O contexto de um serviço de emergência: com a palavra, o usuário
PESQUISA
O contexto de um serviço de emergência: com a palavra, o usuário*
The context of an emergency service: with the word, the user
El contexto de un servicio de emergencia: con la palabra, el usuario
Maria Luiza Machado LudwigI; Ana Lúcia de Lourenzi BonilhaII
IEnfermeira, Mestre em Enfermagem, Professora Assistente do Departamento de
Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da UFRGS
IIEnfermeira, Doutora em Enfermagem, Professora Adjunta do Departamento de
Enfermagem Materno Infantil da UFRGS, Orientadora da dissertação, E-mail:
bonilha@enf.ufrgs.br
1 Contextualização da temática
Os serviços de emergência hospitalares constituíram-se, na última década, em
locais onde a população, usualmente, procura por soluções para suas
necessidades de saúde.
Estes serviços são procurados por propiciarem "[...] meios para uma pronta
avaliação médica do doente e facilidades que implementam uma ação terapêutica,
com o trabalho de equipes especificamente treinadas" (1:3). Além disso, pode
ser pontuado também como fator determinante de procura, a disponibilidade do
serviço, que funciona 24 horas por dia. Desta forma, a população tem acesso a
um nível de resolutividade mais alto para seu problema imediato, pois a procura
resultará, no mínimo, em uma avaliação de saúde, com realização de exames
diagnósticos, ainda que represente uma solução paliativa para sua necessidade.
Deste modo, pode-se perceber que a procura dos serviços de emergência ocorre em
detrimento de outros serviços e está, intimamente, relacionada às distorções do
sistema de saúde vigente e suas implicações.
Com as mudanças ocorridas no sistema de saúde nas últimas décadas, hoje,
diferentemente do que acontecia no passado, a totalidade da população
brasileira tem a garantia legal ao cuidado de saúde gratuito, independentemente
de possuir um vínculo empregatício. Para chegar a esta realidade, o nosso
sistema de saúde, em sua evolução histórica, passou por várias alterações,
culminando, no final da década de 80, com a criação do Sistema Único de Saúde -
SUS.
O SUS foi implantado como forma de fazer com que o artigo 196 da Constituição
Brasileira de 1988 seja garantido. Este diz que:
a saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário as
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação(2:133).
De uma maneira simplificada, pode-se dizer que o SUS propõe um modelo onde
todos os cidadãos, independentemente de sua posição sócio-econômica, possuem o
direito a acessar os serviços de saúde e receber cuidados que satisfaçam suas
necessidades de forma integral, em uma rede hierarquizada de acordo com a
complexidade do atendimento.
O excesso de demanda por atendimento que vem ocorrendo nos serviços de
emergência, denuncia a ineficiência do sistema de saúde em operacionalizar a
sua proposta, uma vez que esta procura retratar a dificuldade do usuário em
acessar outros serviços de saúde, como por exemplo, os de atenção primária.
Embora isso ocorra, observa-se quotidianamente que os serviços de emergência
tentam cumprir seu papel perante a sociedade para atender a demanda. Porém,
mesmo com o esforço do conjunto de profissionais e com adaptações na estrutura
física, o resultado tem se traduzido em superlotação, e inevitavelmente tem
culminado em uma queda significativa na qualidade do atendimento prestado.
O fenômeno da superlotação que ocorre nas emergências por um lado é resultado
desta indisponibilidade de serviços, e por outro, gerado pela escassez de
leitos na rede hospitalar integrada ao SUS. Desta forma, acaba-se criando outro
fenômeno, denominado de "universalização excludente", causando uma inversão da
porta de entrada no sistema de saúde, descaracterizando o princípio da
hierarquização dos níveis de atendimento(3).
Pode-se constatar que o usuário não vê no SUS um sistema hierarquizado, e este
se configura em um dos motivos que o leva a procurar pelo serviço que lhe
ofereça maior resolutividade e, em contrapartida, o sistema de saúde,
desarticulado, não consegue trabalhar a demanda, com vistas a torná-la uma
demanda organizada, e assim colocar em prática a hierarquização da assistência.
Há que se considerar também que o usuário busca este tipo de serviço de acordo
com a sua prioridade, que muitas vezes não coincide com as da instituição, uma
vez que estão envolvidos neste processo de percepção da doença e necessidade de
buscar auxílio, fatores culturais inerentes à inserção social dos usuários.
