Avaliação intra-operatória da pressão portal e resultados imediatos do
tratamento cirúrgico da hipertensão portal em pacientes esquistossomóticos
submetidos a desconexão ázigo-portal e esplenectomia
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
A esquistossomose mansônica se apresenta no Brasil como doença endêmica de alta
prevalência, acometendo cerca de 12 milhões de pessoas(12, 23, 29). Sua forma
hepatoesplênica atinge cerca de 1 milhão de pessoas, tornando-a a maior causa
de hipertensão portal em nosso meio.
Dentre os tratamentos existentes para a hipertensão portal esquistossomótica, o
clínico tem eficácia duvidosa, uma vez que não alcança o objetivo principal:
eliminação ou, pelo menos, redução do calibre das varizes esofagianas,
impedindo assim, o ressangramento(37). O tratamento endoscópico, apresenta
índices elevados de ressangramento quando utilizado isoladamente, entre 11% e
33,3%(3, 4, 11, 14, 16, 24, 34).
O tratamento cirúrgico é a terapêutica de escolha na maioria dos Serviços que
lidam com esta doença, no entanto, duas opções dividem a indicação dos autores:
as cirurgias de derivação portal seletiva, notadamente a cirurgia de derivação
esplenorrenal seletiva(3), que objetiva a descompressão seletiva do território
portal esquerdo, sítio das varizes esofagianas, e as desconexões ázigo-portais,
que visam interromper a circulação colateral do sistema portal em direção ao
esôfago, onde há varizes(6).
As cirurgias de derivação portal seletiva são efetivas no controle do
ressangramento, porém são acompanhadas de índices consideráveis de
encefalopatia portossistêmica pós-operatória ' entre 3,3% e 14,8%(1, 2, 14, 17,
18, 27, 31, 33) ' o que torna sua indicação em um paciente com função hepática
normal pouco aconselhável.
As cirurgias de desconexão ázigo-portal, no entanto, apresentam índice de
ressangramento significativo entre 6% e 29%, porém sem o inconveniente da
encefalopatia portossistêmica(9, 15, 17, 19, 20, 22, 31). Estudos realizados na
década de 90, como os de SAKAI et al.(34) e PUGLIESI(30), mostraram queda
significativa no índice de ressangramento, quando se associou à cirurgia a
escleroterapia endoscópica no pós-operatório. Estes resultados fazem com que a
desconexão ázigo-portal e esplenectomia (DAPE) tenha a preferência da maioria
dos autores como o tratamento de escolha em pacientes esquistossomóticos com
varizes esofagianas sangrantes(5, 6, 7, 10, 20, 30).
Em nosso meio existem poucos estudos sobre a hemodinâmica portal em
esquistossomóticos submetidos a DAPE e, ainda assim, seus resultados são
controversos. CAPUA Jr. et al.(6) e STELMACH e CAPUA Jr.(36) não encontraram
alterações significativas na pressão portal após a DAPE. Já CLEVA(10) observou
queda, em média, de cerca de 30% após o mesmo procedimento. Ainda POLLARA(28),
em 1992, também utilizando a desconexão ázigo-portal porém realizando apenas a
ligadura da artéria esplênica, sem a esplenectomia, encontrou queda média de
cerca de 25% da pressão portal após o procedimento.
Em virtude dessas controvérsias e no intuito de obter subsídios que contribuam
para a escolha do melhor tratamento para pacientes com esquistossomose com
varizes esofagianas sangrantes, foi objetivo deste estudo avaliar o impacto
intra-operatório da DAPE sobre a pressão portal e os resultados imediatos do
tratamento cirúrgico da hipertensão portal por esquistossomose, forma
hepatoesplênica, tratados por DAPE.
CASUÍSTICA
Foram estudados retrospectivamente 19 pacientes com hipertensão portal
decorrente de esquistossomose hepatoesplênica, sendo 11 do sexo masculino e 8
do feminino, com idade média de 37,9 anos (variando entre 18 e 61 anos),
história de hemorragia digestiva alta por ruptura de varizes de esôfago. Nenhum
paciente havia sido submetido a tratamento (clínico ou endoscópico) prévio.
