Alterações da motilidade esofagiana em pacientes cirróticos com varizes de
esôfago não submetidos a tratamento endoscópico
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO E OBJETIVOS
A cirrose hepática é uma hepatopatia crônica que pode levar a complicações em
diversos sistemas do organismo. Entre elas destaca-se a hipertensão porta, que
propicia a formação de varizes gastroesofagianas, desenvolvidas por 50% a 60%
dos pacientes(4). A presença de varizes se correlaciona com o estágio de
doença, sendo fonte potencial de sangramento e a principal causa de morte(19).
É extremamente importante conhecer os fatores que predispõem ao sangramento e
intervir, se possível, buscando redução de mortalidade. Os fatores preditivos
já conhecidos são a presença de varizes de grande calibre, a gravidade da
hepatopatia e a persistência do consumo de álcool(8, 19), além de fatores
locais de diagnóstico exclusivamente endoscópico(4). A presença de esofagite,
sobretudo na sua forma erosiva, tem sido implicada no maior risco de
sangramento, embora não de forma conclusiva(16). Sabe-se hoje, entretanto, que
50%-70% dos pacientes com doença do refluxo gastroesofágico (DRGE), embora
sintomáticos, não apresentam a lesão de mucosa, sendo acometidos de doença do
refluxo não-erosiva (DRNE) ou endoscopicamente negativa(12).
A DRGE é uma doença da motilidade em que muitos fatores estão envolvidos, entre
eles ressalta-se a existência de distúrbios motores associados, importantes
dentro da sua fisiopatologia, uma vez que, ao dificultarem a depuração do ácido
refluído, contribuiriam para as lesões da mucosa e complicações da doença(29,
33). Entre os distúrbios de motilidade que podem estar associados com DRGE,
destacamos a motilidade esofagiana ineficaz, alteração motora mais
freqüentemente encontrada e, menos comumente, o esôfago em quebra-nozes e o
espasmo esofagiano difuso(29).
Os distúrbios motores primários do esôfago, dos quais fazem parte as
anormalidades acima referidas, manifestam-se também por disfagia funcional(14)
e dor torácica não-cardíaca(1, 31, 39), sendo que a motilidade esofagiana
ineficaz é um dos principais achados nesses grupos de pacientes.
Na literatura há poucos estudos que descrevem a motilidade esofagiana em
cirróticos com varizes de esôfago não submetidos a tratamento endoscópico(17,
45). Entretanto, nenhum deles descreve a prevalência das alterações motoras
neste grupo de pacientes e seus possíveis fatores preditivos, importantes na
tentativa de se compreender qual o papel destes distúrbios nesta população.
Assim, este trabalho teve como objetivos: avaliar a prevalência dos distúrbios
de motilidade esofagiana (DME) e, entre eles, da motilidade esofagiana
ineficaz, nos pacientes com cirrose hepática, com varizes esofagianas, não
submetidos a terapêutica endoscópica e se estas alterações têm relação com a
presença de sintomas, refluxo anormal, existência de ascite, calibre das
varizes ou gravidade da cirrose.
PACIENTES E MÉTODOS
Pacientes
Este estudo foi aprovada pela Comissão de Investigação Científica do Hospital
Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(HUCFF-UFRJ).
Avaliou-se de maneira prospectiva, 74 pacientes com diagnóstico clínico-
laboratorial ou histológico de cirrose hepática, acompanhados no ambulatório de
fígado do HUCFF-UFRJ. Todos apresentavam varizes de esôfago, documentadas por
endoscopia digestiva alta (EDA) e nenhum havia sido submetido a tratamento
endoscópico. Todos os pacientes assinaram o termo de consentimento livre e
esclarecido.
Métodos
Avaliação clínica ' Os pacientes foram submetidos a avaliação clínica, que
consistiu em preenchimento de um questionário padronizado, contendo dados
demográficos, tempo de diagnóstico e etiologia da cirrose. O diagnóstico de
cirrose hepática foi baseado na existência das complicações clínicas como
ascite, encefalopatia portossistêmica, resultados de métodos complementares
(EDA revelando varizes de esôfago e ultra-sonografia abdominal com Doppler,
demonstrando hipertensão porta) e em 47 pacientes (63,5%) por biopsia hepática.
