Análise das impressões digitais de DNA e de fatores de virulência de linhagens
de Helicobacter pylori
ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE
Análise das impressões digitais de DNA e de fatores de virulência de linhagens
de Helicobacter pylori
Analysis of molecular fingerprint and virulence factors of Helicobacter pylori
strains
Anita P. O. Godoy; Maíra C. B. Miranda; Luciana C. Paulino; Sergio Mendonça;
Marcelo Lima Ribeiro; José Pedrazzoli Jr.
Unidade Integrada de Farmacologia e Gastroenterologia ' UNIFAG, Universidade
São Francisco, Bragança Paulista, SP
Correspondência
INTRODUÇÃO
Helicobacter pylori tem sido associado à etiopatogenia de diversas doenças do
sistema digestório(35). Atualmente, o microrganismo é considerado o mais
importante agente causador de gastrite, fator essencial na gênese da úlcera
péptica e fator de risco para o desenvolvimento de câncer gástrico(19). Há,
ainda, evidências de sua associação com o linfoma MALT (linfoma do tecido
linfóide associado à mucosa) e com o linfoma não-Hodgkin gástrico(15).
Isolados clínicos obtidos de diferentes pacientes têm mostrado grande
diversidade genética(25, 34). Nesse sentido, estudos baseados nas seqüências
genômicas de duas cepas de H. pylori (26695 e J99) revelaram que 22% dos genes
não são essenciais e aproximadamente 6% são únicos a cada linhagem(7, 50). Além
disso, é notável a variação na seqüência de alguns genes ou regiões, como a
ilha de patogenicidade cag (PAI)(14, 43) e genes de resistência a drogas(43,
47).
Nos últimos anos vem se intensificando a pesquisa de marcadores de
patogenicidade na tentativa de detectar linhagens bacterianas associadas a cada
uma das doenças. O antígeno CagA é um fator de virulência do H. pylori que é
codificado pelo gene cagA. A maioria das funções desempenhadas pelas proteínas
produzidas por cagPAI ainda não foi determinada, no entanto, sabe-se que sua
presença está associada ao aumento da secreção de interleucina 8 (IL-8), o que
é importante para a quimiotaxia e para a ativação de neutrófilos. O cagPAI
também é responsável pela remodelação da superfície celular e formação de
pedestal, fosforilação de tirosina das células do hospedeiro, ativação do fator
transcripcional AP-1 e expressão de protooncogenes c-fos e c-jun por ativação
da cascata quinase ERK/MAP(23, 52, 53). Por essa razão, a produção dessa
proteína tem sido associada à progressão das doenças gastrointestinais(8).
Parsonnet et al.(41) mostraram que pacientes infectados por linhagens mais
virulentas (cagA+) teriam um risco 3 vezes maior de desenvolver câncer
gástrico.
A produção da citotoxina vacuolizante (VacA), codificada pelo gene vacA, induz
à formação de vacúolos nas células epiteliais(12). Além disso, a VacA produz
efeitos prejudiciais diretos nas células como, a alteração do citoesqueleto, a
eliminação da proliferação celular, a migração e a apoptose(13, 40). Outros
efeitos observados foram a inibição, a ativação e proliferação dos linfócitos
T, e a modulação da citocina responsável pela modulação das células T sendo,
assim, uma potente toxina imunodepressora, tendo como alvo o sistema imune
adaptativo(22). Estudo recente(61) demonstrou que isolados clínicos infectados
por linhagens com genótipo vacA s1m1 tem a capacidade de mediar a formação de
canais ativos e a intoxicação celular, que resulta em redução do potencial
transmenbranar das mitocôndrias e liberação de citocromos C.
O estudo de marcadores genéticos e técnicas de genotipagem bacteriana são
importantes ferramentas para análises epidemiológicas, patogênicas e de
susceptibilidade bacteriana. As técnicas mais freqüentemente usadas para as
tipagens de isolados de H. pylori são "restriction fragment length
polymorphisms" (PCR-RFLP), "random amplified polimorphic" DNA-PCR (RAPD) e
ribotipagem, porém seus desempenhos não têm sido avaliados com perspicácia(10).
O RAPD(62) tem sido aplicado para a distinção entre os isolados de H. pylori,
entretanto existem problemas quando a estabilidade e reprodutibilidade da
técnica, podendo apresentar amplificação instável para fragmentos pequenos,
especialmente por não apresentar bandas visíveis(28).
Neste estudo avaliou-se o perfil genético dos isolados clínicos de H. pylori
através da as impressões digitais de DNA obtido pela técnica de RAPD-PCR e
comparou-se com as manifestações clinicas dos pacientes e também com a
genotipagem dos fatores de virulência vacA e cagA, além de associar os fatores
de virulências com as doenças manifestadas nos pacientes envolvidos.