Todos foram submetidos a tratamento cirúrgico de forma eletiva (DAPE), sendo 17
operados no Departamento de Clínica Cirúrgica da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal de Goiás e 2 no Serviço de Cirurgia Geral do Hospital
Geral de Goiânia, pela mesma equipe, no período de janeiro de 1992 a março de
2001.
Critérios de inclusão
- Diagnóstico de esquistossomose mansônica baseado em evidências
epidemiológicas, clínicas e confirmados por exame histopatológico;
- presença de antecedente de hemorragia digestiva alta por rotura de
varizes de esôfago.
Critérios de exclusão
- História de etilismo crônico;
- evidência clínica ou laboratorial de insuficiência hepatocelular;
- sorologia positiva para hepatite B e/ou C;
- evidência de outras hepatopatias ao exame histopatológico.
Todos os pacientes foram submetidos a avaliação laboratorial da função hepática
e a exame endoscópico no período pré-operatório.
As varizes esofagianas foram avaliadas por endoscopia e classificadas de acordo
com o seu diâmetro (segundo classificação de PALMER e BRICKS(26)):
grau I = varizes com diâmetro inferior a 3 mm
grau II = varizes com diâmetro entre 3 e 6 mm
grau III = varizes com diâmetro superior a 6 mm
A cirurgia era realizada eletivamente com o paciente sob anestesia geral em
decúbito dorsal horizontal, com monitorização intra-operatória da freqüência
cardíaca, pressão venosa central e pressão arterial média invasiva. A técnica
operatória consistiu de laparotomia mediana desde o apêndice xifóide até a
cicatriz umbilical; biopsia hepática em cunha do lobo direito, para estudo
histopatológico; cateterização de ramo venoso mesentérico (do mesojejunal) com
cateter de polietileno de 6 Fr e progressão deste no sentido da veia porta, por
uma extensão de cerca de 15 cm, sendo sua localização confirmada pela palpação
do cateter no interior da veia porta. O cateter era conectado a um sistema de
coluna de água graduado em centímetros, estando a marca inicial ao nível da
linha axilar média; aferição da pressão portal inicial concomitante a da
pressão arterial, freqüência cardíaca e pressão venosa central. Ligadura prévia
da artéria esplênica ao nível da transição corpo-caudal do pâncreas com
posterior esplenectomia. Procedia-se, então, à desvascularização do terço
inferior do esôfago, fundo e corpo gástrico, vasos breves, preservando os
nervos vagos, seguida de ligadura dos vasos da pequena curvatura desde a
incisura angular, até a extensão de 5 a 7 cm no sentido proximal no esôfago.
Realizava-se, então, uma gastrofundoplicatura póstero-lateral (2/3 por uma
extensão longitudinal de 5 cm). Ao final do procedimento, aferição da pressão
portal concomitante a da pressão arterial, freqüência cardíaca e pressão venosa
central com posterior retirada do cateter mesentérico-portal. Fechamento da
cavidade por planos.
Foram analisados:
A ' Parâmetros hemodinâmicos (sistêmicos e portais) intra-operatórios
1- pressão arterial média
2- freqüência cardíaca
3- pressão venosa central
4- pressão portal
B ' Calibre das varizes esofagianas
1- pré-operatório
2- pós-operatório precoce (60 dias)
A análise dos resultados obtidos foi realizada através de testes estatísticos
em que, para variáveis quantitativas, foi usado o teste paramétrico t de
Student para dados pareados, que se referem ao mesmo grupo de pacientes, com
informações em períodos distintos, e o não-paramétrico de Wilcoxon para dados
qualitativos no decorrer do tempo.
Após a alta hospitalar, os pacientes eram acompanhados em ambulatório e
submetidos a avaliação endoscópica cerca de 60 dias após a cirurgia (a
necessidade de escleroterapia era determinada pelo endoscopista).
Os resultados das endoscopias foram analisados no período pós-operatório (cerca
de 30 dias) e a análise das varizes consistiu em se avaliar se elas
desapareciam, diminuíam, aumentavam ou permaneciam inalteradas.
RESULTADOS
Todos os pacientes apresentavam provas de função hepática dentro dos limites da
normalidade.
Tanto a pressão arterial, quanto a freqüência cardíaca e a pressão venosa
central aferidas, concomitantemente às medidas do início e do fim da operação,
não apresentaram variação significativa.