A etiologia da cirrose foi considerada alcóolica, quando a ingesta diária era
maior que 80 g no sexo masculino e 40 g no sexo feminino(20), pelo vírus C,
quando o anti-HVC era positivo, pelo vírus B, quando o HBS-Ag era positivo(41,
43), hemocromatose, quando a saturação de transferrina se encontrava acima de
50%, sorologias virais negativas e biopsia hepática com depósitos de ferro pela
coloração de Pearls(11), auto-imune, quando os auto-anticorpos (anti-LKM,
antimúsculo liso e FAN) eram positivos e sorologias virais negativas, cirrose
biliar primária, quando havia anticorpo antimitocôndria positivo e clínica
compatível com colestase intra-hepática, cirrose biliar secundária, quando
havia evidência demonstrada de obstrução extra-hepática nos métodos de imagem '
ultra-sonografia abdominal e/ou tomografia computadorizada. A classificação de
Child-Pugh(19) foi utilizada para a avaliação da gravidade da cirrose. O exame
físico foi realizado pelo mesmo observador (PPF), sendo descritos sinais
periféricos de insuficiência hepática, quando presentes (eritema palmar,
telangiectasias, ginecomastia) e a ascite classificada em: leve, moderada e
acentuada(51). A encefalopatia hepática foi considerada presente quando havia
flapping, inversão do ciclo sono-vigília, irritabilidade ou alteração de humor,
confusão mental e/ou comportamento inadequado(32).
Avaliou-se, também, a presença de sintomas esofagianos, como disfagia
(dificuldade no transporte do bolo alimentar até o estômago, ocorrida após o
ato da deglutição), dor torácica (dor retrosternal espontânea ou desencadeada
por alimentos, em aperto ou queimação, com ou sem irradiação para a região
cervical, mandíbula ou dorso) e de sintomas típicos de DRGE, como a pirose
(sensação de queimação retrosternal ascendente) e/ou regurgitação (retorno do
conteúdo líquido e amargo para a faringe e/ou cavidade bucal).
Exames complementares ' Os pacientes foram submetidos a EDA, esofagomanometria
e, em 55 deles, foi também realizada a pHmetria esofagiana prolongada.
Endoscopia digestiva alta (EDA) ' Os exames foram realizados com o paciente em
jejum após anestesia tópica da orofaringe com lidocaína spray a 10%, sob
sedação, com diazepam endovenoso em doses variáveis entre 5-10 mg, seguindo a
técnica habitual do Setor de Métodos Especiais do Serviço de Gastroenterologia
do HUCFF-UFRJ.
As varizes esofagianas (VE) foram classificadas como de pequeno calibre
(pequenas e retilíneas ' V1), médio calibre (tortuosas, ocupando menos de 1/
3 do lúmen - V2) e grosso calibre (tortuosas, ocupando mais de 1/3 do lúmen '
V3 )(6) e assinalada a presença de varizes gástricas. Gastropatia hipertensiva
foi definida pela presença de fino salpico de coloração rosa ou escarlatina e/
ou fino padrão reticular branco, separando áreas de mucosa edemaciada e
avermelhada (padrão em mosaico) e ou pontos vermelhos difusos(46). Sinais de
esofagite, quando presentes, foram descritos conforme a classificação de
SAVARY-MILLER(49): grau I - erosões não-confluentes, grau II - erosões
confluentes mas não-circunferenciais, grau III - erosões confluentes e
circunferenciais, e grau IV - complicações como úlceras, estenose ou esôfago de
Barrett. A hérnia de hiato por deslizamento foi definida quando a junção
esôfago-gástrica situava-se 2 cm ou mais acima da impressão diafragmática.
