Controle de danos: uma opção tática no tratamento dos traumatizados com
hemorragia grave
REVISÃO / REVIEWINTRODUÇÃO
Apesar dos avanços no atendimento das vítimas de trauma, a hemorragia ainda é
responsável por cerca de 45% das mortes(43). Além de ser considerada a primeira
causa de óbitos até 48 horas após o trauma, contribui também para a mortalidade
tardia. Acredita-se que a exsangüinação esteja envolvida em 44% das mortes pré-
hospitalares, em 55% das mortes após a admissão hospitalar e em 82% das mortes
intra-operatórias em traumatizados(22, 43).
Há várias definições para exsangüinação. TRUNKEY(48), em 1983, definiu como
hemorragia grave aquela com fluxo maior que 150 mL/min. Segundo ANDERSON(1), em
1984, a exsangüinação deve ser considerada quando a vítima estiver perdendo
toda volemia em minutos. ASENSIO(2), em 1990, descreveu a síndrome de
exsangüinação como resultado da hemorragia com fluxo maior que 250 mL/min e
perda inicial de 40% da volemia. Esta situação limítrofe ocorre na dependência
do órgão lesado. Presente em 20% dos ferimentos cardíacos, em 54% dos
traumatismos de aorta e em 32% das vítimas de lesões da veia cava inferior,
atinge ainda 29% das vítimas de ferimentos da veia porta e acompanha 54% das
mortes por traumatismo hepático(2).
A hemorragia grave resulta em diminuição da oferta de oxigênio, desencadeando
metabolismo anaeróbio, acidose metabólica e necrose tecidual. A perda de calor
e a falta de suprimentos energéticos dificultam a manutenção da temperatura
corporal. A hipotermia que se segue influencia diretamente a cascata de
coagulação e altera a função plaquetária, determinando coagulopatia e ainda
maior perda sangüínea(17). A reposição de grande volume de cristalóides acaba
por piorar a hipotermia e a coagulopatia e, desta forma, instala-se um ciclo
vicioso. Alguns autores(2, 41, 46) denominam a associação de acidemia,
hipotermia e coagulopatia como "tríade letal" pela alta mortalidade associada.
Houve mudanças consideráveis no tratamento operatório das vítimas de
exsangüinação. Durante muito tempo, mesmo frente a traumatizados em choque,
acidemia e coagulopatia, o tratamento definitivo de todas as lesões encontradas
na operação era a regra. Contudo, freqüentemente a agressão operatória
ultrapassava as reservas fisiológicas, o choque hemorrágico alcançava sua fase
irreversível e o doente falecia durante ou logo após a operação. Atualmente,
sabe-se que na presença da "tríade letal", a única maneira de mudar o
prognóstico é interromper este ciclo.
Um marco para a compreensão desta situação clínica foi o estudo de STONE et al.
(46), em 1983, no qual foram avaliados 31 doentes que desenvolveram
coagulopatia intra-operatória. Em 14, mesmo frente ao desarranjo fisiológico, a
operação transcorria até o final, com o tratamento definitivo. Destes, apenas
um indivíduo sobreviveu (7,1%). No outro grupo com 17 doentes, na presença de
coagulopatia, a operação era interrompida, mesmo que a proposta cirúrgica
inicial não tivesse sido alcançada totalmente. Somente após a estabilização na
unidade de terapia intensiva o doente era levado novamente ao centro cirúrgico
e a operação terminada. Onze (64,7%) doentes deste grupo sobreviveram, portanto
uma diferença estatisticamente significativa (P = 0,004).
O conceito de antecipar o término da operação através da colocação de
compressas na cavidade peritonial para o controle da hemorragia é conhecido
desde o início do século. Já em 1906, CARLOS MAURO(29), médico do Hospital
"Umberto I", em São Paulo, relatou a utilização de "mechas de gaze asséptica"
que permaneceram na cavidade peritonial após a síntese da laparotomia para
hemostasia de lesão hepática grave. PRINGLE, em 1908, e posteriormente HALSTED,
em 1913, citados por ROTONDO e ZONIES(41), descreveram a hemostasia de lesões
hepáticas pelo tamponamento com compressas. Estas manobras foram pouco
utilizadas nos anos seguintes devido ao desenvolvimento da técnica operatória e
materiais cirúrgicos, que permitiram melhor controle da hemorragia intra-
operatória. Na década de 80, surgiram novas publicações a respeito de
tamponamento de lesões hepáticas graves(6, 8, 13, 23, 46, 50).
