichos guadamecies que despues han de
pintar17 , mostra que existiam carimbos de madeira talhada, usados para marcar
os desenhos e acelerar a produção. Outras partes do guadameci podiam ser
executadas pelos pintores de arte sacra, pois também o couro prateado serviu de
suporte à pintura devocional ou à brasonária. Um estranho verniz dourado/
douradura, resultante da cozedura de ingredientes vegetais (como pó de aloé-
vera, resina de pinheiro, óleo de linhaça), dá à prata as tonalidades do ouro.
O puncionamento com ferros metálicos cria a texturação do fundo ou dos
padrões pintados a cores de óleo; as punções do século XV-XVI apresentam
círculos concêntricos, pequena bola, e círculo central com pequenos círculos em
volta18, além de pequeno quadrado com linhas paralelas, ondulação ou em
espinha, e triângulos ponteados19. O regimento lisboeta de 1572 usa os
seguintes termos para esta fase: e o graniraa de maneira que o tal granido não
va furado nem machucado mas bem feito como se vsa no dito officio 20; ou seja,
a texturação (granir, de grão) teria de ser realizada com perícia, para que o
peso do martelo não leve a que a punção metálica fure o couro, ou que as marcas
apareçam amachucadas/atropeladas. O puncionamento/ferreteado aparece também
referido no regimento cordovês como granir; daí exigir que o couro não seja
do mais fino, pois al granir las horadan 21ao granir furam as peles com folha
de prata. Ricardo Córdoba de la Llave cita este mesmo item do regimento
cordovês, mas engana-se ao considerar que granear (ou granir) consistia em
llenar su superfície de puntos muy espesos con un graneador [ ] para grabar al
humo22.
O regimento lisboeta especifica que, em exame para mestre, o oficial teria de
executar um pano com trinta e duas peças/rectângulos, e depois montá-lo,
em tal maneira que se possa armar e ver a perfeição23 da obra final.
Este apontamento técnico é fruto do estudo dos regimentos quinhentistas
ibéricos e de peças em museus dos dois países; estou sobretudo devedor a duas
estadias em Córdova (aprendizagens com Carmen Bernier, Ramón Garcia Romero,
Rafael Varo e na Escola de Artes e Ofícios) em 1990 e 1991, o que permitiu o
retorno da técnica a Portugal24.
A designação do método ornamental
Em rigor, dever-se-ia dizer couro ' frontal de altar, panejamento, coxim '
trabalhado pelo método do guadameci, mas o uso acabou por reduzir a frase e
ficar apenas a designação técnica.
Durante muito tempo, considerou-se que o termo decorria do topónimo Ghâdamès
(cidade na Líbia actual), local de curtumes e exportador de peles para o al-
Andalus. O cronista tunisino Ibn el-Nour el-Hamîni, do século XII, deixou
registada a fama dos couros de Ghâdamès do seguinte modo: de cette ville que
vient le cuir ghadâmesien e le cuir connu à Tunis sous le nom de djild el-
Ghadâmesi provenait de la ville de Ghadâmès25; o termo djild el-Ghadâmesi
significa o couro ghadamesino ou produzido em Ghâdamès ' nada que explicite
métodos ou aspectos ornamentais, pois está-se a falar de simples matéria-prima
saída dos curtumes.
Este livro que citei ' Notes sur les cuirs de Cordoue: guadameciles d'Espagne
' é o primeiro estudo sobre os guadamecis espanhóis publicado no século XIX, em
França e em Espanha; esta identificação, aparentemente fácil, entre um local e
um método decorativo sobre couro, passou a marcar o guadameci ibérico até aos
dias de hoje, seja em estudos peninsulares, seja de outros países.
Levi-Provençal aplica o mesmo termo ' guadameci ' para designar o cuir frappé
et repoussé26; ora o repuxado/relevado não pertence à técnica ibérica, pois a
produção peninsular clássica é toda plana, com ferreteado/puncionado, criando
zonas de diferente textura e brilho.
Num outro estudo sobre a Ibéria medieval, a mesma origem norte-africana é
afirmada para o guadameci, erradamente entendido como um subproduto dos métodos
de curtir27.
