Trabalho em equipe e trabalho em grupo no programa de saúde da família
RELATO DE EXPERIÊNCIA
GERENCIAMENTO
Trabalho em equipe e trabalho em grupo no programa de saúde da família
Maria Helena Trench CiamponeI; Marina PeduzziII
IEnfermeira, Doutora em Psicologia Social, Livre-Docente junto ao Departamento
de Orientação Profissional da Escola de Enfermagem da USP
IIEnfermeira, Doutora em saúde Coletiva, Professor doutor junto ao Departamento
de Orientação Profissional da Escola de Enfermagem da USP
INTRODUÇÃO
Nós, autoras deste trabalho, vimos atuando ao longo de nossa formação
profissional como docentes e pesquisadoras na área de recursos humanos e
gerenciamento de serviços de saúde e, nesse contexto, estamos envolvidas, mais
recentemente, em diferentes âmbitos de delineamento e execução das propostas de
capacitação de equipes para atuarem no Programa de Saúde da Família. Nesse
sentido, temos refletido sobre o escopo da proposta e a forma como tem sido
operacionalizada, cabendo-nos, no presente momento, levantar alguns
questionamentos e pontos para discussão no que se refere às estratégias de
trabalho em equipe e de trabalho em grupo, segundo os estudos e pesquisas que
temos desenvolvido sobre a temática (Peduzzi, 1998,Ciampone, 1998).
No que se refere à organização institucional ou modelo assistencial, vários
estudos desenvolvidos no Brasil, mostram a hegemonia da abordagem clínica
centrada no cuidado individual e na assistência médica, objetivando a
reinstauração de uma dada normatividade biológica. Estes estudos analisam e
assinalam a necessidade de superação desse modelo assistencial pela articulação
de intervenções de diferentes naturezas, com destaque para a participação dos
sujeitos - população, usuária dos serviços ou não, e agentes do trabalho.
(Schraiber, 1990,Almeida, 1991,Merhy, 1992,Campos,1992;Mendes, 1994)
Esta reflexão ocorre integrada à um movimento de natureza política e de
intervenção nos serviços de saúde, que busca viabilizar a transformação do
modelo de atenção. Neste sentido, a VIII Conferência Nacional de Saúde
representou um momento de síntese, formulando, com legitimidade, um projeto de
saúde para o país com base nos princípios da universalidade, integralidade,
equidade, descentralização, hierarquização e participação popular.
O Programa de Saúde da Família tem sua origem neste cenário e coloca-se como
estratégia de reestruturação do modelo assistencial em conformidade com o
ideário ético-político e técnico do Sistema Único de Saúde (Conh; Elias, 1996).
As diretrizes operacionais do Programa ressaltam a adscrição da clientela, a
integração dos níveis de atenção à saúde, o planejamento local e regional com
base no pensamento estratégico, o trabalho em equipe, a ação intersetorial e o
controle social (BRASIL, 1996). Assim, o PSF elege como ponto central o
estabelecimento de vínculos e a criação de laços de compromisso e de co-
responsabilidade entre os profissionais de saúde e a população.
À medida que o PSF busca constituir-se como um modelo de atenção que contempla
as múltiplas dimensões das necessidades de saúde na sua dupla face - individual
e coletiva, propõe mudanças no objeto de atenção, na forma de atuação
profissional e na organização dos serviços. A ampliação do objeto de atenção
está presente no deslocamento proposto do indivíduo para a família e do
interior dos serviços para o espaço/domicílio, na esfera da vida social. Esta
ampliação do objeto de intervenção para além do âmbito individual e clínico,
faz necessária a ação multiprofissional, presente na proposta do trabalho em
equipe, e a modalidade de atenção à grupos, presente na proposta trabalho em
grupos familiares.
Para tanto, há que se construir um novo pensar e fazer nessa prática que requer
alta complexidade de saberes, de desenvolvimento de habilidades e de mudanças
de atitudes, por parte de toda a equipe, o que se constitui em verdadeiro
desafio.
CONCEITUANDO TRABALHO EM EQUIPE E TRABALHO EM GRUPO
No senso comum, um grupo é constituído por um conjunto de pessoas que se reúnem
em um determinado espaço de tempo e lugar, tendo um objetivo em comum. Contudo
essa representação deixa de contemplar algo que é essencial na constituição de
um grupo, que é o que o diferencia de uma serialidade, no sentido de que cada
indivíduo numa série seria equivalente ao outro e sem diferenciação. Numa série
pressupõe-se uma não relação entre as pessoas, um não vinculo. Pois bem, quando
nos referimos a um grupo, no contexto deste trabalho, estamos adotando a
concepção de grupo advinda da psicologia social, na qual os estudiosos no campo
grupai, explicitam que o que diferencia um grupo de uma série é justamente
"estar em interação e partilhar normas na realização de uma tarefa".
SegundoPichon (1982), é justamente a concepção de vínculo que diferencia a
sociabilidade por interação no campo grupal.