TALBERT et al.(47), em 1992, empregaram a laparotomia abreviada e reoperação
programada para tratamento de lesões em outros órgãos abdominais além do
fígado, o que trouxe o conceito da interrupção da operação antes que a falência
metabólica esteja instalada. Neste ponto, notou-se que esta é forma efetiva de
tratamento não só para lesões hepáticas e que o tamponamento com compressas
seria mais uma opção tática. O termo "damage control", ou controle de danos,
surgiu em 1993, proposto por ROTONDO et al.(40), definindo a conduta de
interromper a laparotomia na presença de acidose, coagulopatia e hipotermia,
através de controle parcial da hemorragia e contaminação, com reoperação
programada. Atualmente sua aplicação ultrapassa os limites do trauma abdominal,
sendo utilizado também para o tratamento de lesões torácicas, ortopédicas e
mesmo no trauma vascular de extremidades(19, 38, 50). São descritas
cervicotomias, toracotomias, reparos vasculares e ortopédicos abreviados, com o
intuito de interromper a tríade letal.
O controle de danos não é definido por novas técnicas operatórias, mas pelo
conceito de interromper a operação antes que o choque hemorrágico alcance a
fase irreversível. Para isto, é imprescindível julgamento clínico minucioso e
envolvimento do médico com o doente, pois a partir da decisão por esta tática e
frente a evolução imprevisível, eventual reoperação não programada pode ser
necessária a qualquer instante. Trata-se de procedimento que implica em grande
responsabilidade para o cirurgião que o indica, uma vez que podem ocorrer
complicações sérias relacionadas a sua utilização indevida.
O objetivo deste estudo é revisar esta opção terapêutica, discutindo suas
técnicas, indicações, vantagens e desvantagens.
Definições
O controle de danos envolve, na maioria das vezes, três tempos (Figura_1)(28,
31, 33).
1o) Operação abreviada, através de controle temporário da hemorragia,
contaminação e síntese temporária da parede. Neste primeiro momento,
após a indicação do controle de danos, o objetivo principal é
alcançar o término da operação o mais rápido possível. Técnicas como
o tamponamento hepático com compressas, ligadura de cotos intestinais
e síntese da parede abdominal com pinças de campo podem ser
empregadas. Anastomoses intestinais, reparos vasculares complexos ou
outros procedimentos que levem ao aumento do tempo operatório devem
ser evitados.
2o) Reanimação na unidade de tratamento intensivo (UTI), quando
volemia, acidemia, coagulopatia e hipotermia são corrigidos. Desta
forma, quebra-se o ciclo vicioso e limita-se a perda sangüínea,
fornecendo condições para a recuperação dos parâmetros fisiológicos.
Somente após a estabilização do doente, o próximo passo é dado.
3o) Reoperação programada, para o tratamento definitivo de todas as
lesões, retirada das compressas e síntese da parede. Neste ponto, a
cavidade é reavaliada, o trânsito intestinal é reconstituído e as
compressas removidas.
Indicações
A decisão pelo controle de danos vai além dos detalhes técnicos. Depende da
disponibilidade de vagas na UTI e de acompanhamento minucioso por equipe
cirúrgica preparada para intervir, quando necessário. Trata-se de técnica que
deve ser restrita a centros especializados, ou que pelo menos tenham supervisão
cirúrgica contínua. O cirurgião que optou pela indicação do controle de danos
deve ser o responsável pelo acompanhamento e síntese definitiva da parede
abdominal.
Não é fácil decidir por técnicas para abreviar a operação. Freqüentes são os
casos em que após exauridas as reservas fisiológicas do doente e frente à
hipotermia, coagulopatia e choque persistente, tenta-se o tamponamento da
cavidade peritonial com compressas como a última alternativa possível. Esta
tática não deve ser empregada apenas como medida desesperada ao término de
laparotomia mal sucedida. Nesta situação, os resultados são precários, pois a
fase irreversível do choque hemorrágico já está instalada e o óbito é apenas
questão de tempo. Não há dúvida que a opção pelo emprego do "damage control"
deve ser precoce; contudo, devem existir limites para que esta técnica não seja
utilizada indevidamente, o que resultaria em complicações(4, 16, 21, 28, 33,
41).
