Estado nutricional e avaliação dietética de pacientes gastrectomizados
ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
A baixa taxa de sobrevivência de pacientes com câncer gástrico induziu
cientistas a descrever o tipo de cirurgia requerida e a salientar a importância
do diagnóstico precoce(8). As diversas técnicas de reconstrução após
gastrectomia não têm apenas finalidade de reconstruir a continuidade do
trânsito digestivo, mas também a de compensar a perda de funções decorrente da
retirada total ou parcial do estômago(11). Os efeitos da gastrectomia total
(GT) e subtotal (GST) sobre a qualidade de vida são freqüentemente ignorados
(15, 27).
O aspecto nutricional é crucial na cirurgia de ressecção gástrica e o método
mais adequado de reconstrução do canal alimentar para cada tipo de cirurgia
deve ser considerado para se reduzir o risco de desnutrição pós-gastrectomia
(21). Os sinais e sintomas relacionados ao estado nutricional mais comumente
observados nos pacientes com gastrectomia são anorexia, diarréia, síndrome de
dumping, perda de peso, anemia e desnutrição protéico-energética(24).
A perda de peso dos pacientes depende da extensão da ressecção gástrica, da
preservação do piloro e do tipo de vagotomia realizada. Diminuição de ingestão
de alimentos é a causa mais importante e pode ser secundária à saciedade
precoce, dispepsia, perda de apetite, fatores socioeconômicos ou à restrição
voluntária da ingestão pelo paciente para evitar sintomas(6, 24, 27). No
entanto, alguns estudos demonstram que a perda acentuada de peso, de proteínas
e de gorduras corporais dos pacientes ocorre principalmente já antes da
cirurgia(6, 14) e alguns autores afirmam que a desnutrição não é inevitável,
contanto que se mantenha uma ingestão alimentar adequada(7, 10, 13, 20, 30).
Contudo, a perda de peso em pacientes sem doença maligna com ingestão dietética
adequada indica que outros fatores advindos da reconstrução pós-gastrectomia
limitam a recuperação do peso corporal(6).
A causa da desnutrição após gastrectomia não é bem determinada, mas sabe-se que
os mecanismos que levam à desnutrição são multifatoriais(27). Alguns dos
fatores contribuintes são ingestão calórica inadequada, insuficiência
pancreática exócrina, assincronismo entre alimentos e suco pancreático
secretado, supercrescimento bacteriano, alterações na mucosa intestinal, tempo
de trânsito intestinal reduzido e progressão da doença maligna em paciente
gastrectomizados(1, 2, 6, 7, 13, 14, 22, 23).
A insuficiência pancreatobiliar representa mecanismo de má assimilação dos
nutrientes. Em caso de pancreatectomia, a má absorção de proteína e de gordura
é um resultado constante. Em reconstruções em que se exclui a passagem de
alimentos pelo duodeno, a liberação de bile e de enzimas pancreáticas e a sua
mistura com alimentos ingeridos são retardadas, não ocorrendo adequada digestão
(8).
O crescimento bacteriano é outro mecanismo responsável por vários aspectos da
má absorção. A desconjugação de sais biliares por bactérias anaeróbias previne
a formação de micelas, dificultando o transporte de gorduras hidrolisadas
através da mucosa intestinal, assim causando esteatorréia(9). A má absorção de
proteínas também pode resultar de crescimento bacteriano, presumivelmente por
desaminação bacteriana e conversão de nitrogênio da proteína dietética em uréia
(24).
Há poucos estudos prospectivos sobre a qualidade de vida após gastrectomia e o
impacto sobre a qualidade de vida em longo prazo causado por diferentes
técnicas de reconstrução é ainda controverso(28). A recurrência de carcinoma
gástrico e as complicações no pós-operatório podem afetar a ocorrência de
sintomas e o estado nutricional; é difícil de se estabelecerem possíveis
vantagens ou desvantagens de qualquer reconstrução em estudo de curto
seguimento dos pacientes(19).
O objetivo do presente trabalho foi comparar o impacto dos diferentes tipos de
reconstrução do tubo digestivo após a gastrectomia sobre o estado nutricional.