Todos os pacientes apresentaram queda da pressão portal, quando se comparou o
início e o final do procedimento: 10,5% dos pacientes com queda <10%, 26,3%
apresentaram queda >40% (Tabela_1). A pressão portal média apresentou queda
significativa de 31,3 cm de H2O, para um valor médio de 22 cm de H2O (31,3%),
conforme observado na Tabela_2.
O tempo operatório médio foi de 282,1 minutos, variando de 255 a 360 minutos.
As complicações decorrentes do ato operatório ocorreram em 36,8% dos pacientes
e foram: íleo adinâmico em cinco pacientes (26,3 %), isquemia mesentérica em
dois pacientes (10,5%), trombose parcial da veia porta em um paciente (5,2%) e
trombose total em um, infecção do trato urinário em um paciente (5,2%),
abscesso subfrênico em um paciente (5,2%) e um caso de necrose de fundo
gástrico (5,2%). Não se observaram complicações relacionadas à colocação do
cateter na veia porta.
Três pacientes (15,7%) evoluíram a óbito: um por septicemia secundária à
pneumonia no 60º pós-operatório, um por coagulação intravascular disseminada
(CIVD), secundária a um grande coágulo intra-peritonial no 5º pós-operatório, e
outro por septicemia pós-perfuração por necrose isquêmica da transição corpo/
fundo gástrico no 13º pós-operatório.
Quando se comparou a variação do calibre das varizes esofagianas no pré e no
pós-operatório (60 dias após a DAPE), observou-se redução significativa deste,
como pode ser observado na Tabela_3.
DISCUSSÃO
Pelo fato de ser doença de alta prevalência em nossa população e com potencial
complicação grave em sua forma hepatoesplênica, a esquistossomose representa
doença de forte impacto social.
Assim, a necessidade de tratamento eficiente que controle efetivamente a
hemorragia digestiva com poucos efeitos colaterais, se torna evidente. Neste
sentido, a preferência dos autores recai sobre o tratamento cirúrgico e, na
maioria dos Serviços que tratam desta afecção, a cirurgia de eleição é a DAPE
(5, 6, 7, 10, 20, 30). Para diminuir os índices de ressangramento, maior
inconveniente da DAPE, associa-se a esta um tratamento complementar, como a
escleroterapia endoscópica pós-operatória, com bons resultados(5, 30, 34, 35).
Este bom resultado em relação à taxa de ressangramento pós-operatório, também
foi observado no presente estudo, uma vez que apenas um paciente (8,3%)
apresentou hemorragia digestiva pós-operatória, sendo esta decorrente de
sangramento em úlcera gástrica.
Em relação aos efeitos da DAPE sobre a hemodinâmica portal, os resultados são
controversos. Enquanto CLEVA(10) e POLLARA(28) encontraram queda de 30% e 25%,
respectivamente, da pressão portal, logo após a ligadura da artéria esplênica,
CAPUA et al.(6) e STELMACH e CAPUA(36), avaliando a pressão portal intra-
operatória encontraram, ao final da DAPE, valores próximos dos iniciais. Na
presente série, todos os pacientes apresentaram queda na pressão portal e a
diferença entre a pressão portal média no início e ao final da DAPE foi de
31,3%.
A provável causa da queda na pressão portal após a DAPE é a retirada da
circulação esplênica do circuito sistêmico-portal como resultado da
esplenectomia, como observado por CLEVA(10) que, a partir da ligadura da
artéria esplênica, haveria interrupção desta circulação hiperdinâmica, com
conseqüente queda na pressão portal. Esta assertiva é corroborada neste mesmo
estudo onde se demonstrou queda de 28% do fluxo portal após a ligadura da
artéria esplênica; além disto, também se observou que tanto o fluxo, quanto a
pressão portal mantiveram-se estáveis após a esplenectomia e desvascularização
esôfago-gástrica. POLLARA(28) também havia demonstrado queda da pressão portal
de cerca de 25% após a ligadura da artéria esplênica. Esta queda da pressão
portal pode ser um dos fatores para explicar os bons resultados da DAPE no
tratamento de pacientes com hipertensão portal por esquistossomose. MOSSIMANN
et al.(25) demonstraram que a queda da pressão portal tem relação direta com a
queda da pressão nas varizes esofágicas.
