Gerenciamento de resíduos químicos em laboratórios de ensino e pesquisa
INTRODUÇÃO
A geração de resíduos químicos em instituições de ensino e pesquisa no Brasil
sempre foi um assunto muito pouco discutido. Na grande maioria das
universidades (e em especial nos Institutos e Departamentos de Química), a
gestão dos resíduos gerados nas suas atividades rotineiras é inexistente, e
devido à falta de um órgão fiscalizador, o descarte inadequado continua a ser
praticado.
No atual cenário, onde vários segmentos da sociedade vêm cada vez mais se
preocupando com a questão ambiental, as universidades não podem mais sustentar
esta medida cômoda de simplesmente ignorar sua posição de geradora de resíduos,
mesmo porque esta atitude fere frontalmente papel que a própria universidade
desempenha quando avalia (e gerealmente acusa) o impacto causado por outras
unidades de geradoras de resíduo fora dos seus limites físicos. Assim sendo,
frente ao papel importante que as universidades desempenham na nossa sociedade,
frente à importância ambiental que estes resíduos podem apresentar, e por uma
questão de coerência de postura, é chagada a hora das universidades, e em
especial dos Institutos e Departamentos de Química, implementarem seus
programas de gestão de resíduos.
Frente ao exposto, o objetivo maior deste artigo é o de apresentar as linhas
básicas que devem ser seguidas para a implementação de um Plano de Gestão de
Resíduos. A proposta aqui apresentada é fruto não apenas de experiências
compiladas na literatura internacional, mas também daquela vivenciada e
aprimorada dentro do Instituto de Química da UNICAMP, e mais especificamente,
dentro do Laboratório de Química Ambiental (LQA).
PRÉ-REQUISITOS PARA IMPLEMENTAR O PROGRAMA DE GESTÃO
A implementação de um programa de gestão de resíduos é algo que exige, antes de
tudo, mudança de atitudes, e por isto, é uma atividade que traz resultados a
médio e longo prazo, além de requerer realimentação contínua. Por ser um
programa que, uma vez implementado, o mesmo terá atuação perene dentro da
unidade geradora de resíduo, é muito importante que o mesmo seja muito bem
equacionado, discutido e assimilado por todos aqueles que serão os responsáveis
pela manutenção e sucesso do mesmo. Deste modo, as premissas (e condições)
básicas para sustentar um programa desta natureza são 4:
1- O apoio institucional irrestrito ao Programa
2- Priorizar o lado humano do Programa frente ao tecnológico
3- Divulgar as metas estipuladas dentro das várias fases do Programa
4- Reavaliar continuamente os resultados obtidos e as metas
estipuladas
É importante que a institutição esteja realmente disposta a implementar e
sustentar um programa de gerenciamento de resíduos, pois o insucesso de uma
primeira tentativa via de regra desacredita tentativas posteriores. Outro
aspecto importante é o humano, pois o sucesso do programa está fortemente
centrado na mudança de atitudes de todos os atores da unidade geradora (alunos,
funcionários e docentes). A divulgação interna e externa do Plano de Gestão de
Resíduos é fundamental para a conscientização e difusão das idéias e atitudes
que o sustentarão; e finalmente, trabalhando com metas pouco ambiciosas (e
reais), deve-se sempre reavaliar os êxitos (ou insucessos) obtidos,
redirecionando-as se preciso for para que o programa seja factível.
A HIERARQUIA NO GERENCIAMENTO
Ao ser implementado, inicialmente um programa de gerenciamento de resíduos deve
contemplar dois tipos de resíduos: o ativo (gerado continuamente fruto das
atividades rotineiras dentro da unidade geradora), e o passivo, que compreende
todo aquele resíduo estocado, via de regra não-caracterizado, aguardando
destinação final (o passivo inclui desde restos reacionais, passando por
resíduos sólidos, até frascos de reagentes ainda lacrados mas sem rótulos)1-3 .
A grande maioria das unidades geradoras do Brasil não têm o passivo. Se por um
lado a inexistência deste estoque muito facilita na implementação do Programa
de Gestão, por outro lado mostra a realidade com que os resíduos sempre foram
tratados nas universidades.