Infelizmente, não há normas precisas disponíveis que auxiliem na decisão de
interromper a operação(21). Vários autores, descritos abaixo, tentaram definir
as indicações, mas ainda há pouca objetividade.
A falha no controle da hemorragia intra-operatória, apesar de esgotadas as
técnicas operatórias para tal, constitui forma de seleção dos traumatizados
candidatos à laparotomia abreviada(13). BURCH et al.(5), em 1992, reservavam
esta técnica para os traumatizados com "morte iminente". MORRIS et al.(32), em
1993, empregaram laparotomias abreviadas para vítimas de trauma in extremis.
CARRILO et al.(7), em 1993, baseavam sua decisão em critérios fisiológicos e na
perda inicial de sangue. Os doentes que apresentavam pH <7,25, temperatura
corporal central menor que 34oC ou tivessem perda inicial estimada maior que 4
litros de sangue deveriam ser submetidos a laparotomia abreviada. FELICIANO et
al.(14), em 1996, consideraram que a indicação precisa para o "damage control"
seria a acidemia persistente (pH <7,2) mesmo com o controle da hemorragia e
reposição hídrica e eletrolítica adequadas.
GARRISON et al.(16), em 1996, avaliaram os traumatizados submetidos a
laparotomias abreviadas e encontraram associação da letalidade com "injury
severity score" (ISS) maior que 35, tempo total de hipotensão maior que 70
minutos, tempo de protrombina maior que 19 segundos, tempo parcial de
tromboplastina ativada maior de 60 segundos, número total de transfusões acima
de 15 unidades de concentrados de hemácias e pH <7,2. Estes dados sugerem que a
operação deva ser abreviada antes deste nível de comprometimento fisiológico.
CUSHMANN et al.(10), em 1997, estudaram os indicadores de morte nas vítimas de
ferimentos penetrantes dos vasos ilíacos. Foram fatores relacionados com maior
mortalidade no início da operação: temperatura menor que 34 oC, pH <7,10 e
excesso de base (EB) menor que -15 mEq/L. Ao término da operação, a temperatura
menor que 35 oC, o pH <7,3 e EB <-6 mEq/L associaram-se a maior mortalidade.
Esses autores notaram aumento significativo da mortalidade quando da associação
de mais de dois dos fatores acima, o que, portanto, seria indicação para o
controle de danos.
COSGRIFF et al.(9), em 1997, propuseram a análise dos fatores preditivos de
coagulopatia intra-operatória como variáveis para decisão de abreviar a
operação. Esses autores encontraram chance significativamente maior de
desenvolvimento de coagulopatia nos traumatizados com ISS >25, pressão arterial
sistólica menor que 70 mm Hg, pH <7,10 e temperatura menor que 34 oC.
KRISHNA et al.(26), em 1998, avaliaram os indicadores de letalidade nos
traumatizados vítimas de exsangüinação submetidos a operações convencionais nos
quais não foram realizadas laparotomias abreviadas. Através de regressão
logística, propuseram um modelo que foi capaz de prever o prognóstico com até
92% de sensibilidade. As variáveis mais importantes foram a temperatura
corporal central menor que 33oC e acidose metabólica grave (EB <-12 mEq/L).
É importante ressaltar que a presença das alterações fisiológicas ocorre com
situação limítrofe já instalada e que talvez esperar por estes sinais
representaria perder o momento ideal para a indicação do "damage control".
Alguns autores(21) propõem que esta decisão seja baseada, preferencialmente, na
avaliação da magnitude das lesões e no mecanismo de trauma. Portanto,
atualmente considera-se que a indicação do controle de danos deva ser baseada
tanto em dados fisiológicos, como na gravidade das lesões. ROTONDO e ZONIES(41)
classificaram estes fatores como condições predisponentes, complexidade do
trauma e fatores críticos (Quadro_1).
No Serviço de Emergência da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo,
analisaram-se os indicadores de morte por hemorragia em vítimas de trauma
penetrante de tronco admitidas em choque(36). Determinaram-se os fatores mais
importantes pela análise multivariada e, através de regressão logística, criou-
se modelo capaz de prever a chance de morte por hemorragia baseado nas
variáveis: pressão arterial sistólica no início da operação e volume de
concentrado de hemácias transfundido até o momento. Desta forma, foi criada uma
matriz com valores aleatórios que fornece dados objetivos para a interrupção da
operação (Quadro_2).
