Questionário de sintomas na doença do refluxo gastroesofágico
EPIDEMIOLOGIA CLÍNICACLINICAL EPIDEMIOLOGYINTRODUÇÃO
Questionários de qualidade de vida relacionada à saúde, genéricos ou
específicos, têm sido valiosos instrumentos para mensurar a qualidade de vida
pela ótica do paciente(4). Questionários genéricos são usados junto à população
geral com o intuito de estudar, de forma ampla, determinados "domínios" da área
de saúde. São aplicáveis também aos mais variados estados de saúde, condições
ou doenças(14).
VELANOVICH et al.(10) construíram e validaram uma escala baseada em sintomas
típicos para a doença do refluxo gastroesofágico (DRGE), objetivando
simplicidade de uso e sensibilidade aos efeitos terapêuticos (Quadro_1).
O escore é calculado pela soma dos algarismos assinalados e pode variar entre 0
e 45 (0 a melhor resposta e 45, a pior). A última questão avalia a percepção do
paciente quanto ao seu estado de saúde atual em seis níveis de satisfação.
No Brasil é desconhecida a existência desse tipo de instrumento para a
abordagem de pacientes com DRGE.
O objetivo deste estudo foi desenvolver e validar um questionário para calcular
o escore de sintomas na DRGE antes e após intervenções terapêuticas.
PACIENTES E MÉTODOS
Validação do questionário de sintomas na doença do refluxo gastroesofágico (QS-
DRGE)
Foi desenvolvido um protocolo baseado em metodologia de tradução para a língua
portuguesa, de questionário de qualidade de vida conhecido em língua inglesa
(3), já previamente utilizado. Os passos seguidos foram os seguintes:
1. tradução para a língua portuguesa por dois professores da língua
inglesa, brasileiros;
2. consenso da primeira tradução adequando a linguagem à escolaridade
média estimada da população brasileira estudada, realizado pelos
autores gastroenterologistas do estudo;
3. versão do consenso para a língua inglesa por dois professores da
língua inglesa, norte-americanos radicados no Brasil;
4. comparação desta tradução com a versão original;
5. adaptação do questionário original acrescentando-se uma questão
para avaliar o sintoma "regurgitação" à versão em português.
Para avaliar as características psicométricas do QS-DRGE, realizou-se teste de
reprodutibilidade (concordância de respostas em dois momentos distintos, medida
pelo coeficiente de correlação intraclasse), avaliação da compreensão através
de percentual de respostas (acima de 90%) e a rapidez para completar as
respostas pelos pacientes (tempo menor que 5 minutos). A validade de face, que
significa a adequação do questionário para atingir os seus objetivos, foi
avaliada em dois momentos, através de painel multidisciplinar com 25
mestrandos, doutorandos e professores orientadores, médicos e não-médicos na
Disciplina Seminários de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação: Ciências em
Gastroenterologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
RS. Calculou-se também a correlação do QS-DRGE com o escore composto de refluxo
gastroesofágico ácido de JOHNSON-DeMEESTER(6), cujo valor discriminativo
considerado foi de 22,0. A questão de número 11 possui opções de repostas como
variável nominal, sendo analisada à parte do escore.
Aplicação do QS-DRGE
Inicialmente foi explicado ao paciente que o questionário continha várias
perguntas sobre o sintoma azia e este foi esclarecido como uma sensação de
ardência retroesternal, podendo atingir a garganta. O questionário auto-
aplicável foi, então, respondido espontaneamente pelos pacientes colocados a
sós numa sala silenciosa. Quando havia dúvidas sobre alguma pergunta o autor
lia a questão com voz pausada e no mesmo timbre. Postulou-se que após essa
leitura se persistisse o não entendimento da questão, o paciente seria
convidado a responder à próxima questão. A não resposta à qualquer pergunta
implicaria na exclusão do indivíduo do estudo e registrar-se-ia a não-
compreensão do QS. Definiu-se que o tempo de preenchimento em até 5 minutos
seria considerado rápido, sendo seu registro aferido pelo autor por relógio
digital.