Esofagomanometria (EMN) ' Foram empregados dois tipos de equipamentos para a
realização dos exames manométricos: 1. Sistema de perfusão, utilizando cateter
de polivinil de oito lúmens, diâmetro total de 4,5 mm. As aberturas do cateter
são ligadas a transdutores externos de pressão (MX860, MEDEX Inc) e perfundidas
durante o exame por uma bomba de perfusão capilar-hidráulica (Biomedics,
Califórnia, EUA), a uma velocidade de 0,6 mL/minuto. As pressões captadas pelos
transdutores foram registradas por um polígrafo (PC POLYGRAF VIII, Synectics
Medical), convertidas em informações digitais e transferidas para um
microcomputador (tipo PC, modelo 486). 2.Sistema com cateter de transdutores em
estado sólido (CTES). As pressões por eles captadas foram registradas em
polígrafo SANHILL ' EUA e transmitidas de maneira semelhante ao anterior. Os
exames foram submetidos a revisão posterior pelo mesmo examinador, empregando-
se o software Polygram, versão 4.2 para o sistema de perfusão e Sandhill
Bioviews para o sistema de CTES(9).
O paciente se apresentava para o exame em jejum de 4 horas. Em uma das narinas
foi feita anestesia tópica com lidocaína gel, após o que se introduziu o
cateter até o estômago. Um sensor de temperatura foi colocado em uma das
narinas para registro da respiração, e outro em um dos lados da cartilagem
cricóide para registro da deglutição, no caso de emprego do sistema de
perfusão.
O exame era, então, iniciado com o estudo do esfíncter inferior do esôfago
(EIE). Utilizou-se a técnica de retirada lenta do cateter, com deglutição de 4-
6 goles de 3-5 mL de água para estudo dos relaxamentos do EIE. O corpo
esofagiano foi estudado com as quatro aberturas proximais do cateter de
perfusão ou com os três transdutores em estado sólido, o mais distal de ambos,
posicionado 3 cm acima do limite superior do EIE e feitas 10 deglutições de 3-
5 mL de água, com intervalos de pelo menos 20 segundos. Após a realização do
exame, foram feitos cálculos executados pelo aplicativo. A pressão de repouso
do EIE foi expressa pela média dos quatro valores obtidos em orientação radial,
no caso do cateter de perfusão, ou com uma única medida, no caso do CTES,
pressões expiratórias máximas. No corpo esofagiano foram avaliadas amplitude,
duração, características e velocidade das contrações peristálticas, após as
deglutições de água.
Considerou-se normal, baseado nos valores obtidos em 32 voluntários saudáveis
estudados no Laboratório de Motilidade de Esôfago do HUCFF-UFRJ(39):
1. EIE: pressão basal do EIE: 17 ± 7 mm Hg, relaxamento completo (resíduo inferior
a 8 mm Hg) em pelo menos 80% das deglutições.
2. Corpo esofagiano: ondas peristálticas em pelo menos 80% das deglutições de
amplitude não inferior a 30 mm Hg e com média de amplitude esofagiana distal
(ondas peristálticas 3 e 8 cm acima do EIE) de até 140 mm Hg (média + 2 DP do
valor observado nos voluntários). Contrações simultâneas podem ser encontradas
em até 10% das deglutições.
Critérios utilizados para definição dos distúrbios de motilidade(5, 31):
Acalásia (AC) ' relaxamento incompleto do EIE, acompanhado de aperistalse do
corpo esofagiano.
Espasmo esofagiano difuso (EED) ' contrações simultâneas em 20% ou mais das
deglutições de água, ocupando dois ou três canais de registro consecutivos e
distais, intercaladas com peristalse normal. Caso as contrações simultâneas
situem-se em dois canais consecutivos, com peristalse acima e abaixo, utiliza-
se a denominação de espasmo segmentar.
Esôfago em quebra-nozes (QN) ' as ondas são peristálticas em esôfago distal,
mas apresentam amplitude elevada, com média superior a 140 mm Hg (2 DP acima da
média encontrada nos voluntários(38)).
EIE hipertenso (EIE hiper) ' pressão de repouso do EIE >32 mm Hg (2 DP acima
da média encontrada nos voluntários(38), com relaxamento normal).
EIE hipotenso (EIE hipo) ' pressão de repouso do EIE <10 mm Hg.
Motilidade esofagiana ineficaz (MEI) ' ondas de corpo esofagiano distal com
diminuição de amplitude (<30 mm Hg) ou falha de condução (ausência de onda) em
mais de 20% das deglutições(35).