A caracterização deste passivo nem sempre é possível, e o tempo e os esforços
gastos com esta atividade inicial devem ser bem equacionados para que não haja
um desestímulo logo no início. É importante lembrar que esta caracterização
prioriza o reciclo e o reuso de tudo que for possível, bem como habilita o
resíduo para a sua destinação final (geralmente a incineração). A tabela_1 traz
uma série de testes simples que podem ser usados na caracterizaçõa preliminar
do passivo.
Dentro o passivo, é muito comum se encontrar frascos sem rótulos, mas que
contêm reagentes caros, ainda íntegros, e cujo reuso depende apenas de testes
analíticos relativamente simples. Neste caso convém devotar um tempo maior na
caracterização destes resíduos. Cabe também lembrar que após a implementação do
programa, com a rotulagem e identificação de todos os reagentes usados sendo
feita em rotina, o passivo tende a ser cada vez menor e de mais fácil manejo.
O ativo é aquele resíduo gerado rotineiramente nas atividades de ensino e de
pesquisa, ou seja, o principal alvo de qualquer programa de gerenciamento.
Neste caso, a experiência tem mostrado que o mais produtivo é se dividir a
implementação do programa em duas partes: começar enfocando, primeiramente, os
resíduos gerados nas atividades de ensino (aulas de laboratório), pois estes
podem ser facilmente caracterizados, inventariados e gerenciados. Tendo
adquirido certa prática na gestão deste tipo de resíduos, a segunda etapa de
implementação se expande para os laboratórios de pesquisa, onde a natureza e a
quantidade de resíduos variam muito.
Independentemente de qual das atividades geradoras de resíduo (ensino ou
pesquisa) serão abordadas, um programa de gerenciamento deve sempre adotar a
regra da responsabilidade objetiva, ou seja, quem gerou o resíduo é responsável
pelo mesmo, e praticar sempre a seguinte hierarquia de atividades:
1- Prevenção na geração de resíduos (perigosos ou não)
2- Minimizar a proporção de resíduos perigosos que são
inevitavelmente gerados
3- Segregar e concentrar correntes de resíduos de modo a tornar
viável e economicamente possível a atividade gerenciadora
4- Reuso interno ou externo
5- Reciclar o componente material ou energético do resíduo
6- Manter todo resíduo produzido na sua forma mais passível de
tratamento
7- Tratar e dispor o resíduo de maneira segura
Estas atitudes podem ser facilmente traduzidas para a rotina de funcionamento
da unidade geradora de várias maneiras. Por exemplo, há certos tipos de
reagentes, tais como Hg2+ , Pb2+ , Cd2+ , H2S, benzeno, formalina, que por
serem altamente impactantes e tóxicos, devem se evitados, o que é quase sempre
possível nas aulas de laboratório por simples substituição de um experimento4-
6. A prevenção aqui exemplificada tem, portanto, uma faceta pedagógica
importante, e deve, neste contexto, ser explorada na sua plenitude pelos
docentes envolvidos tanto com o ensino como com a pesquisa.
A minimização também pode ser facilmente implementada num laboratório de ensino
ou de pesquisa7-9. O que se nota hoje em dia é que há um distanciamento muito
grande entre a química que se ensina nos cursos experimentais e a química que
se pratica na rotina dos laboratórios de pesquisa. Por exemplo, com a
facilidade de aquisição de micro-pipetas e micro-buretas, cabe questionar a
necessidade de se fazer um aluno passar 4 anos titulando da maneira tradicional
(em macro-escala, com buretas de 50 mL), onde os volumes e consumo de reagentes
são muito grandes. A implementação das técnicas de micro-escala tem sido tão
bem sucedida, que o próprio Journal of Chemical Education dedica constantemente
artigos voltados para este tema, os quais sempre trazem experimentos que podem
ser facilmente implementados nas ementas de disciplinas experimentais. Na
pesquisa, o mesmo princípio deve ser adotado, lembrando porém que a automação
de métodos rotineiros e adaptações para FIA (Análise por Injeção em Fluxo) são
exemplos que muito colaboram para a minimização, principalmente quanto ao
consumo de reagentes.
A segragação dos resíduos em diferentes correntes tem como principal objetivo o
de facilitar o seu tratamento e disposição final. Por exemplo, o Instituto de
Química da UNICAMP, através de sua Comissão de Segurança, já vem desenvolvendo
um trabalho consistente de controle do resíduos no qual são geradas cinco
correntes, a saber: (a) clorados; (b) acetatos e aldeídos ; (c) ésteres e
éteres; (d) hidrocarbonetos e (e) álcoois e cetonas. Estes, após reciclo e
reuso, são enviados para uma empresa para incineração. Via de regra, quem
determina o número e a natureza das correntes de resíduos dentro de uma unidade
geradora é o destinatário final destes resíduos, ou seja, quase sempre um
incinerador. Assim, antes de se decidir pela segregação interna dos resíduos, é
importante ter em mente qual será o seu destino final10-12.