As relações intersubjetivas no campo grupai são dirigidas e se estabelecem
sobre a base de necessidades, que é o fundamento motivacional do vínculo. Todo
vínculo, assim entendido, implica a existência de um emissor, um receptor, uma
codificação e decodificação de mensagens, isto é, pressupõe um processo de
comunicação entre seus integrantes. Nesse interatuar dá-se a internalização
dessa estrutura relacional, que adquire uma dimensão intra-subjetiva que
constitui-se no vínculo. Isto posto, postula-se que em um grupo, existe a
alteridade, ou seja, aceitação do outro enquanto sujeito pensante e autônomo,
por cada um dos atores sociais que mantêm entre si vínculos e relações afetivas
de diversas naturezas.
Já na literatura sobre equipe de saúde observamos que são raras as definições
ou conceitos sobre o tema. Tanto na produção teórica, quanto na prática em
serviços, predomina a concepção de equipe do senso comum, onde a equipe é
representada como o conjunto de profissionais em situação comum de trabalho. Se
assim fosse, todo conjunto de trabalhadores configuraria equipe e todo trabalho
seria trabalho em equipe. No entanto, utilizamos a denominação "equipe de
saúde" e "trabalho em equipe" para algumas situações específicas. Cabe,
portanto, indagar quais as características que nos permitem identificar esta
específica modalidade de trabalho coletivo?
Em primeiro lugar, destacamos que a denominação "equipe", no processo de
produção em saúde, sempre fará referência a uma situação de "trabalho" e que
este refere-se à obtenção de bens ou produtos para a atenção às necessidades
humanas. Portanto, em primeira instância, cabe a equipe a responsabilidade pela
obtenção de resultados que expressem a finalidade do trabalho que produz.
Convencionou-se distinguir por completo a esfera do trabalho e a esfera das
relações interpessoais, no entanto, o trabalho é permeado pela comunicação e
interação do agentes. Segundo estudo desenvolvido porPeduzzi(1998), com base no
processo de trabalho em saúde e na teoria do agir comunicativo deHabermas
(1989, 1994), é justamente a relação recíproca entre estas duas dimensões
complementares - trabalho e interação - que caracteriza o que denominamos de
trabalho em equipe. Assim, o trabalho em equipe constituiria uma prática em que
a comunicação entre os profissionais faz parte do exercício cotidiano do
trabalho e os agentes operam a articulação das intervenções técnicas por meio
da mediação simbólica da linguagem. Neste sentido, há que se considerar duas
dimensões inerentes ao trabalho em equipe: a articulação das ações e a
interação dos profissionais.
Quando a equipe é multiprofissional, a articulação refere-se a recomposição de
processos de trabalho distintos e, portanto, a consideração das conexões e
interfaces existentes entre as intervenções técnicas peculiares de cada área
profissional, bem como a preservação das respectivas especificidades. A
integração da equipe demanda, simultaneamente, preservar as difierenças
técnicas e flexibilizar as fronteiras entre as áreas profissionais. A complexa
conjugação entre especificidade, flexibilidade e articulação, torna-se ainda
mais desafiadora a medida que, para além das difierenças técnicas entre as
distintas áreas profissionais, expressa desigualdade entre os trabalhos
especializados. Ou seja, evidencia a existência de valores sociais
hierarquizando e disciplinando relações de subordinação entre as diferentes
áreas de trabalho e seus respectivos agentes.
A interação é, aqui, entendida como uma prática comunicativa por meio da qual
os envolvidos colocam-se de acordo quanto a um projeto comum. Os sujeitos
constróem consensos sobre um plano de ação por meio de uma modalidade de
comunicação dialógica - de dupla mão, em que os envolvidos partilham os
enunciados que proferem e as normas e valores que subjazem esses proferimentos.
Ou seja, colocam-se de acordo quanto ao que dizem e aos valores pressupostos
compartilhando valores éticos (Habermas, 1989,1994).
A INTERSEÇÃO ENTRE TRABALHO EM EQUIPE E TRABALHO EM GRUPO
As concepções, acima referidas, sobre equipe e grupo, permitem-nos tanto
identificar aspectos em que ambos os conceitos aproximam-se, quanto aspectos em
que se distinguem. Como podemos observar, a interação destaca-se como dimensão
intrínseca, seja para o trabalho em equipe, seja para o trabalho em grupo. No
entanto, para o trabalho em equipe a centralidade está na obtenção de
resultados, ou seja, na atenção integral às necessidades de saúde da clientela,
o que pode ser incrementado em qualidade a medida que a comunicação em busca de
consensos, entre os profissionais, integre o trabalho cotidiano. E para o
trabalho em grupo a centralidade está na dinâmica das inter-relações e no
vínculo entre os integrantes do grupo, que potencializa a realização da tarefa.
