Criar os filhos: experiências de famílias de três gerações
RELATO DE EXPERIÊNCIA
PRÁTICAS CUIDATIVAS
Criar os filhos: experiências de famílias de três gerações1
Sonia Silva MarconI; Ingrid ElsenII
IDoutora em Filosofia da Enfermagem pela UFSC. Prof. Adjunto do Departamento de
Enfermagem da Universidade Estadual de Maringá. Coordenadora do NEPAAF (Núcleo
de Estudos, Pesquisa, Assistência e Apoio à Família)
IIOrientadora do estudo, Prof. Titular da Universidade Federal de Santa
Catarina
As mudança tecnológicas ocorridas nas últimas décadas influenciaram de forma
ímpar as concepções do ser humano em todas as manifestações de seu viver. A
sociedade brasileira por exemplo, passou por profundas transformações
demográficas, econômicas e sociais, as quais repercurtiram intensamente nas
diferentes esferas da vida familiar. A urbanização associada a uma série de
outras mudanças como por exemplo a inserção da mulher no mercado de trabalho, a
redução no número de filhos constituem algumas das alterações que influenciaram
sobremaneira a forma de criar os filhos. Assim sendo, desenvolveuse uma
investigação de natureza qualitativa, com o objetivo de conhecer as
experiências de famílias, ao longo de três gerações, sobre a criação dos
filhos. O estudo foi realizado na cidade de Maringá, Paraná, junto a famílias
que tinham em comum o fato de terem tido ou terem ainda um filho, neto ou
bisneto que tivesse freqüentado ou estivesse freqüentando uma creche. Na
maioria das vezes as famílias foram representadas por suas mulheres. A
entrevista aberta foi a estratégia básica utilizada na coleta de dados, sendo a
observação e fotografias utilizadas em menor escala. O papel adotado pela
pesquisadora foi do tipo conhecido pelas informantes.
Os resultados demonstraram que nas representações das famílias o criar um filho
se dá inserido em um contexto e influenciado por este, e que esta experiência é
única para cada família, e nas duas últimas gerações, e principalmente na
última, também para cada filho. A criação é permeada pelos valores e crenças da
família e também por suas concepções sobre criança, bem como sobre o papel da
mulher e do homem na família. Identificou-se que na primeira geração, nas
décadas de 40 e 50 as principais crenças que permearam a criação dos filhos era
a de que estes deveriam ser ensinados precocemente, tanto a se comportar como a
trabalhar, que deveriam ser criados junto da mãe, que havia necessidade de
colocar limites na criação, que a religião era um recurso importante da
criação, que os filhos tinham que ter um comportamento exemplar (obedientes,
respeitadores, educados e que não roubassem) e que necessitavam estudar. Na
segunda geração, nas décadas de 60 e 70 os valores e crenças predominantes eram
de que a religião deveria permear a criação, que os filhos necessitavam de
convivência social, de saber se comportar moral e socialmente, precisavam
estudar para ter uma profissão e respeitar os mais velhos. Na terceira geração,
décadas de 80 e 90, acreditase que o filho mais novo é mais esperto, que é
função da família respeitar a individualidade da criança, valorizando-a como
ser único no mundo, reconhecendo difierenças em sua personalidade e atendendo
necessidades individuais; que a criança precisa ter autonomia, embora em
decorrência de sua fragilidade, tenha dificuldade em ser e estar no mundo,
necessitando por isto de ser cuidada o tempo todo; e, finalmente, que a criança
é um ser sociável que necessita conviver e brincar com outras crianças fora do
ambiente doméstico.
As concepções de criança variaram muito, mas se mantiveram em torno de dois
núcleos básicos: o comportamento e as atividades. Assim, inicialmente a criança
era concebida como obediente e educada e tinha seu dia preenchido com
atividades escolares e de ajuda (considerada obrigação) nos afazeres domésticos
e na lavoura. Na segunda geração ela continua sendo percebida como obediente e
educada e seu dia passa a ser preenchido prioritariamente com atividades
escolares e brincadeiras (realizadas fora de casa), pois o trabalho passa a ter
um caráter só de ajuda; atualmente a criança é representada como desobediente e
sem educação para com todos e tem seu dia preenchido por atividades escolares e
de lazer, passando a maior parte de seu tempo livre dentro de casa e o trabalho
praticamente não faz parte da rotina das crianças desta geração.