MÉTODOS
Casuística
As amostras de H. pylori pertencem ao banco de linhagens da Unidade Integrada
de Farmacologia e Gastroenterologia (UNIFAG) da Universidade São Francisco de
Bragança Paulista, SP e foram obtidas de biopsias coletada de voluntários
participantes de estudos anteriores previamente aprovados pelo comitê de ética
médica (CEP-USF).
Foram incluídas no presente estudo 112 amostras provenientes de pacientes com
diferentes laudos endoscópicos: gastrite (n = 41), esofagite de refluxo (n =
14), úlcera gástrica (n = 19) e úlcera duodenal (n = 38). Dentre os isolados
clínicos, 64 eram de pacientes do sexo masculino com idades variando entre 21 a
83 ( = 39,2 e DP = 13,41) e 48 do
feminino, com idades entre 20 e 87 anos (
= 47,58 e DP = 16,55).
Cultivo em meio sólido
As linhagens estocadas foram reativadas em meio seletivo BHI agar (Merck,
Darmstadt, Alemanha), suplementada com 5% sangue de carneiro desfibrinado, 6
mg/L vancomicina (Sigma Aldritch Chemie, St Louis, MO, EUA), 20 mg/L ácido
nalidíxico (Sigma Aldritch Chemie), 10 mg/L anfotericina B (Sigma Aldritch
Chemie), 40 mg/L TTC (Sigma Aldritch Chemie) e incubadas em condições de
microaerofilia por 3-5 dias, como previamente descrito(37, 44).
Análises moleculares
A partir da cultura bacteriana, o DNA genômico dos isolados clínicos foram
extraídos usando o protocolo de fenol-clorofórmio, adaptado por FOX et al.(20).
A PCR(49) foi realizada com 25 µl de volume final, contendo 100 ng de DNA
genômico, 50 pmol de cada iniciador, 1.0 mmol/L de cada dNTPs (InvitrogenTM
Life Technologies, Alemeda, CA, EUA), 1,5% de MgCl2, 2,5 unidades de enzima Taq
DNA Polimerase (InvitrogenTM Life Technologies) e tampão de reação para a
enzima. A identificação da bactéria foi confirmada através amplificação do gene
que codificou o RNA r16S e glmM usando iniciadores específicos para cada um dos
genes(6, 29). O gene cagA foi analisado através dos iniciadores D008 e R008(11)
. Para a amplificação da região m do gene vacA foram usados os iniciadores VA3-
R e VA3-F para amplificar o tipo m1 e VA4-R e VA4-F para o tipo m2 e para a
região s os iniciadores usados foram VA1-R e VA2- F(54). As impressões digitais
de DNA genômicas dos isolados clínicos estudados foram obtidas através da
técnica de RAPD-PCR. A reação foi feita com 25 µl de volume final contendo 2,5
µl de DNA genômico, 20 rmol de iniciador, 200 µM de cada dNTP, 1,5% de MgCl2,
2,5 unidades de enzima Taq DNA polimerase e tampão de reação para a enzima. A
reação foi realizada em triplicata para garantir a reprodutibilidade do método.
Três iniciadores universais, considerados altamente discriminativos (1281,
D11344 e D9355)(1)foram usados para obtenção dos diferentes padrões de bandas.
Os produtos amplificados foram analisados por meio de eletroforese em gel de
agarose 2%.
Análise dos dados
A possível associação entre os genes vacA e cagA do H. pylori com as diferentes
doenças foi analisada por meio do teste Qui-quadrado (c2) com correção de Yates
e Exato de Fisher com o auxilio do "software" Biostat 2,0. Os resultados foram
considerados estatisticamente significantes para P <0,05. A possível associação
entre o padrão de bandas oriundas do RAPD da bactéria com os fatores de
virulência e as doenças foi analisada com o auxilio do "software" GelCompair
4.1 (Applied Maths, Kortrijk, Bélgica).
RESULTADOS
Apenas amostras de pacientes com monoinfecção pelo H. pyloriforam incluídas
neste estudo. Deste modo, 17 amostras com genótipo múltiplo foram excluídos das
análises, restando 95 isolados clínicos (33 de pacientes com gastrite, 12 com
esofagite, 17 com úlcera gástrica e 33 com úlcera duodenal).
A genotipagem para vacA foi determinada por PCR, o alelo s1 foi identificado em
amostras obtidas de 58 pacientes (61%) enquanto que isolados clínicos de 37
pacientes apresentaram o alelo s2 (39%). Para o polimorfismo da região mediana
do gene, em 26 (27%) foi possível detectar o alelo m1, e o m2 foi identificado
em amostras obtidas de 69 pacientes (73%). Para a associação em mosaico dos
alelos s e m, obtiveram-se taxas de 27% (26/95), 34%(32/95) e 39% (37/95) para
os genótipos s1m1, s1m2 e s2m2, respectivamente (Tabela_1).