Pacientes
Foram estudados, consecutivamente, os pacientes encaminhados para realizar
manometria e pHmetria esofagiana prolongada após a assinatura de consentimento
informado previamente aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da
Instituição. Foram excluídos pacientes com analfabetismo primário ou funcional.
Para avaliar a reprodutibilidade do QS-DRGE, 10 pacientes com sintomas típicos
ou atípicos de DRGE e refluxo gastroesofágico ácido, confirmado à pHmetria
prolongada(6), e que não haviam recebido tratamento farmacológico prévio,
responderam ao questionário logo após a entrega do resultado da pHmetria. Após
intervalo variável entre 10 a 15 dias, aqueles indivíduos voltaram a responder
ao mesmo questionário. Os pacientes concordaram em não modificar a sua rotina
diária e em não iniciar qualquer tratamento para a DRGE entre as duas ocasiões.
A seguir, todos os pacientes encaminhados ao laboratório, consecutivamente,
responderam ao questionário QS-DRGE antes dos seus exames de pHmetria
prolongada. Os que apresentaram refluxo ácido positivo (tempo total com pH
inferior a 4,0 maior que 4,2% e/ou tempo na posição ortostática maior que 6,3%
e/ou tempo na posição supina maior que 1,2%) tiveram seus escores no QS-DRGE
comparados aos obtidos pelo método de Johnson-DeMeester e avaliados também
quanto à compreensibilidade do questionário QS-DRGE e ao período de tempo
necessário (rapidez) para o seu preenchimento.
Análise estatística
A análise estatística descritiva foi utilizada na caracterização demográfica e
clínica dos pacientes avaliados. O coeficiente de correlação intraclasse foi
utilizado para avaliação da reprodutibilidade do questionário intra-observador.
Seu resultado foi considerado significativo quando maior que 0,7. A associação
entre o escore composto de Johnson e DeMeester e o do QS-DRGE foi avaliada
através da correlação linear simples. Os escores de Johnson e DeMeester e do
QS-DRGE foram descritos através de média e desvio padrão. O nível de
significância adotado foi de a = 0,05.
RESULTADOS
Questionário de Sintomas
Após três reuniões, os autores estabeleceram um consenso final da tradução e
adaptação do questionário de Velanovich ao qual denominaram de Questionário de
Sintomas na DRGE (QS-DRGE) (Quadro_2).
O escore é calculado pela soma dos algarismos assinalados pelos pacientes,
podendo variar entre 0 e 50 (0 a melhor resposta e 50, a pior). A última
questão avalia a percepção do paciente quanto ao seu estado de saúde atual em
seis níveis de satisfação.
Características dos Pacientes
Pacientes com sintomas da DRGE e pHmetria prolongada positiva para refluxo
gastroesofágico ácido foram incluídos (Tabela_1).
No período do estudo, 124 pacientes foram incluídos e os sintomas típicos
(pirose e regurgitação) foram predominantes, mas sintomas atípicos ou extra-
esofágicos estiveram representados no grupo estudado.
Avaliação da Compreensão e do Tempo de Preenchimento do Questionário
Todos os pacientes responderam a todas as questões num período de tempo
inferior a 5 minutos.
Avaliação da reprodutibilidade
Os escores do QS-DRGE respondidos pelos 10 pacientes estão na Tabela_2.
A amostra foi composta por 10 pacientes e o coeficiente de correlação intra-
classe obtido foi elevado, atingindo o valor de 0,833 devido à média da
diferença entre as duas respostas.
Coeficiente de correlação entre o escore QS-DRGE e o de Johnson-DeMeester
A comparação dos dados obtidos entre o escore do QS-DRGE com os escores
compostos de Johnson-DeMeester não evidenciou correlação entre as duas
variáveis (r = -0,03) (Figura_1).
Os valores dos escores correspondentes aos 124 pacientes estão listados na
Tabela_3.