TÉCNICAS
1. Operação Abreviada
1.1 Controle da hemorragia
Existem vários métodos para o controle da hemorragia, dependendo do órgão em
questão.
1.1.1 Controle da hemorragia hepática
As técnicas propostas englobam suturas do parênquima, digitoclasia e
ligadura direta dos vasos sangrantes, tamponamento com compressas ou
balões hepáticos(15). Técnicas mais complexas, como ressecções
regradas, devem ser evitadas(25). É muito importante lembrar que o
tamponamento hepático com compressas não controla hemorragia
proveniente de grandes vasos. As lesões leves e com sangramento ativo
são tratadas através de sutura do parênquima. Frente a lesões
hepáticas complexas, a manobra a ser realizada é o clampeamento da
tríade portal ao nível do ligamento hepatoduodenal (manobra de
Pringle). A lesão é exposta através de digitoclasia do parênquima,
para que os vasos maiores com sangramento ativo sejam devidamente
controlados. Diante da perpetuação do sangramento, o tamponamento com
compressas pode ser realizado(35). Princípio fundamental é criar
vetores de força, e não apenas "empurrar" compressas
desordenadamente, pois isto somente aumentaria a lesão.
Se o volume de parênquima a ser seccionado pela digitoclasia é muito
grande, como nos ferimentos transfixantes por projéteis de arma de
fogo, o balão hepático é opção para o controle da hemorragia ativa
(12). Estes são confeccionados a partir de sonda nasogástrica e dreno
de Penrose (Figura_2). Balões de Sengstaken Blakemore também podem
ser empregados. A insuflação de sonda de Foley dentro do parênquima
hepático constitui opção em casos selecionados(14, 15, 37).
![](/img/revistas/ag/v39n3/15647f2.jpg)
1.1.2 Controle da hemorragia em grandes vasos
A gravidade da lesão e a importância do vaso lesado são as variáveis
mais relevantes a serem analisadas. Lesões simples e passíveis de
correção apenas com uma sutura lateral devem ser reparadas. Lesões
complexas que requerem mais tempo para a correção devem ser tratadas
por ligadura do vaso ou passagem de "shunt" temporário, dependendo do
vaso em questão(14, 15, 39). A ligadura da aorta, artéria mesentérica
superior e artéria ilíaca externa tem conseqüência grave e, portanto,
não deve ser realizada. Praticamente todas as veias da cavidade
abdominal podem ser ligadas, com exceção da veia cava inferior
cranial às veias renais(14, 15).
1.1.3 Controle da hemorragia em outros órgãos maciços
Hemorragia proveniente de lesões esplênicas e renais pode ser
controlada por sutura do parênquima. Contudo, se houver necessidade
de algum procedimento mais complexo, a ressecção do órgão deve ser
realizada. Por vezes o sangramento pancreático é volumoso e a sutura
simples não é efetiva para a hemostasia. Nestes casos, o tamponamento
com compressas é a opção, sendo importante reavaliar sua eficácia,
pois algumas vezes somente a ressecção controla o sangramento(21,
33).
1.1.4 Controle da hemorragia retroperitonial associada à fratura de
bacia
Os métodos de escolha para o controle do sangramento incluem a
fixação externa precoce da fratura e angiografia percutânea com
embolização seletiva(19). Como regra, não se deve explorar hematomas
de retroperitônio pélvico nestes doentes, pois a sua abertura pode
levar à exsangüinação e óbito(19).
Entretanto, há casos extremos em que o cirurgião se depara com
hematomas rotos e sangramento ativo. A alternativa seria apenas o
tamponamento com compressas, seguido de angiografia e embolização
percutânea. Muitas vezes estes recursos não estão disponíveis e algo
precisa ser feito no intra-operatório. Classicamente demonstrou-se
que a ligadura bilateral das artérias ilíacas internas não é eficaz
para a hemostasia(34).
Para estes casos, alguns autores(44) preconizam a embolização das
artérias ilíacas internas com coágulos. Esta tática envolve a
ligadura destes vasos na sua emergência nas artérias ilíacas comuns.
Cerca de 20 mL de sangue coagulado (colhido da aorta) é injetado nos
cotos distais, funcionando como embolização não-seletiva do leito
vascular distal. Trata-se de técnica empregada raramente, em casos de
exceção, mas que se demonstra como recurso possível nestas situações.