Contudo, nem Thomas Glick nem Levi-Provençal apresentam as referências dos
documentos andalusís que lhes permitiram afirmar quer ter havido fabrico de
guadamecis nos territórios peninsulares sob domínio muçulmano desde o Califato,
quer a sua exportação para o norte cristão.
A fácil e simples ligação entre Ghadamès e o guadameci ibérico foi colocada em
causa tão cedo como 1920, separando o curtume de peles suaves da técnica
decorativa. Mas só em 1989 esse estudo foi publicado em Espanha28.
Em 1971, John Waterer escreveu que Whilst there is clearly some link between
Spanish' leather and the Libyan city, suggestions that the Moors brought
thence to Spain, fully developed, the gilded, embossed and painted decorative
leathers for which Córdoba and other cities eventually became famed, are
completely without foundation 29. Este autor ainda continua a considerar que
há repuxado no clássico guadameci ibérico.
Aproveito para esclarecer que o título do livro citado ' Spanish Leather,
devido ao termo que muitos antiquários e museus não-ibéricos davam (e ainda
dão) ao guadameci, seja ele de que país for ' é redutor: trata-se do trabalho
artístico sobre uma matéria-prima, trabalho esse mais tarde (desde o século
XVII) executado noutros países europeus; por outro lado, a produção portuguesa
também tem uma voz no fabrico dos guadamecis, e, tal como a espanhola, deriva
do legado islâmico deixado nas terras peninsulares.
Estudos mais recentes apontam para outro caminho, e enfatizam a criação/
desenvolvimento da técnica do guadameci em território ibérico. Elena Pezzi
admite que a raiz do termo guadameci está em misr, para qualificar aquel
que tiene un tinte muy coloreado, muy rojo'. [...] Creo que hubo de ser este
vocablo el que produjo en toda Europa las distintas denominaciones del cuero
repujado y coloreado que constituyeron el famoso guadameci, todas sus variantes
fonéticas, a través de la locución wad' al-másir, usada como un adjetivo, y que
podría traducirse como de la condición del que es vivo de colores' o bien del
tipo de elaboración del que está rameado', por los dibujos y colores de su
repujado30. A autora considera, de seguida, que a identificação entre o
guadameci e Ghadamés não é fácil para explicar as variantes espanholas antigas,
como guadalmeci ou guadalmexir; daí não considerar que o termo guadameci
seja um patronímico, mas antes devedor às características decorativas da obra.
Uma outra hipótese admite o termo hispano-árabe para couro ' gueld ' que,
conjuntamente con la forma Masir, evolucionaria hasta el término Guadamecí
31.
Estes dois termos explicam as derivações medievais espanholas referidas; as
designações portuguesas arcaicas ' gudomiçil, goadameci, guadamesym ' não
possuem o l. Contudo, um dicionário apresenta o termo guadalmecim ' (do
ár. gadamesi). Espécie de tapeçaria em couro pintado e dourado ' e
guadalmecileiro 32; na documentação portuguesa nunca encontrei estas
designações, e a última nunca li em documento ibérico algum.
Apesar da quase inexistência de guadamecis islâmicos ibéricos, as duas
designações referidas ' wad al-másir e gueld al-másir ' apontam para a
criação desta luxuosa técnica no al-Andalus.
A utilização do guadameci
A formação dos reinos cristãos peninsulares levou a que as oficinas elaborassem
guadamecis para a nobreza e Igreja; os artífices muçulmanos que ficaram, ou os
seus continuadores cristãos, criaram guadamecis aplicados em cobertas de parede
e coxins ' modas estas integradas nos usos mudéjares ', frontais de altar,
quadros devocionais, cobertas de chapins, largas molduras de portas, apoio de
castiçais (como protecção da pedra do altar), pálios e xairéis (cobertas da
garupa do equino), em particular nos séculos XV e XVI. O Renascimento não
eliminou os padrões do Islão, como os polígonos estrelados, os enlaçados e a
flor quadripétala sobre quadrado; outros motivos (pinhas, cardos, alcachofras,
faixas florais, romãs, flores de pétalas em arco contracurvado) eram
partilhados com os têxteis de luxo. O guadameci e o têxtil ornamentavam as
paredes de casas nobres, não sendo de estranhar esta partilha de estéticas;
ambos aparecem nos inventários medievais, e um desses refere os guadamecis como
panos d'armar: II panos de armar de godamecis33 encontram-se numa carta de
quitação de D. Manuel I, datada de 1494-95.