Comparando-se as diferentes manifestações clínicas (gastrite, esofagite, úlcera
gástrica e úlcera duodenal) com os genótipos de vacA através do teste c2,
observou-se associação significativa entre úlcera duodenal (UD) e o mosaico
alélico vacA s1m1 (c2=10,41; P = 0,005; OR = 4,1; 95% CI = 1,57 < µ <10,6),
devido a maior freqüência do alelo s1 (c2 = 10,16; P = 0,003; OR = 12,14; 95%
CI = 3,35 < µ <44,02). Por outro lado, foi detectada também uma associação
entre o alelo s2 e a esofagite (c2 = 5,65; P = 0,038; OR= 5,89; 95% CI = 1,47 <
µ <23,5).
Em relação ao gene cagA foi possível detectar a presença deste gene em 68% (65/
95) das amostras. Quando se compara a presença desse gene com as doenças
estudadas, não foi observada associação significativa. Porém o genótipo cagA +
vacA s1m1 foi mais freqüentemente observado em pacientes com UD (c2 = 11,95; P=
0,0354; OR = 5; 95% CI = 1,87 < µ <13,37).
Para a obtenção das impressões digitais de DNA genômicas das linhagens
estudadas foi utilizado o RAPD-PCR, e com a ajuda do software GelCompair 4.1.
Foram realizados três ensaios em dias alternados, mostrando que os padrões de
banda se mantiveram iguais, sendo, assim, considerados estáveis. Sete
diferentes dendogramas foram construídos através da comparação do padrão de
bandas. Cada dendograma gerou dois agrupamentos distintos e totalmente
heterogêneos.
Ao comparar as doenças desenvolvidas pelos pacientes e a genotipagem de cagA e
vacA dos isolados clínicos com o agrupamento dos dendogramas, não foi possível
detectar associação significativa entre os grupamentos de nenhum dos sete
dendogramas construídos.
DISCUSSÃO
Algumas características das amostras de H. pyloriparecem estar associadas à
evolução da infecção para uma doença mais grave. Entre elas, alguns genótipos,
como alelos s1 e m1 de vacA e presença de cagA, têm sido considerados
marcadores de patogenicidade por estarem associados à produção e excreção de
citotoxina, à indução de lesão epitelial e à resposta inflamatória, mais
intensas(5, 12, 13, 23, 27, 40, 42, 52, 53, 55).
A distribuição geográfica dos alelos do vacA não é uniforme(56). A freqüência
do alelo vacA s1 observada neste estudo foi de 61%, sendo condizente com os
dados encontrados por esta mesma equipe em outros estudos e também com as
descritas na França, Itália, Canadá e Estados Unidos e inferior à encontrada em
países como Japão, México e África do Sul(26, 38, 46, 56, 58, 59). Por outro
lado, estudos demonstraram que a distribuição dos alelos m é mais homogênea e,
de maneira geral, metade das amostras é m1 e a outra metade é m2(56). No
entanto, no presente estudo a freqüência do alelo vacA m2 (73%) foi superior às
do tipo m1 (27%), como também foi observado em estudos anteriores(26, 46).
Estudos realizados anteriormente sugerem que o alelo m1 do gene vacA é
responsável por promover alterações histológicas devido a sua associação com a
degeneração epitelial, redução do muco e erosões microscópicas, contrastando
com o observado no alelo m2. Além disso, os alelos s1m1 associados à presença
de cagA aumentariam a inflamação tecidual e a migração neutrofílica(39).
Estudos realizados na década de 90 sugerem que o genótipo s1m1 possa ser usado
como marcador de amostras mais virulentas, em conformidade com o fato de que o
alelo s1 está relacionado à produção de maior quantidade da citotoxina
vacuolizante e que o alelo m1 está associado com produção de maior quantidade
da toxina(4). Neste estudo, foi observada associação entre genótipo s1m1 dos
isolados e presença de úlcera duodenal, confirmando resultados descritos para
amostras brasileiras e também de outras regiões mundiais(2, 4, 16, 17, 26, 27,
36, 46, 48, 55, 59).