1.1.5 Controle da hemorragia de lesões pulmonares
Lesões menores e superficiais são tratadas, em geral, com drenagem e
suturas simples. Contudo, pode haver dificuldade no controle de
sangramentos da profundidade do parênquima. Em trauma, sabe-se que as
ressecções pulmonares como lobectomia e pneumectomia são mal
toleradas, com altas taxas de mortalidade(49, 50). Escolha rápida e
efetiva para estes casos é a tractotomia pulmonar. Nos ferimentos
transfixantes por projéteis de arma de fogo, grampeadores lineares
cortantes são introduzidos por um dos orifícios, de forma a
ultrapassar todo o trajeto até o outro orifício. A lesão pulmonar é
aberta através do disparo do grampeador e os vasos sangrantes da
profundidade são expostos para a hemostasia definitiva(49, 50).
1.1.6 Controle da hemorragia de lesões cardíacas
Os ferimentos menores podem ser tamponados com compressão digital até
que a sutura definitiva seja realizada. Em alguns casos, é necessária
a passagem de sondas de Foley através do orifício, com insuflação do
balão dentro da câmara cardíaca para a hemostasia temporária. São
relatados casos de grampeamento de lesões extensas, com grampeadores
especiais, o que seria rápido e efetivo até o tratamento definitivo
(14, 15, 21, 33).
1.2 Controle da contaminação
O objetivo é diminuir o extravasamento do conteúdo das vísceras ocas
para a cavidade peritonial. Lesões menores são suturadas. Se a
ressecção intestinal é necessária, os cotos devem ser grampeados ou
ligados com fita cardíaca(14, 15, 21, 33). Como regra, não são
realizadas anastomoses ou ostomias durante a laparotomia abreviada,
sendo a reconstituição do trânsito intestinal postergada para a
reoperação programada. Se o trânsito intestinal for obstruído,
mantém-se a sonda gástrica para aspiração e descompressão.
1.3 Síntese da parede
Uma vez que, como regra, a reoperação está indicada, há preferência
por métodos temporários de síntese.
1.3.1 Síntese com pinças de campo
As bordas da pele são aproximadas com pinças de Backals justapostas,
até que toda a ferida seja fechada. Existem problemas com esta
técnica, pois há relatos de necrose de pele, perda de líquido
peritonial pela ferida e aumento da pressão intra-abdominal(21, 28).
1.3.2 "Bolsa de Bogotá"
A sutura de coletor de urina ou bolsa de plástico de soro na pele foi
opção empregada inicialmente em Bogotá, na Colombia(28). Qualquer
tela ou prótese pode ser suturada à pele com objetivo de conter as
vísceras abdominais, contudo, o coletor de urina é transparente,
permitindo a avaliação das alças intestinais e sangramento
intracavitário, tem baixo custo e alta disponibilidade. Um dos
problemas observados é a perda de líquido peritonial pela ferida
operatória.
1.3.3 Campos plásticos estéreis adesivos
As alças são envolvidas com plásticos estéreis e, em seguida, com
compressa. Campos plásticos adesivos estéreis são fixados à pele,
cobrindo a compressa e protegendo o conteúdo abdominal (Figura_3).
Esta técnica apresenta vantagens, especialmente por evitar a perda de
líquido peritonial e não aumentar a pressão abdominal, além de,
teoricamente, diminuir a contaminação da cavidade(45).
[/img/revistas/ag/v39n3/15647f3a.jpg]
[/img/revistas/ag/v39n3/15647f3b.jpg]
[/img/revistas/ag/v39n3/15647f3c.jpg]
2. Recuperação na unidade de terapia intensiva (UTI)
Após o término da laparotomia abreviada, o doente deve ser
encaminhado à UTI. É importante ressaltar que o cirurgião responsável
deve ter participação ativa na condução do caso e estar disponível
para eventual reoperação a qualquer momento.
Alguns autores(31) propõem um passo intermediário entre a laparotomia
abreviada e a transferência para a UTI. Trata-se da reanimação na
sala cirúrgica após o término da laparotomia abreviada e que pode
durar até algumas horas. Nestes casos, iniciam-se a reposição
volêmica e a correção dos distúrbios metabólicos, com monitorização
minuciosa da possibilidade de sangramento persistente. Se houver
dúvidas quanto à presença de hemorragia ativa não controlada, o
doente é reoperado para o controle efetivo, antes mesmo de ser
encaminhado para a UTI.