Distúrbios motores inespecíficos (DMI) ' alterações manométricas que não se
enquadram nos DME acima citados e que podem vir juntas ou isoladamente. São
elas: ondas de triplo pico, ondas retrógradas, ondas de duração aumentada
(acima de 6 segundos) e/ou relaxamento incompleto isolado do EIE, em mais de
20% das deglutições de água.
pHmetria esofagiana prolongada ' Utilizou-se registrador portátil digital (MKII
ou MKIII Synectics), cateter de antimônio e eletrodo de referência externo. A
técnica do exame, descrita em detalhes previamente(36), consiste em anestesia
tópica de uma das narinas com lidocaína gel, introdução do cateter e
posicionamento 5 cm acima do EIE, já localizado pela esofagomanometria. O exame
é feito de forma ambulatorial, sendo o paciente instruído a anotar os horários
em que se deitou ou se levantou, e os sintomas que porventura ocorressem
durante o período de monitorização. Considerou-se refluxo anormal quando a
fração de tempo total em que o pH situou-se abaixo de 4 no período de exame,
estivesse acima de 4,5%(24).
Comparação entre as variáveis categóricas ' Os achados de esofagomanometria
anormal e do distúrbio motor motilidade esofagiana ineficaz foram comparados
com a presença de ascite, calibre das VE, refluxo anormal, sintomas
esofagianos, sintomas típicos de refluxo e grau de Child-Pugh da cirrose.
Análise estatística ' Foram utilizados o teste Qui-quadrado e teste exato de
Fischer. O nível de significância foi de 0,05.
RESULTADOS
Dados demográficos
Foram avaliados 74 pacientes, 42 (57%) pertenciam ao sexo masculino e 32 (43%)
ao sexo feminino. A média de idade observada foi de 54 anos, com extremos entre
17 e 85 anos.
Dados clínicos
A maioria dos pacientes (44, 61%) apresentava cirrose pelo vírus C. Em seguida,
a etiologia alcóolica em 15 (19%), vírus da hepatite B em 3 (4%) e as demais
etiologias agrupadas em 12 (16%). Em relação à classificação de Child-Pugh, 38
pacientes (51%) pertenciam ao grupo A, 29 ao grupo B (39%) e 7 ao grupo C
(10%). A ascite foi verificada em 35 pacientes (47%). Destes, 23 (65,7%)
apresentavam ascite leve, 5 moderada (14,3%) e 7 (20%) acentuada.
Quarenta pacientes (54%) apresentavam pelo menos um sintoma esofagiano e 34
(46%) eram assintomáticos. Sintomas típicos de DRGE (pirose e/ou regurgitação
ácida) foram observados em 32 pacientes (43%), sendo que pirose ocorreu em 28
(38%) e regurgitação em 18 (24%). Havia dor torácica em 12 (16%) e disfagia em
5 (7%), havendo pacientes com superposição de sintomas.
Métodos complementares
Endoscopia digestiva alta ' em relação ao calibre, as VE foram classificadas
como de pequeno calibre (V1), em 46 pacientes (61%), de médio calibre (V2) em
24 (32%) e grosso calibre (V3) em 5 (7%) pacientes. Havia gastropatia
congestiva em 27 (37%) e varizes gástricas em 5 (7%).
A esofagite erosiva foi encontrada em três pacientes (4%), sendo grau I em dois
e grau III de SAVARY-MILLER(49) em um paciente. Hérnia de hiato foi observada
em três pacientes (4%).
Esofagomanometria (EMN) ' a EMN foi anormal em 44 pacientes (60%). As
alterações motoras encontradas foram: motilidade esofagiana ineficaz: 21
pacientes (28%) (8 com EIE hipo e 1 com EIE hiper); distúrbios motores
inespecíficos: 8 pacientes (11%), todos com relaxamento incompleto do EIE; EIE
hipo isolado: 6 pacientes (8%); esôfago em quebra-nozes: 6 pacientes (8%); EIE
hiper: 2 pacientes (3%); espasmo esofagiano segmentar: 1 paciente (1,4%).
pHmetria esofagiana prolongada
Realizada em 55 pacientes, demonstrou refluxo anormal em 19 (35%).