A esofagite de refluxo é uma doença caracterizada por exposição anormal da
mucosa ao conteúdo ácido do estômago. Recentemente, alguns trabalhos mostram
que a infecção pelo H. pylori poderia ter um efeito protetor contra a doença
(17, 18, 33, 45, 57). De modo complementar, mostrou-se que pacientes infectados
por linhagens mais virulentas (cagA+, vacAs1) estariam inversamente associados
com o desenvolvimento da doença. Deste modo, pacientes infectado por tais
linhagens seriam protegidos contra complicações decorrentes do refluxo ácido
(17, 33, 45, 57). Algumas hipóteses têm sido propostas para explicar tal
fenômeno. Por um lado, postula-se que este efeito deva-se à redução da secreção
ácida gerada pela infecção por linhagens mais virulentas(51, 57), por outro
acredita-se que, além dos fatores de virulência da bactéria, alguns fatores
genéticos do hospedeiro devem contribuir nesta proteção(45). Na presente série,
detectou-se uma associação entre a presença de linhagens menos virulentas com
esta doença ao se comparar o genótipo s2 do gene vacA da bactéria com o
desenvolvimento de esofagite de refluxo, assim como observado por outros
autores(18, 32, 44, 57).
De forma semelhante ao que se observa para o vacA, a freqüência de amostras
cagA positivas são heterogêneas, variando de uma região geográfica para outra.
Em grande parte dos países da Europa ocidental e nos Estados Unidos, a
freqüência de amostras cagA positivas varia entre 59% e 75%(55, 60), na Itália
e em Portugal, as taxas são superiores a 80%(55) e, no México, praticamente
100% dos indivíduos apresentam-se colonizados por amostras que carreiam o gene
(38). No presente estudo, amostras cagA positivas foram identificadas em 68%
dos isolados, freqüência similar à observada em diversos países ocidentais e em
várias regiões do Brasil, com exceção de Marília, cidade do interior do Estado
de São Paulo, onde a taxa de amostras cagA positivas foi de apenas 48%(3, 16,
21, 26, 36, 46).
O genótipo cagA+ vacA s1m1 foi mais freqüentemente observado em pacientes com
úlcera duodenal de acordo com o reportado por outros autores brasileiros(3, 16,
21, 26, 36, 46). Essa relação entre os genótipos ainda é pouco conhecida.
Embora vários estudos tenham demonstrado a existência de uma relação entre cagA
e vacA, a razão pela qual esses dois elementos genéticos estão fortemente
associados não é clara mesmo porque eles não apresentam nenhuma ligação física
no cromossomo do H. pylori(9). Essa associação pode ser epidemiológica e/ou
evolutiva; é possível, ainda, que tais associações tenham uma base funcional
ainda não explicada.
O perfil genético (impressão digital de DNA) dos 95 isolados clínicos estudados
foi analisado através da técnica de RAPD-PCR. Essa técnica tem sido usada para
discriminar amostras de H. pylori associadas a diferentes doenças e com a
resistência bacteriana aos antimicrobianos usados na terapia de erradicação. O
RAPD tem capacidade discriminatória razoável e é eficaz para a genotipagem do
H. pylori em larga escala, mas a estabilidade desse método deve ser levada em
consideração, pois a reprodutibilidade interlaboratorial é muito baixa. BURUCOA
et al.(10), KUIPERS et al.31 e KIDD et al.(30) sugeriram que a técnica RAPD
pode ser estável e reprodutível desde que esteja altamente padronizada,
incluindo métodos criteriosos de preparo do DNA, o uso constante de polimerase
termoestável, os volumes e concentrações dos reagentes que nunca devem variar e
o procedimento adequado e padronizado do termociclador e do método de
visualização das bandas. Neste estudo todas as reações de RAPD foram repetidas
por 3 vezes em tempos diferentes e por operadores distintos para a garantia da
reprodutibilidade.
Os resultados de RAPD observados neste estudo mostraram que os agrupamentos dos
sete dendogramas construídos foram totalmente heterogêneos. A análise dos
padrões de bandas obtidos foi incapaz de identificar associação entre
agrupamento e potencial das doenças, estando de acordo com o observado por KIDD
et al.(30). Outro estudo realizado nos Estados Unidos obteve resultados
distintos onde, isolados clínicos provenientes de pacientes com UD foram
agrupados(24).
Não houve associação significativa entre os fatores de virulência e a
segregação dos dois agrupamentos de cada dendograma. Diferentemente do
observado por outro estudo, que sugere haver associação entre RAPD das
impressões digitais de DNA e as variações de vacA e a presença de cag PAI,
porém esse mesmo estudo falhou em associar a segregação dos agrupamentos com o
genótipo de iceA e da região m do gene vacA(30).
Os resultados desta casuística sugerem que RAPD das impressões digitais de DNA
realizados com os iniciadores 1281, D1134 e D955 não deveriam ser usados como
ferramenta para o estudo da virulência do H. pylori, sendo incapaz de associar
o padrão de bandas com as doenças e os genótipos de vacA e cagA, que tiveram
distribuição similar em ambos os agrupamentos dos dendogramas. Estes resultados
também reforçam a importância do gene vacA como um marcador de virulência do H.
pylori. A busca por novos marcadores é importante para o melhor entendimento da
patogenicidade causada pela presença do H. pylori.