MÉTODOS
Pacientes
Este estudo foi conduzido no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto, SP, entre abril de 2001 a junho de 2002. Foram avaliados 50
pacientes atendidos nos ambulatórios de Gastroenterologia, submetidos a
gastrectomia 0,5-39 anos antes, com mediana de 8,5 anos de pós-cirúrgico.
Pacientes em quimioterapia pós-cirúrgica adjuvante e pacientes com suspeita ou
confirmação de recurrência de câncer foram excluídos. Os dados do pré-cirúrgico
foram obtidos por revisão dos prontuários. Os tipos de cirurgia e suas
indicações estão distribuídos na Tabela_1.
Avaliação nutricional e dietética
Para as avaliações nutricional e dietética, foram utilizadas:
a) Avaliação nutricional subjetiva (ANS)(12).
b) Avaliação antropométrica ' peso, altura, índice de massa corporal (IMC),
pregas cutâneas tricipital (PCT) e subescapular, circunferência muscular do
braço (CMB) e área muscular do braço (AMB)(17).
c) Avaliação dietética pelo método de recordatório alimentar.
d) Adequação da ingestão dos micronutrientes ferro e cálcio, a partir dos
valores do Dietary Reference Intakes(DRI)(29).
e) Quantificação dietética por meio do programa de avaliação nutricional e
prescrição de dietas Diet PRO®, versão 3.0.
Análise estatística
Utilizou-se o programa GraphPad InStat®, versão 3.05. Os testes de Mann-
Whitney, Kruskal-Wallis, Wilcoxon e o teste Spearman foram aplicados.
Probabilidades menores que 0,05 foram aceitas como significantes.
RESULTADOS
Trinta e três (66%) pacientes eram do sexo masculino. A idade variou de 20 a 82
anos, com mediana de 57 anos. As indicações cirúrgicas foram: 22 pacientes com
câncer, 28 com úlcera gástrica ou duodenal, e 1 com gastrinoma Zollinger-
Ellison. O IMC médio foi de 22 ± 4,75 kg/m2. Distribuição dos pacientes que
apresentaram percentil de adequação < 5 para medidas de PCT, CMB e AMB
encontram-se na Tabela_2. Nove (18%) queixaram-se de sintomas
gastrointestinais, sendo plenitude epigástrica o mais freqüente, seguido de
náusea e perda de apetite. Não houve diferença significativa na freqüência de
ocorrência de sintomas entre os tipos de reconstruções cirúrgicas. Apesar dos
sintomas referidos, os pacientes que os apresentaram mantinham ingestão
calórica semelhante àquela observada no conjunto de todos os pacientes. A
ingestão diária média foi de 1624 ± 477 kcal ou 28 kcal/kg de peso corporal,
sendo que 21 (42%) pacientes consumiam 31 kcal/kg de peso/dia ou mais (Figura
1). A ingestão média de proteínas foi de 1,34 g/kg de peso ou 18% do valor
calórico consumido. As médias de adequação da ingestão de cálcio e de ferro
foram 23,8% e 151,3% do DRI, respectivamente. A baixa ingestão de cálcio deveu-
se a pacientes que não referiram consumo de leite e derivados no recordatório
alimentar. O número de refeições foi de três a seis, com média de cinco por
dia.
Considerando-se todos os pacientes, não houve diferença significativa entre as
reconstruções cirúrgicas quanto aos resultados das avaliações nutricional e
dietética. Houve correlação negativa entre ingestão calórica e IMC (Figura_2).
Não se observou relação significativa entre o tempo pós-cirúrgico com o IMC ou
com a ingestão calórica.
Os valores de hemoglobina entre os pacientes submetidos as diferentes
reconstruções cirúrgicas pós-GST foram (média ± desvio-padrão) 12,2 ± 2 g d/
L naqueles com BII, 12,8 ± 2,5 g/dL naqueles com BI, 13,5 ± 1 g/dL com
reconstrução a Henley, 13 ± 2 g/dL nos pacientes com Y-de-Roux. Entre os
gastrectomizados totais, o valor de hemoglobina foi 13 ± 2 g/dL.
Segundo o resultado da ANS, seis (12%) pacientes foram classificados como
''potenciais desnutridos ou desnutridos moderados''. Nestes, o percentil de
adequação foi menor ou igual a 5 para 66,7% em PCT, e para todos em CMB. O IMC
médio entre estes pacientes foi de 18,5 kg/m2.