DISCUSSÃO
O uso de instrumentos que permitam medir graus variados de "bem-estar" ou "mal-
estar" pelos pacientes, tem permitido melhor compreensão sobre o impacto de
diferentes doenças na qualidade de vida, como percebida pelos pacientes. Esses
instrumentos, estruturados em forma de questionários, mensuram os assim
chamados "domínios da saúde"(9), quer em relação à qualidade de vida num
aspecto geral, através dos chamados questionários genéricos, quer através de
questionários específicos para determinadas enfermidades(5).
O uso de um questionário estruturado, simples e com rápida execução e que
possibilite o cálculo de escore que permita comparar um indivíduo ou grupo de
indivíduos com outros e consigo próprio, ao longo de um período de tempo, tem
enorme aplicação clínica, principalmente, após determinadas intervenções
terapêuticas como, por exemplo, as farmacológicas ou cirúrgicas(2, 10). Estudo
publicado por VELANOVICH et al.(12) avaliou o efeito da síndrome da dor crônica
(SDC) e das doenças psicoemocionais (DPE) na qualidade de vida de pacientes
submetidos a cirurgia anti-refluxo, utilizando a sua própria escala original de
sintomas para a DRGE e o questionário de qualidade de vida genérico "SF-36".
Após a cirurgia, os escores do questionário doença específico e os do SF-36
melhoraram significativamente tanto para o subgrupo de pacientes com SDC/PDE,
quanto para o subgrupo (controle) sem esses distúrbios. Esses achados reforçam
a utilidade tanto dos questionários doença-específicos, quanto a dos
questionários genéricos para medir efeitos de intervenção, no caso cirúrgica,
mesmo na ausência de distúrbios emocionais.
O questionário escolhido como referência para este trabalho, escrito
originalmente na língua inglesa e validado numa amostra da população norte-
americana para indivíduos com DRGE, tem sido reconhecido devido a sua fácil
compreensão e aplicação em diferentes grupos de indivíduos. A construção do
questionário QS-DRGE na língua portuguesa, compreendendo-se a tradução daquele
e a sua adaptação aos vocábulos mais universais possíveis na língua portuguesa,
para cada pergunta, foi bastante elaborada pelos autores e recebeu importante
contribuição de um painel multidisciplinar de profissionais.
É importante salientar que VELANOVICH et al.(10) construíram este questionário
objetivando um instrumento de uso simples, fácil de ser entendido, mas com
sensibilidade aos efeitos do tratamento. As questões submetidas aos pacientes
foram fundamentadas em sintomas representativos da DRGE, exceto o último item,
que avalia a satisfação ou percepção geral em relação à saúde pelo próprio
paciente.
Questionários de qualidade de vida relacionados à saúde são construídos para
transformar a avaliação subjetiva referente aos domínios da saúde, em escores
numéricos correspondentes a cada domínio ou a um escore total(9). Um
questionário de qualidade de vida para a DRGE deveria contemplar o efeito da
doença sobre diversos domínios como o físico, o psicológico e o social da
saúde. No presente trabalho de tradução, adaptação e validação do original de
Velanovich ao português, conclui-se que esse instrumento, ao conter apenas uma
única questão especificamente sobre qualidade de vida, seria mais adequadamente
denominado como "questionário de sintomas".
O original em inglês não continha questão sobre o sintoma "regurgitação",
considerado como queixa típica e freqüente nos portadores de DRGE(8). Portanto,
decidiu-se acrescentar uma questão que mensurasse a presença de regurgitação,
tornando o questionário na língua portuguesa mais abrangente, mas mantendo a
sua concisão. Novo acréscimo de outras questões para mensurar a freqüência dos
sintomas da DRGE ou outros poderia aumentar o tempo para o seu preenchimento. O
questionário, dessa forma, continuou ocupando apenas uma única página e a
questão acrescentada não gerou problemas de compreensão pelos pacientes, nem
desfigurou o original.