À admissão na UTI, propõe-se avaliação terciária(27). Novo exame
físico detalhado é realizado, com o objetivo de identificar possíveis
lesões não diagnosticadas inicialmente.
2.1 Distúrbios ácido-básicos e reposição volêmica
A idéia principal é que a acidemia seja considerada secundária à
hipóxia sistêmica e, portanto, represente falha na reanimação. Desta
forma, mais que a infusão de bicarbonato de sódio, deve-se otimizar a
oferta de oxigênio, melhorando parâmetros como concentração de
hemoglobina e sua saturação por oxigênio, pressão parcial de oxigênio
arterial e débito cardíaco.
Há controvérsias sobre os parâmetros e objetivos finais a serem
atingidos com esta reanimação, mas certamente a avaliação clínica é
prejudicada por uma série de fatores(15, 21, 33). Geralmente são
doentes que receberam volume grande de cristalóides durante a
operação, determinando extravasamento de líquido para o interstício e
edema. A resposta neuroendócrina ao trauma é responsável por oligúria
e retenção hídrica, além de taquicardia. A ventilação mecânica,
tamponamento com compressas e eventual síndrome compartimental do
abdome alteram as pressões de câmaras direitas(14, 15, 21, 33).
A monitorização invasiva é muito útil no manejo destes doentes
graves, uma vez que vários fatores interferem na avaliação clínica. O
cateter de artéria pulmonar (Swan-Ganz) fornece dados objetivos para
a reposição volêmica e otimização das drogas vasoativas. A pHmetria
gástrica tem fornecido parâmetros para a reanimação em várias
condições clínicas e é método promissor também para os submetidos ao
controle de danos(15, 33, 41).
O excesso de base e lactato séricos são freqüentemente empregados
como parâmetros para a reanimação(21, 33). Enquanto o excesso de base
mantém relação com a letalidade até 48 horas após o trauma, o pH
apresentou a mesma correlação somente até 2 horas, o que é explicado
pela ação de outros sistemas tampão corrigindo o pH, mesmo na
presença de metabolismo anaeróbico(41). Os traumatizados nos quais a
dosagem sérica de lactato permanece elevada por mais de 48 horas, têm
mortalidade extremamente alta(41).
2.2 Correção da hipotermia
A correção da hipotermia é fator dos mais importantes para o controle
das demais alterações fisiológicas. Entre as formas de reaquecimento
possíveis, ressaltam-se a infusão endovenosa de líquidos aquecidos a
39oC, cobertura da cabeça do doente com turbante (que pode ser
confeccionado com algodão ortopédico), emprego de colchão térmico e
sistemas de aquecimento pela circulação de ar aquecido (Bair Hugger)
(15). Há possibilidade de irrigação de sondas gástrica e vesical com
solução salina aquecida a 39o ou 40oC. As cavidades torácica e
abdominal podem ser irrigadas com líquidos aquecidos através de
drenos de tórax ou cateteres de diálise peritonial. O ambiente deve
ser aquecido. Nos casos de hipotermia grave, GENTILELLO et al.(18)
preconizam o emprego de dispositivos de reaquecimento arteriovenoso
contínuo, através da cateterização da artéria e veia femoral. Nestes
casos, contudo, a pressão arterial sistólica deve estar acima de 80
mm Hg, pois é responsável pela propulsão do sangue através do sistema
de tubos do aparelho.
2.3 Correção da coagulopatia
Não só a acidemia e hipotermia determinam disfunção da coagulação,
mas também a própria hemodiluição tem importância. Desta forma, a
reposição de fatores de coagulação e plaquetas é fundamental. Plasma
fresco, crioprecipitado, concentrado de plaquetas e cálcio devem ser
considerados no tratamento desses distúrbios(15, 42). A coagulação
intravascular disseminada pode ocorrer e, nestes casos, a heparina e
o ácido aminocapróico podem ser opções para o tratamento(15, 42).