Comparação entre as variáveis categóricas
Ascite x alterações manométricas ' a EMN foi anormal em 21 (54%) dos 39
pacientes sem ascite e em 23 (65,7%) dos 35 com ascite, sem significado
estatístico entre essas diferenças (P = 0,42). MEI estava presente em 8 (20,5%)
dos 39 pacientes sem ascite e em 13 (37%) dos 35 com ascite (P = 0,095).
Varizes esofagianas x alterações manométricas ' as Tabelas_1 e 2 demonstram que
não houve diferença significativa entre a presença de anormalidade manométrica
ou de MEI e o calibre das varizes (P = 0,99 e 0,13, respectivamente).
pHmetria prolongada x alterações manométricas ' a EMN foi anormal em 23 (64%)
dos 36 pacientes com pHmetria normal e em 10 (53%) dos 19 pacientes com
pHmetria anormal, não havendo diferença significativa entre o achado de
anormalidade manométrica e a presença de refluxo (P = 0,34).
MEI estava presente em 10 (27,7%) dos 36 pacientes com pHmetria normal e em 5
(26%) dos 19 com pHmetria anormal (P = 0,81).
Grau de Child-Pugh x alterações manométricas ' não houve relação entre a
gravidade da cirrose e a presença de alterações manométricas (P = 0,32 ' Tabela
3) ou de MEI (P = 0,9 - Tabela_4).
Sintomas esofagianos x alterações manométricas ' a EMN foi anormal em 23 (57%)
dos 40 pacientes com sintomas esofagianos e em 21 (61%) dos 34 pacientes sem
esses sintomas. Sintomas típicos estavam presentes em 17 (38,6%) dos 44
pacientes com manometria anormal e em 15 (50%) dos 30 com EMN normal. Não houve
diferença significativa entre o achado de anormalidade manométrica e a presença
de sintomas esofagianos ou típicos de refluxo (P = 0,71 e P = 0,33,
respectivamente).
MEI estava presente em 12 (30%) dos 40 pacientes com sintomas esofagianos e em
9 (26%) dos 34 sem esses sintomas (P = 0,74). Estava igualmente presente em 9
(28%) dos 32 pacientes com sintomas típicos de refluxo e em 12 (28,5%) dos 42
pacientes sem esses sintomas (P = 0,97%)
DISCUSSÃO
É importante que sejam elucidados os fatores envolvidos na morbimortalidade da
cirrose hepática, para que seja possível prevenir sua ocorrência. Dentro deste
contexto estão a hipertensão porta e as varizes esofagianas, estas com
possibilidade de sangramento e todas as suas conseqüências.
A presença ou não do RGE contribuindo para a rotura de VE é assunto
controverso. Estudos anatomopatológicos em pacientes que faleceram de HDA por
VE demonstraram erosões da mucosa esofagiana em 34%-69% dos casos examinados
(15). A avaliação de RGE exclusivamente pela presença de esofagite à EDA, não
diagnostica grande parcela de pacientes com DRGE. Cerca de 60% dos pacientes
com DRGE, não apresentam erosões esofagianas ou complicações, sendo denominados
de pacientes com doença do refluxo não-erosiva(12).
Há muito tempo é conhecida a associação entre a DRGE e os distúrbios de
motilidade. Sabe-se que quanto mais grave a doença, mais intensas as alterações
motoras(27).
O distúrbio de motilidade mais comumente associado à DRGE é a motilidade
esofagiana ineficaz, denominação proposta por LEITE et al.(35) em 1997, para
designar a maioria dos pacientes com DMI das classificações anteriores(5) e que
passou a fazer parte das mais recentes classificações de DME como distúrbio
motor hipocontrátil(52).