Com base nestas reflexões, a presente pesquisa teve como elemento desencadeador
minha permanência como docente em um serviço de emergência de um hospital-
escola integrado ao SUS. Este contexto me fez observar as dificuldades
encontradas pelo usuário no serviço, ao sofrer as conseqüências de receber
atendimento em um ambiente superlotado.
Deste modo, algumas questões foram delineadas para dar suporte ao estudo:
a) como o usuário compreende o atendimento no serviço de emergência?
b) o fato de se encontrar em um ambiente superlotado o incomoda?
c) ou será que a garantia do atendimento supera o desconforto?
Assim, o objetivo deste estudo foi buscar a compreensão do usuário do serviço
de emergência sobre o contexto em que ocorreu o seu atendimento, durante a sua
passagem pelo serviço, no que se refere ao ambiente e à forma como se deu este
atendimento.
2 Metodologia
Neste estudo, partiu-se da convicção de que a experiência humana somente pode
ser definida por quem a vive e que o contexto influencia de modo decisivo,
resultando na construção de um juízo em relação ao fenômeno experienciado.
Com base nestas considerações, optou-se pela metodologia qualitativa com a
realização de um estudo de caso(4).
Os participantes da investigação foram usuários adultos do Serviço de
Emergência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. O grupo foi composto de
doze indivíduos, internados no hospital, após terem sido atendidos na unidade
de emergência. Foi utilizado como critério de seleção, que os mesmos
apresentassem condições, tanto física quanto mentais, de manter um diálogo.
Para esta investigação, como estratégias metodológicas, além das informações
verbais e consultas a documentos do Serviço, foram utilizadas as técnicas de
observação livre(5) e entrevista não estruturada(4). A observação do contexto,
característica de um estudo de caso, ocorreu no local onde acontece o
atendimento ao usuário do Serviço, privilegiando sua chegada, bem como a
trajetória percorrida no setor.
Buscando delimitar o número de participantes necessários para esta fase da
investigação, foi utilizado como critério a reincidência de informações(6).
Desta forma, foram realizadas doze entrevistas, gravadas em fita-cassete, com
autorização do participante e posteriormente transcritas e digitadas.
O procedimento para análise das informações obtidas seguiu a proposta de
interpretação qualitativa de dados(4), ou seja, a construção de um conjunto de
categorias descritivas com o aprofundamento teórico das mesmas com base no
objetivo do estudo, nas observações, pesquisa documental e entrevistas.
A pesquisa foi submetida a avaliação pelo Comitê de Ética do Hospital de
Clínicas de Porto Alegre, atendendo à Resolução 196 do Conselho Nacional de
Saúde, tendo sido aprovada para seu desenvolvimento.
Os participantes foram solicitados a assinar o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido, ficando com uma cópia do documento em seu poder.
2.1 Com a palavra, o usuário
A seguir, são apresentadas as cinco categorias obtidas no processo de
categorização de dados(4), as quais recebem uma denominação inspirada nos
depoimentos dos usuários, por retratarem a maneira como os mesmos compreendem o
contexto de atendimento no Serviço de Emergência em estudo.
2.2 Qualquer coisa, passa na emergência
A procura por um serviço de saúde pode ser determinada por diversos fatores.
Estes podem ser de ordem pessoal e estar relacionados à capacidade financeira
de custear a própria saúde e a dos familiares, bem como ligados à noção que o
indivíduo possui de saúde e doença.
Assim, é importante considerar, nesta análise, que o indivíduo antes de eleger
o serviço para se tratar, passa por um processo de percepção de sua situação de
saúde. Tal processo é resultante do aparecimento dos sintomas, os quais dizem
respeito ao caráter invisível da doença, sendo exclusivos ao doente e
manifestam-se por sensações que só podem ser descritas por meio das palavras de
quem as experimenta(7). Deste modo, indivíduos provenientes de culturas e
contextos distintos poderão interpretar o mesmo sintoma de maneiras
completamente diferentes(8).
O indivíduo, ao perceber sua situação de saúde como merecedora de atenção,
elege um serviço para satisfazer esta necessidade de saúde. Ao realizar esta
procura, estará utilizando seu próprio conhecimento como forma de diagnóstico,
caracterizando um modelo assistencial em que a procura se dá somente quando o
indivíduo se sente doente. "Este modelo, portanto, tende a atender os
indivíduos que na dependência do seu grau de conhecimento e/ou sofrimento,
procuram por `livre iniciativa' os serviços de saúde" (9:458).