Houve, no início do estudo, a preocupação com a compreensão e o tempo de
preenchimento do questionário por parte de pacientes com diferentes níveis de
escolaridade e que poderia truncar as respostas do questionário na forma auto-
aplicável. Observou-se, eventualmente, dificuldade de interpretação das
questões e das opções de respostas, em alguns indivíduos. Nessas circunstâncias
os autores esclareceram as dúvidas, procurando a não-indução a quaisquer
respostas. Surpreendentemente, o questionário foi respondido por todos os
pacientes e o tempo gasto para tal foi, invariavelmente, menor que 5 minutos. O
teste de reprodutibilidade evidenciou pequena variabilidade das respostas em
dois momentos distintos, com um coeficiente de correlação intraclasse
considerado excelente (0,833), reforçando a validade do instrumento.
Ao comparar-se o escore do QS-DRGE com o composto de Johnson-DeMeester,
entretanto, não se observou correlação. Esse fato foi também observado por
VELANOVICH et al.(10), no seu estudo clássico. Analisou-se, também, o grupo de
pacientes cuja pHmetria esofagiana prolongada não foi compatível com refluxo
gastroesofágico ácido patológico e verificou-se correlação nula entre os
escores do QS-DRGE e os de Johnson e DeMeester. Sabe-se que a correlação entre
os sintomas da DRGE e a intensidade do refluxo gastroesofágico é pobre(13).
Possivelmente, a variabilidade individual quanto à sensibilidade ou à percepção
do esôfago ou dos órgãos adjacentes ao refluxo ácido possam ser fatores de
confusão e contribuam para a ausência de correlação.
Entretanto, a fácil compreensão pelos pacientes das perguntas do presente
questionário, a rapidez no seu preenchimento e sua reprodutibilidade sugerem a
sua utilidade na avaliação antes e após estudos com intervenção farmacológica,
endoscópica ou cirúrgica na DRGE em língua portuguesa.
Em artigo de revisão sobre qualidade de vida, YACAVONE et al.(16) descreveram e
comentaram questionários disponíveis para o uso em pacientes com enfermidades
gastroenterológicas e submetidos ao processo de validação. Para a DRGE o
questionário "Qualidade de vida no refluxo e na dispepsia", descrito por
WIKLUND et al.(15), composto pelos domínios emoção, vitalidade, sono,
alimentação e comportamento psicológico/social, direcionados a pacientes com
dispepsia e/ou sintomas de refluxo gastroesofágico, enquanto que o
"Questionário de qualidade de vida na doença péptica", de BAMFI et al.(1),
compreendendo os domínios ansiedade induzida pela dor, limitação social e
percepção de sintomas, para uso tanto em pacientes com úlcera péptica,
esofagite ou dispepsia funcional. A limitação desses instrumentos é,
basicamente, a sua construção e validação em um grupo de pacientes com doenças
heterogêneas. A "Escala de qualidade de vida relacionada à saúde na doença do
refluxo gastroesofágico", de VELANOVICH et al.(10), apesar de falhar na
abrangência de outros sintomas da DRGE, permite através da percepção do próprio
indivíduo, discriminar pacientes satisfeitos ou insatisfeitos com sua situação
de saúde após intervenção cirúrgica.
A maioria dos pacientes submetidos simultaneamente ao questionário de
Velanovich e ao "SF-36" elegeu a escala de qualidade de vida relacionada à
saúde na DRGE como mais fácil e compatível com os seus sintomas(11).
Recente estudo publicado por JOHNSON et al.(7), aplicando o questionário de
Velanovich a pacientes submetidos ao implante endoscópico de Enteryx® para
tratamento da DRGE, observou significativa redução dos escores relacionados ao
sintoma pirose após 12 meses do implante e redução significativa do escore
referente ao domínio físico da saúde avaliado pelo questionário SF-36.
Importante limitação do presente instrumento é sua não abrangência dos chamados
sintomas atípicos ou extra-esofágicos, cuja prevalência tem passado a ser cada
vez mais reconhecida(8).
CONCLUSÃO
No presente estudo, o questionário de sintomas para a doença do refluxo
gastresofágico, o QS-DRGE, apresentou validade de face, excelente
reprodutibilidade, foi de fácil compreensão e rapidamente respondido. É
necessário testar o presente questionário na língua portuguesa em diferentes
grupos populacionais para aferir sua validade externa à presente pesquisa.