Trajetória e percalços de uma sociedade médica de especialidade
EDITORIAL
Trajetória e percalços de uma sociedade médica de especialidade
Trajectory and disadvantage of an speciality medical society
Carlos Alberto Cappellanes
Presidente da SOBED, Gestão 2008-2010
A Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva - SOBED, que em 25 de julho
passado completou 35 anos de existência, constitui entidade civil, sem fins
lucrativos, de natureza associativa, organizada nacionalmente por entidades
estaduais e sub-estaduais, sendo filiada à Associação Médica Brasileira, à
Organização Mundial de Endoscopia Digestiva, à Sociedade Interamericana de
Endoscopia Digestiva e regida por estatutos em conformidade com a legislação em
vigor.
A diretriz principal, comum a todas as gestões, que sempre teve como objetivo o
desenvolvimento na área científica promovendo Congressos, Simpósios, Jornadas,
cursos, publicações, criação de centros de treinamento e residências médicas em
endoscopia digestiva, levou a SOBED à posição relevante que hoje ocupa, abrindo
portas para novas perspectivas dentro dessa importante especialidade
diagnóstica e terapêutica.
Neste processo evolutivo e dando sequência às conquistas obtidas, a atual
Diretoria Executiva da SOBED, que assumiu suas atividades em novembro de 2008
durante a Semana Brasileira do Aparelho Digestivo, tinha traçado seus objetivos
e metas, das quais muitas já foram cumpridas.
Ainda em Brasília, horas após nossa posse, fomos "atropelados" pela informação
de que o uso do glutaraldeído a 2% para desinfecção de endoscópios seria
suspenso. A suspensão devia-se ao surto de micobacteriose que atingira seu
patamar máximo em 2008, e tinha como agentes infectantes principais a M.
abcessus e a M. massiliense que, em ensaios científicos realizados, mostravam-
se resistentes à ação do produto, mesmo no tempo de esterilização preconizado
pelo fabricante (8 a 10 horas).
Ficou claro em toda a investigação realizada pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária - ANVISA, publicada em seu sítio, que as principais causas
do surto, que se arrastava desde o ano 2000, eram a limpeza insuficiente e o
uso indevido e inadequado do glutaraldeído a 2% nos instrumentais de cirurgia
por vídeo. Todo o instrumental é material crítico e precisaria, além da
fundamental limpeza adequada, ser submetido ao processo de esterilização e não
de desinfecção.
O único ponto em comum, entre os atos cirúrgicos causadores da micobacteriose e
os procedimentos endoscópicos realizados por vias naturais que inclui os atos
da endoscopia digestiva, otorrinolaringologia, ginecologia, urologia e
pneumologia, era o produto químico desinfetante.
Embora não houvesse até aquela data, como não há até hoje, casos notificados de
micobacteriose transmitadas por procedimentos endoscópicos realizados por vias
naturais, a proibição seria generalizada. Apesar da ANVISA não ter efetivado a
proibição em nenhum momento, as Secretarias de Saúde dos Estados de Santa
Catarina e a do Rio de Janeiro, a fizeram por períodos variáveis.
Os fatos relatados desencadearam ações da nossa Sociedade especialmente junto a
ANVISA, com início durante o próprio Congresso de Brasília e que continuaram
pelos meses subsequentes. Uma grande vitória foi dissociar nossos procedimentos
dos atos médicos cirúrgicos por vídeo, dando origem ao que hoje designamos de
Procedimentos Endoscópicos por Vias Naturais, terminologia adotada pela ANVISA
na RDC nº. 8 de fevereiro de 2009, da qual a SOBED foi a maior protagonista,
que exclui esses procedimentos do elenco de sanções impostas aos atos
cirúrgicos por vídeo.
O caminho percorrido revelou, entre muitos aprendizados, a situação em que se
encontram muitos serviços de endoscopia, especialmente os públicos, onde há
carências das mais diversas ordens e a fiscalização das vigilâncias municipais
ou estaduais fecham os olhos às evidências gritantes, enquanto atitudes
inversas são assumidas quando da fiscalização de serviços privados. Nesses, a
discriminação, e muitas vezes a falta de conhecimento, leva a exigências
descabidas e distantes do que é de fato necessário em prol da segurança do
paciente e do exercício da especialidade pelo médico.
Nesta edição dos ARQUIVOS de GASTROENTEROLOGIA há a apresentação de um trabalho
(1) que demonstra essa situação.
A fiscalização sobre o funcionamento dos serviços médicos é atribuição do
sistema de vigilância sanitária e dos conselhos de medicina. As sociedades de
especialidade não têm este poder, ficando limitadas à intermediação de
eventuais reclamações de seus associados que, como regra geral, não formalizam
as denúncias de irregularidades por receio de retaliações. Embora haja na SOBED
assistência individualizada ao médico associado, o nível de atuação mais eficaz
e abrangente se faz diretamente nas instituições governamentais ou
representativas de classe.
Em decorrência do trabalho anteriormente desenvolvido na ANVISA, a SOBED por
intermédio da sua comissão específica, participa ativamente do grupo de estudos
formado também por representantes das demais especialidades que atuam em atos
médicos endoscópicos por vias exclusivamente naturais, na confecção de proposta
de Resolução para estes serviços. Trabalho quase que totalmente concluído e
prestes a entrar em consulta pública, que embora não crie novas regras,
sintetiza as normas existentes e dá as diretrizes fundamentais para serviços de
qualidade.
Também fomos ao Conselho Federal de Medicina (CFM) para participar da
atualização do manual de fiscalização dos serviços médicos. Nesta reunião foram
colocadas as metas daquela Comissão do Conselho, entre as quais, a firme
intenção de atuação na melhora das condições de trabalho do médico tanto na
rede pública como privada. Por outro lado, tivemos oportunidade de colocar as
dificuldades da especialidade abordando temas relevantes como relações com a
Medicina Suplementar, vigilâncias sanitárias, outros conselhos profissionais,
auditores, serviços de má qualidade, dentre outros. O material solicitado pelo
CFM foi entregue antes do prazo estipulado, onde reforçamos pontos importantes
para o exercício da especialidade e temos que aguardar pelos resultados.
Os próximos passos, além de outras metas que estabelecemos para a atual gestão,
incluem a Agência Nacional de Saúde - ANS, que desde sua criação até hoje, tem
sistematicamente negligenciado a relação de equilíbrio financeiro entre
prestadores e tomadores de serviços, condenando os serviços e médicos sem poder
econômico, a arcarem com os custos cada vez mais elevados da assistência à
saúde. Muitos dos descumprimentos das normas reguladoras têm neste
desequilíbrio sua origem, com alguns resultados dramáticos.
Temos um longo caminho pela frente, pois perdemos muito ao longo dos anos e
recuperar parte do que ficou no passado, por toda a classe médica, necessitará
de um esforço imenso, que não pode ser interrompido, de todas as instituições
médicas e principalmente dos profissionais médicos. As vitórias são conseguidas
a duras penas com uma lentidão inacreditável, mas cruzar os braços e esperar
que outros façam nosso trabalho não é solução aceitável.
REFERÊNCIA
1. Barbosa JM, Souza ACS, Tipple AFV, Pimenta FC, Leão LSNO, Silva SRMC.
Endoscope reprocessing using glutaraldehyde in endoscopy services of Goiania,
Brazil. Arq Gastroenterol. 2010;47(3):219-24.