Pacientes com cirrose e varizes esofagianas sangrantes submetidos a terapêutica
endoscópica, podem apresentar anormalidades motoras esofagianas como
conseqüência. Entretanto poucos trabalhos relatam as anormalidades observadas
nos pacientes com cirrose e VE sem intervenção endoscópica(16, 17, 45). Há
descrição de redução da amplitude das ondas peristálticas, aumento de sua
duração(45) e retardo do tempo de trânsito esofagiano(17), o que poderia,
teoricamente, contribuir para a redução da depuração esofagiana de ácido
refluído. Isso facilitaria lesão de mucosa como fator precipitante de
hemorragia, uma vez que tem sido demonstrado refluxo anormal por pHmetria
esofagiana prolongada, em parcela expressiva dessa população(3, 42, 50). Não se
tem conhecimento da prevalência dessas alterações e dos diferentes DME de
definição já estabelecida nesse grupo de pacientes. Da mesma forma, se haveria
fatores preditivos para a sua existência, daí o motivo da realização deste
estudo.
No presente estudo, a EMN foi anormal em 44 dos 74 pacientes (60%), sendo a
MEI, o DME mais freqüente (28%). LEITE et al.(35) demonstraram maior exposição
ácida na posição supina e maior tempo de depuração esofagiana à pHmetria
prolongada em pacientes com MEI do que o observado em indivíduos normais e
aqueles com DME espásticos(10). Correlacionaram, então, a MEI à presença de
DRGE. Outros estudos também ligaram a MEI a maior exposição ácida tanto em
posição supina, como ereta e o retardo de depuração ácida esofagiana quando
comparados com pacientes sem MEI(2, 13, 18, 22).
A prevalência de MEI é maior em pacientes com DRGE complicada, como o esôfago
de Barrett, do que nas formas erosiva e não-erosiva da doença e controles
assintomáticos. Nesses últimos foi encontrada prevalência de 10%(37).
Outros autores, entretanto, contestam a importância da MEI como marcador da
DRGE (55). Sugere-se que a MEI poderia se unir às anormalidades funcionais
associadas com a DRGE, parece ter seu papel fisiopatogênico, mas poderia não
ser seu marcador específico(28).
A MEI é encontrada também em pacientes com outras queixas esofagianas, como
disfagia(14) e dor torácica(31, 39). Em uma grande série de pacientes com DMI,
95% dos quais apresentando MEI, a pirose foi a queixa principal, seguida por
dor torácica e disfagia(44). Portanto, a MEI é achado comum em pacientes com
queixas esofagianas, sendo ou não ligadas à DRGE.
Os distúrbios espásticos (QN, espasmo esofagiano segmentar e EIE-hiper)(10)
foram encontrados em nove pacientes (12%), sendo o mais freqüente o QN. A
prevalência destas anormalidades em portadores de sintomas esofagianos como um
todo, é relativamente pequena, porém têm sido observadas em pacientes com dor
torácica não-cardíaca e disfagia(14, 31, 39). O QN tem significado incerto(30),
sendo considerado por alguns, como um epifenômeno ou marcador de doença, mais
do que sua causa(25, 54). Os DMI não-MEI, foram encontrados em sete pacientes
(9,5%), todos com relaxamento incompleto do EIE. Poder-se-ia especular se a
presença mecânica de VE influenciaria o registro do relaxamento do EIE.
Entre os pacientes avaliados no presente estudo, 54% apresentavam sintomas
esofagianos, sendo a pirose o mais comum (38%), sem correlação com anormalidade
manométrica ou com o achado de MEI. Não foi possível a avaliação de cada
sintoma em separado, devido ao pequeno número que resultaria de cada variável.
O estudo comparativo com relatos de outros trabalhos é difícil, pois não se
conhece a prevalência desses sintomas nestes pacientes.
Estudo de 51 pacientes cirróticos com varizes esofagianas demonstrou refluxo
anormal à pHmetria prolongada em 37% dos mesmos. Queixas típicas de refluxo
foram preditivas do encontro de pHmetria alterada, levando a se concluir sobre
a importância da procura desses sintomas neste grupo de pacientes(50).
No presente estudo a existência de ascite em 47% dos pacientes, também não
esteve relacionada com a presença de alterações manométricas ou de MEI. Aumento
de duração de ondas peristálticas e maiores pressões intragástricas foram
relatadas em cirróticos com ascite intensa, quando comparados com cirróticos
sem ascite(7). Essas anormalidade desapareceram após paracentese, sugerindo que
pudessem ser resultado de um componente mecânico(7). A maioria dos pacientes
desta série apresentava ascite de grau leve, o que impossibilitou análise
estratificada em relação à intensidade da mesma.