É neste modelo assistencial que se encontram situados os serviços de
emergência, uma vez que grande parte de seus usuários são atendidos a partir da
procura espontânea, provocada pelos fatores já explicitados. No Serviço em
estudo, uma pesquisa demonstrou que 50% dos indivíduos que lá consultam são
originários de demanda espontânea(10).
Por outro lado, além da percepção de sentir-se doente, o indivíduo poderá optar
pelo tipo de atendimento, com base na noção de gravidade. A procura pela
assistência se dá com base na classificação das doenças em "simples" e "grave"
e os serviços de saúde são também classificados segundo estas categorias.
Assim, coisas simples podem ser resolvidas no "postinho", ficando com o
"hospital" a função de tratar as situações percebidas como graves(11).
É com base nesta percepção de gravidade que a Emergência pode ser procurada,
enquanto integrante da instituição hospitalar, como relata um usuário deste
estudo ao ser questionado sobre o motivo que o levou até lá:
era polmão, me deu pontada né, no polmão, primeira vez deu do lado
direito, e agora me deu dupla a apontada, e comecei a escarrá sangue,
comecei a ficá ruim [...] (João, 44 anos).
Por outro lado, a procura ao Serviço de Emergência pode ser motivada por
referências pessoais, que se traduzem tanto por referências obtidas de outras
pessoas, quanto pela experiência de já ter se tratado no local. Os relatos
transcritos abaixo justificam a escolha do Serviço nesta perspectiva:
é porque a primeira vez que eu fui atendido aqui fui, fui bem, né,
saí daqui curado, então eu voltei, voltei a ficar doente de novo e
daí retornei aqui(João, 44 anos).
[...] eu como sendo portador do HIV, eu tive informações de pessoas
que aqui tratavam nesse assunto, daí eu procurei para isso, para
melhor, né, atendimento meu, né, dessa doença(Paulo, 30 anos).
Também contribui para o aumento da procura por atendimento nas emergências, o
encaminhamento indiscriminado por profissionais médicos para estes serviços. De
acordo com Stein:
[...] caracterizar uma consulta como de urgência pode ser `aprendido', em
parte, a partir do modelo de atendimento do médico. Se um paciente é orientado
por um médico a ir à emergência, é muito razoável para o paciente pressupor que
um atendimento imediato é necessário(12:42).
Esta forma de acesso ao Serviço de Emergência pode ser evidenciada por relatos
do tipo:
[...] na onco, a gente sempre tem o aviso de que qualquer coisa se
passe na emergência, né, qualquer paciente da oncologia recebe essa
indicação(José, 37 anos).
Os relatos revelam, também, que a expressão qualquer coisa mencionada no
depoimento pode ser interpretada como uma permissão médica para uma avaliação
leiga da situação de saúde sendo um dos determinantes de procura pelo serviço.
2.3 Aquela seleção
Mais do que uma percepção e uma conseqüente motivação para tratar necessidades
de saúde, é preciso que haja serviços de saúde disponíveis para este fim. Neste
sentido, o conceito de acesso tem sido, cada vez mais, traduzido como
assistência médica imediata(13).
Como conseqüência, a população tem buscado encontrar acessibilidade no sentido
semântico da palavra, ou seja, a facilidade na obtenção(14) do atendimento de
saúde, o que tem sido encontrado nos serviços de emergência.
Esta disponibilidade faz com que a demanda por atendimento esteja
constantemente acima da capacidade de acolhimento por parte do serviço. Se por
um lado o usuário alcança um nível de satisfação pelo acesso, por outro sofre
as conseqüências de uma inevitável superlotação que se traduz na queda da
qualidade da assistência.
No serviço de emergência em análise, a realidade não é diferente, sendo que
atualmente há a necessidade de, de alguma forma, reprimir o excesso de demanda
que procura por atendimento, mesmo por situações não urgentes. O acesso ao
Serviço vem se desenvolvendo segundo uma lógica repressiva, pois ao usuário são
impostos bloqueios desde a sua chegada ao setor, de forma que ele é obrigado a
passar por um funil até conseguir ou não o atendimento pretendido.
Neste estudo, foram identificados três momentos de triagem de acordo com os
depoimentos dos informantes.
A primeira triagem é realizada por um segurança do hospital por meio de uma
avaliação subsidiada por um conhecimento leigo. Um estudo a este respeito
identificou a mesma dinâmica de funcionamento denominado-a de classificação de
demandas.(15)
No presente estudo foi identificada ainda uma segunda triagem, a qual é
realizada no guichê de marcação de consultas, por funcionárias administrativas.