As duas produções alternavam sazonalmente: guadamecis para a época quente,
tapeçarias para o tempo frio. Esta alternância encontra-se no relato dos
cavaleiros italianos Tron e Loppomani, vindos a Lisboa a cumprimentar Filipe II
de Espanha pela conquista de Portugal; os italianos elogiam a produção local e
a beleza dos guadamecis de parede do seguinte modo: ornam-nos (os palácios),
porém, de tal modo que na verdade ficam magníficos. Costumam forrar os
aposentos de rasos (panos de lã), de damascos, e de finíssimos rases (panos de
rás, tapeçarias) no inverno, e no verão de couros dourados mui ricos, que se
fabricam naquela cidade34. Outros estudos espanhóis apontam para a mesma
alternância35. Em viagem por Barcelona, em 1599, o alemão Thomas Platter também
refere esta substituição de ornamentos parietais de acordo com as estações mais
vincadas36.
Tal uso ' armar e desarmar ' implicava a fixação dalgumas argolas ao longo da
borda superior dos panos d'armar, e, na parede, de pregos ou varões (como se
vê nalgumas iluminuras medievais e pinturas quinhentistas) 37.
Alguns inventários relativos a guadamecis (sobretudo panejamentos), em maioria
datados das centúrias de quinhentos e seiscentos, localizam-se em Coimbra,
Arraiolos, Montemor-o-Novo, Elvas, Borba, Vila Viçosa, Lisboa, Évora e Faro38.
A localização geográfica revela a continuidade, no sul do país, do legado
islâmico. As descrições são demasiado genéricas ' quanto muito, número de
rectângulos que formavam o panejamento completo, cor dominante, local da
habitação ou de depósito ' e nunca referem o local da compra.
As marcas específicas da cidade de origem nunca apareceram nos estudos até
agora publicados sobre os guadamecis ibéricos; o regimento lisboeta refere a
existência dessa marca39. O regimento do ofício em Córdova, datado de 1578 ' do
qual apenas conheço um excerto ', obrigava à marcação dos guadamecis: les
echen un sello en el médio paño de guadamecí; o desenho desse carimbo era las
armas de la ciudad y letras en orla dél que digan Córdova, para cuyo efecto se
haga en metal o de hierro, con toda perfección y se ponga encima de la cabeza
del león corona 40; o carimbo metálico estava na posse do alcaide e vedores do
ofício. A marca desse carimbo encontra-se na contracapa do livro citado.
As novas modas de conforto nos interiores ' mesas, cadeiras, pinturas,
espelhos, etc. ' do Renascimento ibérico foram eliminando o orientalismo dos
panejamentos e do sentar-se à mourisca, sobre alcatifas ou estrados
atapetados, aproximando a península aos valores ocidentais41; os guadamecis
foram sendo retirados e a produção extinguiu-se; em Portugal, esse final terá
acontecido em inícios do século XVIII.
Os fabricantes de guadamecis eram denominados guadamecileiros; estavam sob a
alçada do Officio de S. Jorge, juntamente com uma série de mesteirais, sem
relação directa entre si, de acordo com a organização estipulada no reinado de
D. João III, e datada de 153942.
O regimento encontra-se no famoso Livro dos Regimentos dos Oficiais Mecânicos
da mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa, de 1572; o regimento lisboeta é
muito mais explícito na execução prática43 do que os regimentos espanhóis da
mesma época ' publicados em Sevilha (1502), Valência (1513), Córdova (1528),
Barcelona (1539) e Madrid (1587) 44 ', que não têm tanto detalhe.