Poucos estudos empregaram a pHmetria em pacientes cirróticos com VE. AHMED et
al.(3) estudaram por meio de pHmetria, 25 pacientes cirróticos, comparando os
resultados aos de 30 indivíduos não-cirróticos, mas com sintomas sugestivos de
DRGE. A pHmetria foi anormal em 64% dos pacientes cirróticos, todos
assintomáticos, semelhante aos 70% de pHmetria alterada observada no grupo com
sintomas sugestivos de DRGE e sem doença hepática. Nenhuma diferença foi
encontrada em relação à presença de refluxo e o calibre das varizes.
No presente trabalho havia refluxo anormal em 35% do 55 pacientes que
realizaram a pHmetria. Entretanto, não houve correlação entre o refluxo e as
alterações motoras em geral ou MEI, ao contrários dos estudos citados
anteriormente(29, 35, 37, 40), sugerindo que nesse grupo de pacientes há outros
fatores envolvidos. Esofagite erosiva foi pouco comum (4%), semelhante ao
observado em estudos prévios(3, 47), assim como hérnia de hiato (4%), diferente
da população que refere pirose cronicamente, na qual se encontra esofagite em
pelo menos 30% dos pacientes e maior prevalência de hérnia de hiato(33). POLISH
et al.(47) demonstraram que, apesar de apenas 9 (7,5%) dos 120 cirróticos com
VE estudados apresentarem hérnia hiatal, 8 destes (89%), cursaram com
sangramento varicoso e entre estes últimos, 57% apresentavam esofagite à EDA.
Tais observações implicariam na pesquisa rigorosa de hérnia hiatal nos
cirróticos com VE, uma vez que tem sido demonstrada sua importância em retardo
do esvaziamento esofágico, aumentando o tempo de contato do ácido com o esôfago
(23). A menor prevalência de esofagite erosiva nesses pacientes com cirrose e
VE não tem uma justificativa definida. Poder-se-ia interrogar se as varizes de
esôfago atuariam como barreira mecânica, em alguma fase, embora ocorra a
exposição ácida, como demonstrado pela pHmetria. Fatores intrínsecos da mucosa
esofagiana na cirrose e hipertensão portal, como mediadores, poderiam
contribuir para esse achado.
O estágio da cirrose também não se correlacionou com a presença de DME, o mesmo
ocorrendo com o calibre das varizes. A maioria dos pacientes (51%) foi
classificada como Child-Pugh A e também a maioria era de pacientes com VE de
pequeno calibre (61%). Os pacientes com VE de grosso calibre eram poucos, bem
como aqueles em estágio de cirrose Child-Pugh C, devido à dificuldade para a
realização voluntária de dois exames invasivos em pacientes freqüentemente
descompensados. Não se sabe se a presença de alterações motoras poderia se
correlacionar com VE de médio e grosso calibre, caso houvesse maior número de
pacientes. Portanto, a análise correlacionando o calibre das varizes, o estágio
da cirrose e a presença de ascite pode ter sido prejudicada. Os resultados não
foram comparados com o grupo controle de cirróticos sem VE, pela dificuldade na
obtenção de tal amostra de pacientes.
Estudo de 1993 revelou amplitude reduzida da peristalse primária quando havia
VE de médio e grosso calibre, em relação à observada em voluntários saudáveis
(23).
Outro estudo realizado em 1989, também demonstrou motilidade esofagiana
alterada, tais como redução da amplitude das contrações na metade inferior do
órgão, aumento da duração das ondas e da velocidade da peristalse primária, em
cirróticos com VE de médio e grosso calibres. Entretanto, não houve diferenças
entre as alterações observadas em pacientes com cirrose sem VE e um grupo
controle saudável, sugerindo que as alterações motoras seriam dependentes das
varizes e não da cirrose(45). As varizes poderiam exercer efeito mecânico na
motilidade do esôfago e na integridade do EIE, resultando em alterações que
poderiam influenciar os mecanismos de clareamento esofágico, gerando lesão
mucosa e eventual sangramento(17).