Quanto aos valores que permeavam a criação, constata-se serem na primeira
geração o estudo e a boa educação da criança (feita pela mãe e desde pequena);
na segunda o estudo é inclusive exacerbado, o comportamento se volta para o
social mais amplo, ou seja, aquele que a criança deveria ter em sociedade, e
passa a existir uma valorização da pessoa da criança (influenciando o
relacionamento entre pais e filhos). Atualmente, a valorização da criança e seu
aporte psicológico determinam todo o enfoque da criação, a qual é marcada pela
demonstração de afeto no relacionamento entre pais e filhos e pela preocupação
com o desenvolvimento (psicológico, motor e social) da criança. As atividades
que envolvem o criar, por sua vez, são determinadas pelas concepções e valores
da família. Assim sendo, na primeira geração, disciplinar, educar e colocar
para trabalhar constituíam a tônica; na segunda geração estas atividades
continuam presentes, porém de forma menos enfática, e por outro lado, passam a
fazer parte do criar o demonstrar afeto, conversar e favorecer a socialização.
Finalmente, hoje em dia, estas são muito mais numerosas e guardam entre si a
característica de serem realizadas quase sempre com o intuito de favorecer o
desenvolvimento da criança, protegê-la ou respeitá-la em sua individualidade.
Os resultados indicam que em função de crenças e valores, apesar de toda a
tecnologia disponível, a criação dos filhos hoje se mostra como uma tarefa bem
mais árdua, uma vez que parece exigir maior compromisso e responsabilidade por
parte dos pais.
Portanto, a compreensão do que foi e é criar um filho hoje aponta de que forma
os profissionais de saúde, em especial os de enfermagem, podem e devem atuar
junto às famílias. Se para as famílias, o enfrentamento de doenças, pelo menos
as comuns e corriqueiras, constitui-se apenas em facetas deste criar, os
profissionais de saúde precisam compreender que a doença faz parte do criar e
no entanto, enquanto as famílias se preocupam com a "vida" e seu cotidiano,
nós, profissionais de saúde, fazemos um recorte na realidade e passamos a agir
como se esse "pedaço" da realidade representasse o todo. Em função disso,
insistimos em nos preparar para atuar em situações de doença, e não contentes
com isso, ainda tentamos atrair a atenção das famílias para a necessidade de se
preocuparem com a doença. A falta de sincronia entre o que é vivido pela
família e o preparo dos prifissionais de saúde, talvez constitua a principal
justificativa para a constatação no estudo, de uma invisibilidade do
profissional enfermeiro através dos tempos e, acima de tudo, nos dias atuais.
Isto tem um significado concreto para a enfermagem: ela precisa rever sua
prática, no sentido de dar atenção suficiente às questões que constituem a
problemática do viver das famílias: saber o que é certo ou errado, como
estabelecer limites, entre outros. Também é preciso reconhecer que se a família
através dos tempos muda sua estrutura, sua organização, seus valores e seus
papéis, a enfermagem em suas manifestações do assistir, precisa reconhecer a
necessidade de pensar as famílias de forma plural (com várias possibilidades de
organização), pois histórica e antropológicamente falando-se não existe um
modelo de organização familiar que possa ser tido como único.
Aponta ainda que devemos nos fazer presentes, não só na doença (pois esta é
esporádica e não corresponde à totalidade da vivência do criar), mas acima de
tudo no cotidiano. É preciso estar presente e junto com a família descobrir
meios que possam fortificá-la, mobilizá-la, impulsioná-la no alcance de seu
próprio equilíbrio e bem-estar; descobrir estratégias que facilitem o
desenvolvimento de sua tarefa de socializar e adaptar a criança a uma
convivência saudável, física e mentalmente, na sociedade. Da mesma forma, estar
junto com a família no aprendizado constante do desempenho de papéis, afinal as
famílias hoje encontram-se em constante transformação; e por conseguinte, não
são só os filhos que crescem físicamente e ao mesmo tempo precisam se
desenvolver emocionalmente; os pais também precisam aprender a ser pais e a
atuar como tais. Cumpre portanto, discutir e descobrir junto com a família,
quanto os pais se apresentam como figuras significativas para seus filhos e,
por conseguinte, como modelos a serem seguidos, surgindo assim a necessidade de
um agir que possibilite, além da interação plena da família, o fornecimento de
padrões adequados na formação da personalidade da criança.