A importação de guadamecis cordoveses: o contrato de 31 de Dezembro de 152545
O texto do contrato de 1525 é o seguinte:
Sepan cuantos esta carta vieren como yo, Lorenzo Fernández, pintor, vecino que
soy en Córdoba, en la collación de Santa Marina, conozco y otorgo que vendo a
vos, Rodrigo Alonso, guadamecilero del señor rey de Portugal, vecino de la
ciudad de Lisboa que estades presente, nueve paños de guadamecí grandes de a
treinta y dos piezas cada uno de oro y plata y colorado, y seis frontales de
imaginería con sus acenefas y piezas de brocado, y veinte y seis cojines
colorados y de brocado con acenefas de oro y plata. Y véndovos todo lo
susodicho por precio de treinta mil y trescientos y treinta maravedís de la
moneda usual que vos el dicho Rodrigo Alonso me distes y pagastes por compra de
todo lo que dicho es que vos vendo, y los yo de vos recibí y pasé de vuestro
poder al mío, bien contados, de que me otorgo por pagado a mi voluntad y
renuncio contra la paga y todo error de cuenta y las otras leyes y derechos que
de esto tratan, y otorgo de haber por firme lo susodicho y de no ir ni venir
contra ello ni contra parte de ello en tiempo alguno por ninguna razón que sea,
so pena de cincuenta mil maravedís, y la pena pagada o no que lo susodicho sea
firme. Y para lo así cumplir y pagar y haber por firme yo, el dicho Lorenzo
Fernández, obligo a mí y a mis bienes habidos y por haber y doy poder a las
justicias para la ejecución de ello. Y el dicho Rodrigo Alonso que presente soy
recibo en mi favor esta carta y me otorgo por entregado de todas las dichas
piezas y cojines y paños de guadamecíes suso declarados, de que me otorgo por
entregado a mi voluntad. Fecha y otorgada esta carta en Córdoba, treinta y un
días del mes de diciembre, año del nacimiento de nuestro salvador Jesucristo de
mil y queuinientos y veinte y seis años. Testigos que fueron presentes al
otorgamiento de esta carta: Pedro de Villarreal, notario apostólico, y Pedro
Coca, oropelero, y Bartolomé Ramírez, hijo del dicho Lorenzo Fernández, pintor,
vecinos y moradores de esta dicha ciudad de Córdoba.
Y las dichas partes otorgantes firmaron sus nombres en este registro
Rodrigo Alonso [assinado]
Lorenzo Fernández [assinado]
Yo, Gonzalo Fernández, escribano público de Córdoba, con los dichos testigos al
otorgamiento de esta carta presente fui e hice aquí este mio signo
Imagem_1
Passo agora a comentar essa grande encomenda elaborada em Córdova.
Ficamos a sabe que o señor rey de Portugal (D. João III) tinha ao seu serviço
um guadamecileiro, Rodrigo Alonso; relativamente ao trabalho do couro, este
caso não é único ' um outro documento refere um mestre correeiro ao serviço de
D. João II, em 148646 ' e mostra que a Casa Real tinha artífices (a tempo
inteiro, ou parcial) a trabalhar nos necessários artefactos da época.
Rodrigo Alonso foi a Córdova receber nueve paños de guadameci grandes, isto
é, nove cobertas de parede; cada panejamento era constituído por trinta y dos
piezas cada uno de oro y plata y colorado, genericamente descritas como de
ouro, prata e pintura. A descrição ' tal como a de outros inventários antigos '
é muito geral, e esconde a estética específica existente nos guadamecis de
parede; atendendo à data e ao local de fabrico, é provável que tivesse
elementos da arte mudéjar ' enlaçados, encordoados ', existentes noutros
panejamentos do século XVI47; outros elementos pintados em guadamecis do mesmo
século (padrão de rombos de cantos curvos, pinhas, alcachofras, flores de
pétalas em arco contracurvado) continuaram no século seguinte, partilhados
também com o têxtil de parede. Este elencar de estéticas foi apreendido das
publicações espanholas48, e do inventário dos guadamecis em Portugal49; outros
dados foram obtidos a partir da pintura portuguesa de circa 1500, pois, muitas
vezes, os pintores representavam guadamecis nos interiores da época50.