2.4 Procedimentos associados
A antibioticoprofilaxia está indicada. É recomendável sedação
contínua durante o período de recuperação na UTI, visando não somente
melhora do padrão respiratório, mas também controle da pressão
abdominal e limitação do sofrimento do doente. É fundamental a
monitorização da pressão intra-abdominal. A hipertensão abdominal é
comum e, se não controlada, determina síndrome compartimental
abdominal. Nestes casos, há deterioração das funções cardiovascular,
respiratória e renal, além do aumento da pressão intracraniana(24). A
pressão abdominal pode ser aferida indiretamente através do cateter
vesical ou pela sonda gástrica(24).
A arteriografia deve ser considerada como passo intermediário entre a
primeira e a segunda operação. Pode estar indicada em casos de trauma
hepático grave ou fraturas de bacia, quando o tamponamento com
compressas foi realizado na laparotomia abreviada, sem o controle
adequado do sangramento no pós-operatório(3).
2.5 Tratamento definitivo
Não há período mínimo ou máximo para o retorno à sala operatória e
tratamento definitivo das lesões. O mais importante é reverter a
falência fisiológica e alcançar condições mínimas para a segurança do
procedimento cirúrgico. Não há regras fixas, mas considera-se o
retorno eletivo para a sala de operações quando alcançados
temperatura acima de 36ºC, EB >-5 mEq/L, lactato normal ou
em correção progressiva, tempo de protrombina menor que 15 segundos,
tempo parcial de tromboplastina ativada menor que 35 segundos,
contagem de plaquetas acima de 50.000, índice cardíaco acima de 3 L/
min/m2, com baixa dosagem de inotrópicos e saturação O2 acima de 95%
(FIO2 <50%)(33).
2.6 Relaparotomia não-programada
Há situações em que a abordagem da cavidade é necessária antes do
tempo previsto. A principal causa é o sangramento persistente,
provavelmente pela falha na identificação de foco hemorrágico ativo
durante a laparotomia abreviada. Isto pode ocorrer em até 15% dos
casos(33). Há queda hematimétrica e necessidade crescente de
transfusão de concentrados de hemácias. Normalmente a reoperação não-
programada é indicada quando há necessidade de transfusão de mais de
duas unidades de concentrados de hemácias por hora, em doentes sem
hipotermia ou quando se excede a administração de 15 unidades de
concentrados de hemácias nos hipotérmicos(33).
Outra indicação para relaparotomias não-programadas é a síndrome
compartimental abdominal(24, 27, 33). Trata-se de aumento da pressão
abdominal acima de limites fisiológicos, com conseqüências
respiratórias e hemodinâmicas, entre outras(24). São inúmeras as
causas possíveis mas, em trauma, deve-se lembrar do edema
retroperitonial e mesentérico pela reposição acentuada de
cristalóides, dos grandes hematomas de retroperitônio, do
tamponamento com compressas e do sangramento intra-abdominal. O
tratamento inicial é a otimização da reposição volêmica; entretanto,
em certos casos, a descompressão abdominal com laparotomia e
peritoneostomia pode ser necessária(24, 30).
3 Reoperação programada
Uma vez que as metas da reanimação foram alcançadas, o doente é levado ao
centro cirúrgico para a reoperação programada. Isto ocorre, em média, após 48
horas da laparotomia abreviada. Nos casos de tamponamento de lesões hepáticas
complexas, o período até a retirada das compressas deve ser de 3 a 5 dias, para
hemostasia adequada da lesão. Todas as possíveis dificuldades devem ser
previstas e providências antecipadas para a sua resolução. Nos casos de
traumatismos hepáticos ou vasculares complexos, por exemplo, é aconselhável
presença de cirurgiões afeitos ao tratamento destas lesões na reoperação, bem
como solicitação de materiais específicos e possivelmente necessários.
A retirada das compressas envolve muito cuidado: devem ser umedecidas com soro
morno para que descolem progressivamente dos locais cruentos, de maneira a não
haver novo sangramento. Conferem-se todas as compressas com as anotações da
laparotomia abreviada, evitando a permanência de algum corpo estranho no pós-
operatório. O trânsito intestinal é restaurado com as anastomoses necessárias.
Se houver indicação, este é o momento para a confecção de colostomia. A
cavidade deve ser novamente avaliada minuciosamente, pois lesões podem ter
passado despercebidas no momento da primeira laparotomia.