O reuso e o reciclo podem devem ser exercitados e fomentados dentro da unidade
geradora. Entende-se por reuso o uso do resíduo como insumo, sem que o mesmo
sofra qualquer pré-tratamento. Já o reciclo envolve o uso do material (ou do
seu conteúdo energético) após algum tipo de tratamento. O reciclo já é bastante
praticado nos laboratórios de química, principalmente naqueles onde o consumo
de solventes voláteis é muito grande. É quase sempre realizado em escala
pequena, descentralizado, e motivado historicamente por razões econômicas e não
ambientais. O reuso, ainda muito pouco praticado, pode ser fomentado de várias
maneiras13. Por exemplo, a recuperação de prata ou de outros metais nobres tem
sido constantemente relatada no Journal of Chemical Education14, e poderia
também ter um espaço similar em periódicos nacionais, e nada melhor para dar um
fim naquele estoque de mistura sulfocrômica (cujo uso deve ser banido de
qualquer laboratório) e também de fenóis e outros compostos orgânicos do que
misturar ambos e, sob aquecimento e refluxo, praticar uma oxidação drástica.
Livra-se desta maneira do cromo (VI) e de resíduos orgânicos ao mesmo tempo,
num procedimento similar à Demanda Química de Oxigênio (DQO), parâmetro este
muito usado na química ambiental para inferir qualidade de águas15.
Finalmente, tendo a unidade geradora estocado a quantidade mínima de resíduo
fruto de suas atividades, a pergunta esperada é: Como tratar este resíduo? Qual
a destinação final do mesmo? Infelizmente o interessado irá descobrir que o
Brasil não tem uma política nacional de resíduo sólido, o que muito dificulta
as ações nesta etapa do Plano de Gestão. Assim, prevalece o bom senso e a a
criatividade para a escolha da melhor opção nesta última parte dentro das
atitudes hierárquicas propostas no Programa. Por isto, o tratamento de resíduos
"in situ" deve ser magnificado para que apenas o mínimo seja enviado
para fora da unidade geradora (destinação final). Cabe lembar que o transporte
de resíduos perigosos no Estado de São Paulo é fiscalizado pela CETESB, e exige
muito burocracia, além dos custos que podem ser elevados.
O Laboratório de Química Ambiental vem praticando um programa de gerenciamento
de seus resíduos baseado em experiências adotadas em outros países16,adaptadas
porém para a nossa realidade. Além disso, desenvolveu uma série de
procedimentos de baixo custo para tratar resíduos aquosos contaminados com
compostos orgânicos potencialmente tóxicos17. Basicamente explora-se o uso de
processos oxidativos avançados (H2O2, UV, Ozônio, Reagente de Fenton,
fotocatálise heterogênea e algumas de suas combinações), com ou sem luz solar,
com excelentes resultados, e que poderiam ser utilizados por outras fontes
geradoras. Várias destas experiências já foram relatadas na literatura
nacional18,19.
CONCLUSÃO
A geração de resíduos químicos nos laboratórios de ensino e de pesquisa no
Brasil precisa ser equacionada adequadamente para que haja uma minimização
neste volume, além de propiciar seu correto descarte e destinação final. Se por
um lado as normas que regem o manuseio e a disposição de grande parte dos
resíduos biológicos e radiativos são disponíveis (Vigilância Sanitária e CNEN -
Comissão Nacional de Energia Nuclear), para os demais resíduos químicos elas
são inexistentes.
Neste cenário onde a omissão é o agente comum, cabe às universidades a
iniciativa de desenvolver e implementar um programa de gestão de resíduos
regional ou mesmo nacional, revertendo este quadro de tamanha incoerência
dentro da vida acadêmica. Através da troca de experiências, da divulgação de
resultados pontuais, e principalmente da criação de um espaço onde este tipo de
informação possa ser gerenciado, centralizado e disseminado, a solução para a
questão dos resíduos gerados em laboratórios de ensino e de pesquisa no Brasil
com certeza passará a ser uma questão apenas de tempo.