Neste estudo houve diminuição significativa do calibre das varizes esofagianas,
quando comparados o pré e pós-operatório imediato (60 dias), observação
semelhante à de outros estudos(9, 32, 38). Embora na presente casuística não se
tenha observado o desaparecimento das varizes, como descrito em alguns casos
por outros autores(18, 30), a diminuição do calibre das varizes esofagianas
encontradas após a DAPE além de facilitar a escleroterapia endoscópica(34),
também diminui a possibilidade de ressangramento e, se este ocorrer, terá menor
intensidade e gravidade do que em pacientes com varizes de grosso calibre, como
demonstrou CURY(13), em 1989. Esse autor acompanhou pacientes
esquistossomóticos e encontrou correlação direta entre o maior calibre das
varizes esofagianas e maior freqüência e gravidade dos episódios de
sangramento.
Três pacientes (15,7%) apresentaram, no pós-operatório, quadro de dor abdominal
de moderada intensidade, distensão abdominal, febre e, em dois destes,
confirmou-se a suspeita clínica de trombose da veia porta após a realização de
ultra-som Doppler. A incidência de trombose de veia porta na literatura varia
entre 13,2% e 53,2%(19, 29) e é considerada a complicação pós-operatória mais
freqüente da DAPE. Esta complicação tem como causa provável a diminuição do
fluxo sangüíneo portal, após a esplenectomia associada à estagnação do sangue
portal, causada pela ligadura das veias colaterais(10) e também pelo aumento de
plaquetas que se segue à esplenectomia nesses pacientes(8).
A isquemia mesentérica ocorreu em dois casos (10%), uma delas acometeu pequeno
segmento jejunal e evoluiu favoravelmente após ressecção intestinal. Já em
outro caso, a isquemia estava associada à trombose da veia porta e a paciente
evoluiu desfavoravelmente com fístula, peritonite, septicemia e óbito. A
trombose mesentérica após a DAPE também foi demonstrada por CHAIB et al.(8), em
relato de três casos, em que dois evoluíram bem com medidas de suporte clínico
e um necessitou de seguidos procedimentos de ressecção intestinal, culminando
com o óbito. Os mecanismos que levariam a essa trombose ainda não estão bem
esclarecidos, porém, como já citados, dois fatores predisponentes à trombose
venosa estão presentes: a estase venosa e a trombocitose, que acontecem após a
retirada do baço e podem ser lembrados como possíveis precipitadores tanto para
a trombose ao nível da veia porta, como sua extensão para o tronco mesentérico.
A mortalidade operatória ocorreu em 15,7% dos pacientes (três casos): um por
CIVD, secundária à coagulopatia de consumo por coágulos intra-abdominais, um
por peritonite e septicemia, desencadeada por necrose do fundo gástrico
decorrente de isquemia no sítio de ligadura de vaso durante a "esqueletização"
da grande curvatura, e outro por septicemia secundária à fístula após ressecção
intestinal. A presente série apresenta elevado índice de óbitos, porém é
interessante destacar que estes ocorreram no início do estudo, período em que
ainda era pequena a experiência do Serviço com o procedimento, além da maior
precariedade de condições de acompanhamento pós-operatório desses pacientes. O
número de óbitos encontrado em uma amostra pequena (19 casos) cria a falsa
impressão de que esse procedimento apresenta elevado índice de mortalidade.
Índices variáveis de mortalidade foram encontrados em alguns estudos, entre
5,3% e 13,6%(5, 20, 21). No entanto, em outros estudos, não foram observados
óbitos na casuística(10, 28, 30). Ainda assim deve-se ressaltar que, embora a
DAPE seja cirurgia de relativa facilidade técnica, está associada a
complicações potencialmente letais e essa possibilidade não deve ser desprezada
durante a programação do ato operatório, ficando patente que esse procedimento
deve ser realizado em centros médicos especializados com cirurgiões experientes
e com suporte técnico intra e pós-operatório adequado.
Demonstrou-se que a DAPE diminui a pressão portal, já no intra-operatório e que
muito provavelmente, como conseqüência, ocorre diminuição significativa no
calibre das varizes esofágicas. Esses fatores devem ser importantes para os
bons resultados no tratamento da hipertensão portal na esquistossomose
hepatoesplênica. Salienta-se, porém, que essa operação é passível de
complicações graves e apresenta risco significativo de mortalidade.