Recebeu também seis frontais de altar com pintura devocional (a imaginería),
com sanefas e piezas de brocado (um termo que mostra, também em termos
genéricos, uma estética partilhada com o têxtil). Qual a estética destes
frontais? Podemos atender a dois frontais de altar do século XVI, que mostram a
iconografia cristã no rectângulo central, ladeada por elementos da arte
islâmica. Um dos frontais está em Espanha e, ladeando a Virgem do Rosário com o
Menino, estão padrões mudéjares de polígonos estrelados51. O outro frontal está
nas reservas do Museu Abade de Baçal (inv. nº 147). Na pintura central
encontra-se Cristo recebendo a pomba branca do Espírito Santo; ladeando-a estão
dois panos/rectângulos, com uma pinha florida, encerrada por larga faixa
ovalada. No interior da faixa estão, alternando, dois entrançados distintos,
elaborados a partir da estrutura da flor quadripétala sobre quadrado. Esse
motivo pré-islâmico ' copta52 e bizantino53 ' foi absorvido pelo Islão em
expansão territorial; apresenta-se na arte médio-oriental (omíada54,
abássida55) e islâmica ibérica (omíada56, almóada57, nazarí58). Uma placa
ornamental lisboeta ' quando grande parte do país estava integrado no al-
Andalus ', datada do século IX-X, repete este desenho, contendo uma águia num
dos módulos, e, no outro, uma flor central ladeada de cachos59. No mobiliário
antigo encontrava-se o baú como peça para guardar colchas, tapeçarias,
guadamecis, cerâmica, etc.; cobertos de couro de bovino, muitas vezes com o
pêlo, os baús eram decorados por cravos em latão, formando estilizações florais
ou iniciais do nome do proprietário. Como peça arcaica, não é de estranhar
manter desenhos de tradições anteriores; um baú, com cravação repetindo o
esquema da flor quadripétala sobre quadrado, encontra-se no Museu Nacional de
Arte Antiga (inv. n.º 234 Mov).
Daria um extenso álbum ilustrar as imensas variantes em diferentes materiais
desde o século III, e não só nas artes mais facilmente transportáveis. Na
Península Ibérica, o mesmo desenho-base recria-se na arquitectura, arte e
manufacturas desde o Românico, incluso como moldura de janelas e forma de
tanques de jardins60.
O uso deste módulo centenário abarca outras cobertas de parede em couro
trabalhado pela técnica do guadameci. É o caso de dois guadamecis de parede,
espanhóis e do século XVI61; o padrão em flor quadripétala sobre quadrado está
desenhado/trabalhado em tamanho grande, o que afasta este trabalho dos
detalhados esquemas mudéjares, e torna estas peças obras do Renascimento.
Dir-se-ia estarmos perante um desenho-arquétipo, um modelo sacralizado desde o
seu início. Tal módulo representa a união entre o Céu (círculo) e a Terra
(quadrado); relativamente ao uso deste desenho nos mosaicos nas arquivoltas
internas da Cúpula do Rochedo ' monumento omíada ', em Jerusalém, afirma H.
Stierlin que o simbólico encontra-se na passagem do quadrado para o círculo,
ou seja, da terra para o céu, por intermédio do octógono. Trata-se de uma
espécie de mandala. Através do ritual da circum-ambulação, o peregrino sente
que o círculo vai transitando para o quadrado, sente a união do corpo e da
alma 62.
A secura deste frontal português impossibilita entender a sua qualidade e
história; só um olhar de perto e o desenho63 é que permite ver estes padrões de
pertença a uma fé, mesmo que a simbologia se tenha perdido nos séculos.
Em resumo, a entrada de padrões arcaicos e do Islão nos templos cristãos não
era problemática, mesmo em frontais de altar em frente dos quais se ora.