Não houve diferença significativa quanto aos dados das avaliações nutricional e
dietética entre os pacientes operados por câncer e os operados por doença
benigna, ou entre os pacientes submetidos a GT e a GST. Entre os pacientes
submetidos a GST, aqueles com Y-de-Roux apresentaram menor ingestão diária de
calorias e maior IMC, este último já presente no pré-cirúrgico (Tabela_3).
Pacientes operados por câncer
Após a cirurgia, diferentemente do observado no pré-cirúrgico, aqueles com GT
apresentaram menor IMC do que os com GST. Comparando-se os IMC no pré e no pós-
cirúrgico, observa-se redução significativa de IMC nos pacientes com GT, o que
não foi observado nos pacientes com GST (Tabela_4). Entre os pacientes com GST,
observaram-se maiores IMC (Tabela_5) e CMB naqueles com Y-de-Roux,
comparativamente aos com Billroth II. Entre os pacientes operados por câncer
com Y-de-Roux, aqueles com GST apresentaram maior IMC comparados aos com GT
(Tabela_6). Não houve relação do tempo pós-cirúrgico com o IMC ou com a
ingestão calórica e entre os pacientes submetidos a GT, não houve relação entre
IMC e ingestão calórica.
Não se observaram diferenças significativas das avaliações nutricional e
dietética entre os tipos de reconstruções cirúrgicas nos pacientes com
diagnóstico de doença benigna.
DISCUSSÃO
Existem controvérsias em relação aos métodos mais adequados, sensíveis e
específicos para se realizar a avaliação do estado nutricional(18). Cada um
deles tem características próprias, que lhes conferem vantagens e/ou
desvantagens sem que, contudo, haja o teste considerado padrão-ouro(12). No
presente estudo, entre os pacientes considerados desnutridos pela ANS,
observaram-se valores antropométricos mais baixos comparativamente aos do grupo
total. Entretanto, considerando somente os indicadores antropométricos, a
prevalência de pacientes considerados desnutridos poderia ser maior, uma vez
que maior número de pacientes apresentou valores de adequações para pregas
cutâneas menores ou iguais a 5. Ao que parece, existe tendência de os
resultados oferecidos pela ANS subestimarem aqueles encontrados pelos métodos
antropométricos(12). PAPINI-BERTO et al.(25), em estudo recentemente publicado,
utilizaram a combinação de vários indicadores nutricionais antropométricos e
bioquímicos na avaliação nutricional dos pacientes com gastrectomia. Esses
autores encontraram prevalência maior de desnutridos em comparação ao presente
estudo e sugerem que a classificação nutricional seja feita pela associação de
indicadores nutricionais, de fundamentação metodológica diferente, a fim de se
superarem as limitações de cada indicador.
No estudo presente, observou-se correlação negativa entre IMC e ingestão
calórica. Estudo envolvendo pacientes pós-GT revelou que alguns recuperaram
peso corporal com ingestão alimentar inferior à metade da quantidade ingerida
antes da cirurgia(20). A maioria deles seguia o hábito alimentar familiar e não
foi orientada quanto ao tipo e densidades calórica e protéica das preparações,
à digestibilidade e fracionamento da dieta. Em conseqüência, dificilmente
aumentariam suas reservas energéticas corporais, mesmo com ingestão calórica
alta(20).
Estudo prospectivo(8) analisando 174 pacientes com GT revelou decréscimo de IMC
médio desde o pré-operatório, apesar de ingestão calórica elevada. Conforme os
autores, o maior consumo alimentar poderia ser meio subconsciente de
recuperação pelos pacientes com perda acentuada de peso, o que poderia ter
ocorrido neste estudo(8). Outras possibilidades seriam a má digestão e má
absorção dos alimentos ingeridos, e a má assimilação dos nutrientes. Estes
poderiam ser resultantes de ausência ou restrição de reservatório gástrico,
trânsito intestinal acelerado, supercrescimento bacteriano, insuficiência
pancreática, conseqüentes ao procedimento cirúrgico(6, 13). Ou ainda, a
dificuldade de pacientes em recuperar peso corporal, apesar de ingestão
energética quantitativamente adequada, pode estar associada à progressão da
doença maligna(6).