Caberia ao grupo de profissionais, o desenvolvimento da potencialidade para
trabalhar tanto em grupo, como em equipe. SegundoPichón (1982), "trabalhar como
um grupo operativo, contempla tornar manifesto os conteúdos implícitos do grupo
(equipe e grupo familiar) relacionados com a tarefa proposta. Isto implica
conceber que os implícitos em qualquer campo grupai, permanecendo como tal,
significam obstáculos à aprendizagem. Assim a aprendizagem da coordenação de
grupos implica em operar verbalmente através da comunicação com o grupo
assinalando e interpretando o que se passa no grupo quando este se encontra em
uma situação conflitiva, dilemática, e não pode seguir adiante sozinho no seu
trabalho. Na medida em que a confrontação entre o âmbito do intersubjetivo e o
âmbito do intra-subjetivo seja dialética ou dilemática, é que a aprendizagem
será facilitada ou obstaculizada. Ou seja, dependerá de que o processo de
interação funcione como um círculo aberto, com uma trajetória em espiral, ou
como um círculo fechado, viciado pela estereotipia. O papel do coordenador de
grupo, que deve ser desenvolvido e potencializado em todos os integrantes da
equipe pressupõe a facilitação desse processo de interação e aprendizagem de
desenvolvimento de novas condutas e papéis, de modo ativo e participativo.
Assim, cabe-nos reconhecer que, a maior parte da nossa formação como
profissionais de saúde ainda está pautada no modelo biomédico, configurando uma
cisão entre o biológico e o psicossocial e, portanto, pouco nos instrumentaliza
para a atuação na esfera da interação, seja com o usuário, seja com os demais
profissionais.
Nessa perspectiva, não temos internalizada a experiência da coordenação de
grupos. Em geral, somos também condicionados a acreditar que o técnico é o dono
da verdade no sentido de saber o que é o melhor para o outro, o que fazer e
como fazer, desconsiderando, muitas vezes a cultura, crenças e valores que
determinam uma dada forma de ser. Por conta disso, acabamos estendendo essa
"verdade", esse saber, às relações interpessoais no trabalho, que longe de ser
um trabalho em equipe, acaba por se tornar competitivo, ao invés de ser
cooperativo. Por isso, Pichón argumenta que estar em grupo operativo implica em
aprender a aprender e isso vale também para aprendizagem do que é constituir
uma equipe de trabalho (Ciampone, 1998, p. 132).
Tal construção ocorre a medida em que os profissionais tomem a comunicação
entre eles como dimensão intrínseca ao trabalho, considerando efetivamente a
prática dos demais como interdependente e complementar a sua e a negociação
como via de acesso a um projeto comum de trabalho. Os acordos por meio dos
quais se configura o projeto comum, requer que os profissionais possam se
questionar também no plano técnico, ou seja, quanto às intervenções que
executam ou julgam necessárias. Ou seja, os agentes precisam colocar-se de
acordo quanto às ações específicas de cada área e a conexão entre elas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos ressaltar o caráter potencializador que a proposta de intervenção
centrada no grupo familiar contempla, por seu caráter oportuno quanto à
possibilidade de constituir-se em recurso para o "empoderamento dos sujeitos",
tanto os profissionais de saúde, quanto os usuários e familiares, frente à dura
realidade a ser enfrentada. Tanto a proposta de trabalho em equipe, como a
perspectiva do grupo familiar como objeto da intervenção, propiciam o que
(Merhy, Chakkour, citados porMerhy, Onocko, 1997) denomina de espaços
intercessores, referindo-se a espaços onde há possibilidade de criar-se
instituintes, isto é, criar-se espaços potencialmente transformadores daquilo
que está determinado à priori (instituído), como modos de ação e reação.
Corroborando com a afirmação acima, um recente trabalho realizado porFortuna
(1999) que tem como foco o trabalho em equipe produzindo-se e reproduzindo-se
em subjetividades, chama a atenção para a rede de micropoderes presentes nas
unidades básicas de saúde que atravessam a rede de relações podendo se fazer
potencialmente transversalizadoras. Neste estudo, a autora partindo do
entendimento de trabalho em equipe como um processo de inter-relação, analisa
as relações entre os trabalhadores enquanto processos grupais, chamando a
atenção para os possíveis espaços de transformação/transversalidade que se
configuram como possibilidades para o trabalho em equipe. Contudo chamamos a
atenção para as habilidades relacionais tomadas como ferramentas essenciais da
proposta de transformação de modelos assistências, compreendidas no projeto da
Saúde da Família.
Temos claro que os conceitos e a ética presentes em cada uso ou apropriação do
conhecimento sobre o trabalho em equipe e o trabalho em grupo podem suscitar,
ou não, a denúncia de violência simbólica que se impõe em todo modelo, norma,
verdade e todas as naturalizações possíveis implicadas no trabalho em
instituições.
É nossa intenção abrir o diálogo, buscar a compreensão, compartilhar
preocupações e também oportunidades. Não nos cabe definir como trabalhar em
equipe, como operar em um grupo. Pensamos, que nesse momento de construção e
desafios, a cada um cabe fazer pronunciamentos interrogando a própria leitura
da realidade, que é complexa e multifacetada, bem como, interrogar os próprios
saberes e a própria experiência, produzindo outras discussões. O tempo presente
urge por esforços cooperativos, pela soma, e não por divisão ou isolamento na
produção da alternativas!