Voltando à grande encomenda de Córdova, o guadamecileiro português recebeu
também vinte e seis coxins colorados y de brocado com acenefas de oro y
plata. Os coxins serviam para o assento à mourisca, em salões com
panejamentos, e muito pouco mobiliário, pois a Península continuava as modas
orientais e mudéjares, como se pode encontrar em documentos e imagens da época,
e noutros estudos64. As cadeiras eram raras, usadas sobretudo pelos dignitários
da nobreza e clero. Um pequeno exemplo encontra-se na descrição das bodas do
infante D. Duarte com D. Isabel, realizadas em Vila Viçosa em 1527; além das
tapeçarias nas paredes, ficou registado que ao longo das paredes era
alcatifada para se sentarem as Damas, Donas, Fidalgas; noutra sala estava
montado um grande estrado [ ] e no estrado algumas almofadas de Arrãs (lã)65.
No relato da viagem de D. Sebastião ao Algarve em 1573, em visitas no Alentejo,
tanto o rei como alguns nobres usavam cadeiras, deixando o assento sobre
almofadas para outros nobres e damas66.
Sendo o espanhol Lorenzo Fernández um pintor, é de crer que muitas peças ' em
particular as de imaginería ' foram por si executadas. É ainda de considerar
ser ele o intermediário entre Rodrigo Alonzo e a oficina cordovesa; esta
poderia recorrer a pintores de arte sacra, que também exerciam o seu ofício
sobre couro prateado67; aliás, os guadamecis de pintura devocional também são
exemplos de arte sacra.
A referência da encomenda a oro pode levar a enganos. Era raro o guadameci
usar folha de ouro; antes se usava folha de prata que, com o verniz dourado/
douradura, ganhava as tonalidades de ouro; daí o termo couros dourados para
os guadamecis. Esse facto encontra-se referido no regimento lisboeta: em exame,
o oficial teria de fazer (cozer) a douradura; adiante, no item 20,
especifica-se que havia guadamecijs de fora do rejno cujo dourado he e estanho
e não de prata como há de ser 68; ou seja, a prata era coberta de verniz
dourado. Uma observação aos guadamecis tardios, do século XVIII e de fabrico
industrial dos Países Baixos, permite ver, nas partes estaladas, a folha de
prata sob o verniz dourado.
A encomenda refere o preço final dos guadamecis: treinta mil y trescientos y
treinta maravedís de la moneda usual.
Apesar de Nieto Cumplido referir que esta encomenda se destinava ao rei de
Portugal69, isso não é claro; também não sabemos se Rodrigo Alonso era um
artífice exclusivo da Casa Real. Neste processo, aparece como intermediário ou
mesmo simples comprador de obras.
A produção lisboeta e outras importações de Córdova
No mesmo livro de Nieto Cumplido encontra-se referida outra encomenda, agora
para Faro, em 151570; a Dra. Alicia Córdoba Deorador encontrou ainda um
terceiro contrato, datado de 1552, sem local de destino. É provável que outras
encomendas existissem, demasiado pequenas para merecerem listagem, ou cuja
listagem se perdeu nos séculos, ou permanece no pouco estudado arquivo
cordovês.
Redigido em 1552, o inventário Grandeza e Abastança de Lisboa refere os
guadamecis do seguinte modo: entram também dois mil panos de guadamecis, em
cada um ano, que valem por muitos preços, ou seja, deles a dois mil e
quinhentos, e deles a três mil, e quatro mil. E porque entram algumas
guardaportas, ponho todos, uns por outros, a dois mil e quinhentos réis, cada
pano, que valem doze mil cruzados. Lisboa recebia, então, 2.000 panos, cujo
preço se situava nos 2.500, 3.000 e 4.000 réis. Entravam também diversas
guardaportas, isto é, molduras largas para portas. A referência ao preço dos
panos é útil e permite, comparando-se com outro documento de 1611 (que
adiante transcrevo), entender que se trata de panejamentos, e não rectângulos
individuais: o preço é demasiado elevado para ser apenas o de um rectângulo.