Há que se estar junto com a família, tendo por objetivo fortificar e descobrir
as potencialidades da mesma na condução de seu processo de viver/ser/estar
saudável, para além do aspecto biológico. A abordagem deve ser no sentido de
apoiá-las e fortalecê-las no enfrentamento de suas tarefas diárias, sejam ou
não elas relacionadas diretamente à saúde, posto que saúde não representa mais
única e exclusivamente ausência de doença.
Assim sendo, a relação entre profissionais de saúde e famílias tem que se
pautar numa relação diferenciada, única. Para tanto o profissional precisa
saber como o outro (família) define a situação, conhecer a cultura do outro,
colocar-se no lugar do outro, precisa ouvir o outro, interagir com o outro.
Precisa entender o significado que o outro dá às suas experiências, para então
estar junto, crescer junto, enfim, colocar-se à disposição em ter a família
como co-participante do processo de cuidar/criar.
Isto é de fundamental importância pois, em nosso contexto, onde os serviços de
assistência à saúde (que na verdade só fazem assistência à doença) não
satisfazem as necessidades da população, a família tem um papel importante a
desempenhar na promoção da saúde, na prevenção da doença e na recuperação da
saúde. O cuidado prestado pela família em quaisquer destes níveis tem como
principal característica o fato de ser permeado por relações sociais e
carregadas de investimentos afetivos. E é exatamente isto que o diferencia do
cuidado formal. Os investimentos afetivos têm a capacidade de estimular as
forças vivas do indivíduo/família doente, promovendo com maior facilidade e
rapidez a recuperação da saúde.
Conclui-se que compete ao profissional de saúde, em especial ao enfermeiro,
refletir sobre o tipo de assistência a ser prestada à família no sentido de
ajudá-la no desempenho desta importante tarefa que é o cuidar/zelar pela saúde
de seus membros. Cada situação precisa ser entendida como uma oportunidade
ímpar de colaborar adequadamente na expansão do referencial adotado pelas
famílias em situações de saúde e doença. Compete pois aos profissionais de
saúde, deixar que as famílias experienciem a sensação real de não estarem sós
no enfrentamento de seus problemas cotidianos, como, por exemplo, o de criar os
filhos.
Urge portanto repensar o ensino e a prática da enfermagem. Isto porque a
formação acadêmica não tem dado conta de ampliar a visão dos profissionais no
que concerne à compreensão do processo de viver, adoecer e curar, o qual ainda
se encontra ancorado prioritariamente no modelo biomédico, que prioriza o
atendimento individual, curativo e institucional, ou seja, não valoriza o
esforço e as dificuldades da família para viver, ser/estar e se manter
saudável. Na formação destes profissionais precisam ser adotadas estratégias
que propiciem novas formas de abordagens, assim como o estabelecimento de novos
parâmetros de assistir e cuidar, priorizando a busca da integração do cuidado
formal com o informal, tendo em vista não só reconhecer, mas melhorar a
qualidade do cuidado prestado pela família, tanto em situações dle saúde como
de doença, como meio de transformação de nossa realidade de saúde.
Os dados do estudo revelam ainda que, na interação com as famílias com o
objetivo de assistilas no desempenho de suas tarefas com os filhos, o
referencial a ser utilizado será o de criação conforme concebido pelas próprias
famílias, o que vimos neste estudo, envolve muito mais que o apenas socializar
a criança. Criar para as famílias é muito mais que educar, socializar, cuidar
na doença. Criar é enxergar a criança de forma completa, com todas as suas
necessidades e particularidades; é atender a essas necessidades de forma
individualizada, por mais insignificantes que possam parecer.
Finalmente, ainda na interação com a família devemos começãr a utilizar
claramente o termo criar, pois ele como visto ao longo do estudo representa
melhor a complexidade das tarefas desenvolvidas pelos pais (avós e outros) em
relação aos filhos. Além disso, ao utilizarmos a palavra "criar" estaremos
reconhecendo e acentuando o caráter de novidade imprevisível (Abbagnano, 1970)
que estas tarefas possuem no dia-a-dia. Criar um filho é comparável a uma obra
de arte na qual o artista vai pouco a pouco definindo os traçõs e a tonalidade
das cores. É acima de tudo um processo inacabado, único para cada filho. Um
processo que vai sendo moldado, construído pelas interações ocorridas entre os
pais e entre estes e as pessoas que lhes são mais próximas, no qual se incluem
os próprios filhos, os quais atuam como sujeitos de seu próprio viver.
1 Tese de Doutorado em Filosofia da Enfermagem, 1998. Universidade Federal de
Santa Catarina.