A baixa ingestão de cálcio observada pode refletir hábito alimentar
caracterizado por baixo consumo de leite e derivados, relacionado ou não à
intolerância ao leite associada à gastrectomia(8).
Entre os pacientes com GST, aqueles com Y-de-Roux apresentaram melhores
parâmetros antropométricos, comparados aos com Billroth II. Estes dados sugerem
que a reconstrução em Y-de-Roux promove melhor estado nutricional aos
pacientes. Pacientes com reconstrução a Billroth II submetem-se ao déficit do
potencial digestivo cloridropéptico, a destruição dos mecanismos regulatórios
pilóricos, a dessincronização dos estímulos mecânicos, químicos e hormonais
gastrointestinais(16), ao refluxo excessivo de conteúdo duodenal ou jejunal
para o coto gástrico, envolvendo ou não sintomas de náusea, epigastralgia e
vômitos biliosos. Entretanto, a presença de diferença já no período pré-
cirúrgico entre os grupos correspondentes às diferentes reconstruções é
compatível com a possibilidade de que o estado nutricional tenha influenciado a
decisão do tipo de reconstrução cirúrgica a que o paciente seria submetido.
Além disso, é possível que a perda de peso tenha ocorrido principalmente antes
da cirurgia, mantendo-se posteriormente(6, 8).
Não se observou diferença quanto aos resultados das avaliações nutricional e
dietética entre os conjuntos de pacientes com GT e GST. Estes dados apontam no
mesmo sentido de estudo que avaliou o estado nutricional no aspecto bioquímico
e a ingestão dietética de pacientes gastrectomizados(26). O estudo mostrou
ingestão dietética semelhante entre os pacientes com GT e GST e concluiu não
haver diferença quanto ao estado nutricional entre os mesmos. No estudo de
PAPINI-BERTO et al.(25), assim como no presente, não foi observada diferença
significativa de ingestão energética-protéica entre os pacientes submetidos a
gastrectomia total e subtotal, e não houve relação entre tempo pós-cirúrgico e
ingestão energética. Tal relação poderia ser conseqüente da adaptação
fisiológica pelos pacientes à cirurgia ou, ainda, poderia estar presente no
pós-operatório imediato, que não foi incluído no presente estudo.
Perda de peso é conseqüência regular da GT ou GST para câncer gástrico(28).
Entre os pacientes operados por câncer, aqueles com GST apresentaram melhores
parâmetros antropométricos que aqueles com GT. A retirada total do estômago
resulta em prejuízo na secreção cloridropéptica e do fator intrínseco, na
função de reservatório alimentar, na função motora de trituração e
homogeneização dos alimentos e no retardo do trânsito digestivo alto(11).
Pacientes com GT para câncer apresentam menor tolerância a alimentos comuns,
mais sintomas pós-prandiais, ingestão de refeições menores(4, 30) e recuperação
de peso pós-operatório mais tardio(15). Todos os pacientes com GT operados por
câncer no presente estudo foram submetidos a Y-de-Roux, reconstrução mais
realizada dada sua simplicidade, e não a ausência de distúrbios pós-prandiais
(4). Uma desvantagem da GST é a exposição dos pacientes ao risco de recurrência
de câncer(3); entretanto, ela está associada a melhor estado nutricional e
qualidade de vida(5, 15).
No presente estudo, não se utilizaram instrumentos específicos que objetivam a
detecção de sintomas nos pacientes, fato que, somado à exclusão de pacientes no
período pós-operatório precoce, pode justificar a baixa prevalência de
sintomas. Estudos que revelam prevalência mais alta de sintomas como diarréia,
indigestão, disfagia e perda de apetite em pacientes com GT e Y-de-Roux
utilizaram escalas que investigam, especificamente, sintomas gastrointestinais
e sintomas associados à alimentação, que são mais freqüentes no pós-operatório
precoce(27, 28).
Em conclusão, entre os pacientes operados por câncer, a GST e a reconstrução Y-
de-Roux associam-se com melhor estado nutricional. Outros fatores, como má
digestão dos alimentos ingeridos, má assimilação dos nutrientes, progressão da
doença maligna e não à baixa ingestão de calorias são causas da perda de peso
nos pacientes submetidos a gastrectomia.