Nesta população com amostra significativa de pacientes e a maior em termos de
estudo prospectivo sobre o assunto, em que a presença de DME foi importante
(60%), os sintomas típicos e atípicos freqüentes (54%), não se demonstrou
qualquer fator preditivo para a detecção de DME ou MEI. É possível que
alterações mais sutis, verificadas nas médias de amplitude de onda
peristáltica, duração e velocidade, comparadas com as encontradas no grupo
controle assintomático estudado pelo mesmo laboratório(38), pudessem se tornar
aparentes e com fatores preditivos eventuais. Entretanto, não foi objetivo
deste estudo, uma vez que se propôs a estudar a prevalência das alterações
motoras, já amplamente descritas.
Quais seriam as razões da alta prevalência de DME encontrada no presente
estudo, em especial a MEI? Em primeiro lugar, é lícito que se interrogue qual
seria a prevalência dessas alterações em indivíduos assintomáticos.
Desconhecem-se estudos neste sentido, porém as anormalidades manométricas aqui
relatadas são definidas a partir dos valores observados em grupos controles
assintomáticos(38, 48) e cujas características estão bem estabelecidas na
literatura(5, 31, 54). Não se sabe a real prevalência da MEI em indivíduos
assintomáticos, sendo referidos achados compatíveis com este DME em cerca de
10%(26, 37).
Recentemente, o óxido nítrico (ON) assumiu papel importante, como substância
vasodilatadora, na exacerbação da hipertensão porta em pacientes com cirrose, e
trabalhos têm sido realizados no intuito do maior conhecimento e aplicação
clínica desta substância(51). Seu efeito na peristalse esofagiana e EIE começa
a ser avaliado. O ON diminui a amplitude da onda peristáltica no esôfago distal
e a velocidade da onda peristáltica no esôfago proximal, sendo implicado na
etiopatogenia do espasmo difuso(34).
O ON também está envolvido no relaxamento transitório do EIE, fator causal cada
vez mais importante na fisiopatologia da DRGE(21).
Na cirrose hepática, como há excesso de ON, este poderia ser o fator causal
para o desenvolvimento de refluxo. O refluxo anormal ocorreria, independente de
quaisquer fatores associados, como varizes de esôfago e/ou presença de ascite.
De forma semelhante, a maior prevalência de DME, principalmente o do tipo MEI,
que se caracteriza por redução de amplitude das ondas e falhas de condução,
poderia ser relacionada à maior quantidade de ON existente na circulação dos
pacientes cirróticos. Sabe-se que à medida que a cirrose evolui, a
vasodilatação aumenta e, mais comumente, ocorre piora da hipertensão porta, as
VE aumentam de calibre e a ascite surge ou se agrava. Esta última, pelo aumento
da pressão intra-abdominal poderia ter importância no desencadeamento de
refluxo, uma vez que já foi demonstrado que a redução da pressão abdominal
reduz o refluxo em cirróticos com ascite(42). Todos esses fatores e
conseqüências da cirrose, provavelmente, estão interligados numa cadeia de
eventos que leva os pacientes à hemorragia digestiva alta e ao óbito.
CONCLUSÕES
Foi elevada a prevalência de DME, principalmente a MEI, em cirróticos
portadores de varizes de esôfago virgens de tratamento. Embora este estudo não
tenha trazido a identificação de fatores preditivos de DME nestes pacientes,
coloca em perspectiva as implicações potenciais dessas anormalidades, já que
foram achado comum nesta população. A associação da MEI com VE necessitaria de
estudo em grupo controle sem VE mas, sem dúvida, pode-se identificar nos
cirróticos com VE uma população de risco para DME. Todos estes achados reforçam
a necessidade de maior esclarecimento sobre a fisiopatologia dos DME e da MEI e
sua relevância clínica para os cirróticos.
AGRADECIMENTO
Os autores agradecem a Ronir Raggio Luiz, Professor Assistente da UFRJ pela
cuidadosa análise estatística.