Linhas adiante, João Brandão refere os coxins: também entram mil pares de
coxins, que valem por muitos preços; e ponho-os a oito tostões o par, que são
dois mil cruzados71. O texto não especifica se os coxins são elaborados em
guadameci; contudo, ao estar redigido entre estes e as cabritas douradas, é
de supor que tal peça de assento, típica da época, fosse elaborada em
guadameci. Noutra página, este inventário refere os coxins no item Tapeçaria,
onde se incluem os panos de armar, coxins, e cobricamas72. Ora, esta
separação de obras por matéria-prima mais indicia que os mil pares de coxins,
que anualmente entravam na cidade, são de guadameci.
A referência a muitos preços indicia diferentes estéticas dos rectângulos de
guadameci, onde estariam motivos desde os mais baratos, ao brocado, e aqueles
com pinturas devocionais. Relativamente a oficinas, João Brandão refere a
existência de 30 guadamecileiros a trabalhar na cidade; já Cristóvão Rodrigues
de Oliveira, no capítulo Gente de ofícios que há em Lisboa, lista 31
guadamecileiros na Lisboa de 155173; e, no final deste capítulo, o autor
informa que este número não é só de mestres, mas inclui também os oficiais e
obreiros.
Podemos considerar que continuou a importação de guadamecis de Córdova, a par
da produção lisboeta. Já em 1611, um outro documento refere os preços e
proveniência dos guadamecis à venda em Lisboa: Não valerá mais uma pele
dourada de guadamecins, medida pelo padrão da cidade, sendo de Córdova, ou a
melhor da terra, que 120 réis, e sendo vermelha ou branca 80 réis. Uma pele
pintada, com figura ou história, não valerá mais que 150 réis74. Assim, havia
três preços básicos para três diferentes aspectos do guadameci: uma pelle
dourada de guadamecins, no tamanho oficial de Lisboa, ou no tamanho de
Córdova, valia 120 réis; descrita como vermelha ou branca (cores dominantes),
tal pelle (rectângulo) custava apenas 80 réis. O preço mais elevado ia para
os guadamecis historiados, isto é, com figuras ou História, sem especificar se
eram de fabrico cordovês ou local.
O desfazer dos panos d'armar e a alteração de modas não permitiu que a grande
maioria dos guadamecis clássicos chegassem até hoje. Além do referido frontal
em Bragança, outras peças ' coxim e panejamento ' encontram-se no Palácio da
Ajuda (inventários nº 56739 e nº 3610, respectivamente), cujos motivos
considero serem do século XVII. Perto de Guimarães, uma colecção particular
possui duas cadeiras revivalistas do século XIX, mantendo a estrutura das
cadeiras de espaldar rectangular largo do século XVI/ inícios do século XVII;
estão estofadas com guadamecis florais ibéricos típicos do século XVI-XVII; é
de considerar que os guadamecis faziam parte de decorações parietais desfeitas
pela alteração de modas75.
As importações dos Países Baixos, em guadamecis industriais prensados e
repetitivos, executados sobretudo no século XVIII, acabaram com as oficinas
ibéricas; muitos estudos foram já dedicados a essa produtiva manufactura76.
Tais rectângulos, relevados em estilo barroco e rococó, usaram-se para criar
frontais de altar, biombos e estofos, como os que existem nos museus de Arte
Antiga, Anastácio Gonçalves, Alberto Sampaio, Teixeira Lopes, Abade de Baçal,
Palácio Nacional de Sintra, Fundação Espírito Santo, Paço Ducal de Vila Viçosa,
e em capelas (Balsamão, Pinelo, Miragaia, Murfacém). A dispersão territorial
mostra a extensão destes modelos. Alguns estofos portugueses77 pretenderam
imitar os motivos e cores dos guadamecis extra-peninsulares, como uma tentativa
em acompanhar gostos e garantir a sobrevivência de oficinas, antes da extinção
da técnica no período barroco em Portugal.
A grande encomenda vinda de Córdova mostra as ligações culturais entre os dois
reinos peninsulares, a utilização de couros dourados nos ornamentos luxuosos, e
a partilha de modas mudéjares; revela ainda os contactos entre artífices e a
permanência destes na esfera real da época.