É importante a lavagem e irrigação da cavidade com soro morno, especialmente se
a ferida abdominal permaneceu aberta, no intuito de diminuir a contaminação e
ocorrência de abscessos intra-abdominais no pós-operatório. A aproximação das
bordas da aponeurose para a síntese definitiva da cavidade peritonial muitas
vezes não é fácil, especialmente se o intervalo entre os dois procedimentos
cirúrgicos for maior que 5 dias(15, 27, 33). A sutura da aponeurose sobre
tensão é fadada ao insucesso, além de predispor à síndrome compartimental do
abdome.
Se há dificuldade na síntese, próteses de márlex ou prolene podem ser
empregadas para a correção do defeito da aponeurose. Preferencialmente deve-se
evitar o contato direto destes materiais com alças intestinais pelo risco de
formação de fístulas enterais. Uma possibilidade é a secção da bainha anterior
dos músculos retos abdominais, com rotação de um retalho medialmente,
protegendo as alças intestinais. Outra opção é a manutenção destas telas até a
aderência das alças intestinais à parede abdominal, seguida da retirada da
mesma e enxerto de pele sobre as alças intestinais, como uma hérnia ventral
programada(11, 15, 27). Somente após alguns meses, o defeito da aponeurose é
corrigido definitivamente.
Complicações
O objetivo principal no controle de danos é manter o doente vivo e, desta
forma, aceita-se que haja aumento controlado da morbidade. Trata-se de doentes
críticos que, apenas pela gravidade do trauma, são suscetíveis a uma série de
intercorrências na sua evolução. São relatadas complicações como abscessos
intracavitários, hemorragia, infecção de ferida operatória, síndrome
compartimental do abdome, hérnia incisional e fístulas digestivas(20, 27).
Enfrentar estas dificuldades é a regra na condução destes casos. Portanto, além
das complicações esperadas no manejo de traumatizados graves, há algumas
especificamente relacionadas com o controle de danos.
A possibilidade de lesão não diagnosticada deve sempre ser levada em
consideração. Nestas situações, existe geralmente, traumatismo em diversos
segmentos corporais, o nível de consciência está diminuído, o doente está sob
ventilação mecânica ou sedado e, portanto, associam-se vários fatores para que
lesões não evidentes passem despercebidas.
Infecção peritonial e abscessos cavitários são relatados em 12% a 67% dos casos
(15, 27). A exposição peritonial em ambiente de UTI, bem como a permanência de
compressas na cavidade peritonial por tempo prolongado são fatores relacionados
a maior freqüência de infecção. A vigilância quanto à permanência de compressas
ou outros corpos estranhos na cavidade deve ser reforçada. Alguns autores(27)
sugerem que, antes da síntese definitiva, radiografias de abdome sejam
realizadas para excluir este risco, uma vez que a contagem nem sempre é
fidedigna.
Problemas com a síntese da cavidade são freqüentemente encontrados. Se o
período até a reoperação programada for muito extenso, há retração das bordas
da ferida operatória e a sutura sob tensão resulta em hipertensão abdominal ou
em deiscência(11, 27).
CONCLUSÕES
Não há estudos prospectivos e controlados sobre o emprego do controle de danos,
mas aceita-se seu valor baseado na experiência clínica(28, 33, 41).
BURCH et al.(5), em 1992, publicaram o estudo com maior número de casos
envolvendo laparotomias abreviadas. Foram avaliados 200 traumatizados em 7
anos. A probabilidade de sobrevivência da amostra foi calculada em 57%. Um
terço foi submetido a toracotomia de reanimação e, em média, houve necessidade
de transfusão de 22 unidades de concentrado de hemácias. Dentro deste cenário
dramático, no qual a sobrevivência é exceção, técnicas de controle de danos
foram empregadas. Cerca de 50% sobreviveram até a reoperação programada e,
destes, 66% sobreviveram para alta hospitalar.
Em relação ao tamponamento hepático com compressas os resultados são melhores.
COGBILL et al..(8), em 1988, analisando o tratamento dos traumatismos de
fígado, descreveram 52 casos de tamponamento com compressas, com letalidade
próxima de 40%.
Os dados variam nas séries em que técnicas de controle de danos foram
empregadas para o tratamento de lesões abdominais diversas (Tabela_1). Existem
muitas variáveis que interferem na letalidade final, mas certamente o tempo até
a indicação da interrupção da operação é fundamental. Quanto antes a
laparotomia for abreviada e os parâmetros fisiológicos recuperados, melhor será
o prognóstico.