Aqui também são utilizados conhecimentos leigos e critérios internos ao Serviço
como forma de subsidiar uma avaliação de saúde. Isto é realizado através de um
vidro, por meio de perguntas sobre o motivo da procura.
O relato a seguir explicita, de modo sucinto, como esta dinâmica de
funcionamento pode se refletir no acesso dos usuários:
bem, eu cheguei na emergência, na recepção. Na primeira vez que eu
cheguei de imediato não fui atendido. Falaram que estava cheio a
emergência e..eu como tava muito mal acabei me sentando. Tava
acompanhado e sentei em frente à recepção ali, e a moça viu que eu
tava passando mal e depois de meia hora me chamou e acabei sendo
atendido, passei pela aquela seleção que eu não sei exatamente como
chama[...] (José, 37 anos).
A terceira etapa de avaliação, denominada neste estudo de terceira triagem, é
realizada pela equipe de enfermagem, sendo que é conferida à enfermeira, a
atribuição de decidir sobre o destino do usuário a partir dali. Esta triagem
caracteriza-se pela utilização do conhecimento científico como instrumento de
avaliação. Aqui são empregados critérios que resultam em uma classificação da
situação de saúde do usuário, segundo a qual serão subsidiadas as decisões.
O relato a seguir explicita a visão do usuário em relação à triagem técnica:
a gente chega, a gente aguarda; um enfermeiro vem e vê a temperatura
da gente, vê os sinais como é que estão, vê se realmente é caso de
emergência. Caso não for caso de emergência, ele manda na recepção
pra fazê um boletim e marca uma hora pra ti, uma hora mais
conveniente(Joaquim, 40 anos).
A decisão quanto ao atendimento por ocasião desta triagem, poderá ser
influenciada também pela insistência do usuário, fato que pode ser gerador de
conflitos neste momento, como mostra o relato:
[...] a última vez que eu cheguei, eu não fui muito bem atendido, né,
pelo enfermeiro que tava no local. Ele ... , não sei, implicou com a
minha cara, não sei o que é, queria que eu viesse embora, disse que
não era preciso, que não sei o quê. Aí chamou a minha mãe, e a minha
mãe disse que a médica tinha dito que tanto podia ser grave como
podia não ser, né. Aí ele resolveu me avaliar e passar pro médico
(Ricardo, 28 anos).
2.4 Aqui se faz tudo
As ações e práticas realizadas pelos serviços de saúde tendem a ser resolutivas
na medida em que são capazes de resolver os problemas dos usuários(16).
Nesta ótica, uma ação resolutiva pode se referir a um atendimento imediato, com
a conseqüente prescrição de um medicamento, ou a realização de um curativo ou
de outra terapêutica qualquer. Porém, o que gera a satisfação do usuário é o
significado de imediatismo que caracteriza a ação.
O usuário vê na relação trabalhador de saúde/usuário um aspecto decisivo na
solução de seus problemas, pois se a relação for de acolhimento por parte do
primeiro, a expectativa é de que as ações sejam mais efetivas e satisfatórias
(17).
Também é nos setores de emergência que a população parece encontrar
resolutividade, ou seja, o oposto do que encontra em outros serviços de menor
complexidade da rede pública. A impossibilidade ou demora em conseguir uma
consulta, o agendamento de exames diagnósticos para datas longínquas, com a
conseqüente demora no retorno para uma reconsulta, gera na população usuária
uma inconformida-de, fazendo com que resulte na procura por serviços mais
resolutivos. Este fato foi evidenciado em estudo onde os usuários relataram
como motivos de procura à emergência, conseguir fazer o exame e porque a
consulta que tem marcada é para o mês que vem(12). Desta maneira, a
resolutividade se configurou no motivo de escolha do serviço, pois neste, o
usuário encontrou a possibilidade de resolver sua necessidade de saúde de forma
imediata.
Na percepção dos usuários do Serviço de Emergência em estudo, a resolutividade
se traduz pelo imediatismo tanto das ações diagnósticas, quanto terapêuticas. O
atendimento acontece de uma forma resolutiva, uma vez que se a pessoa tem
febre, dão remédio ali mesmo, já fazem todos os exames, e ali tu aguarda os
resultados, tu chega e já faz a medicação na hora, me receitaram remédio e
comecei o tratamento já, já tomei injeção, já fui pro soro.
Ao mesmo tempo em que o usuário caracteriza a ação como imediata, mostra um
entendimento de que a ação diagnóstica é condição para que seja indicada uma
ação terapêutica, como mostra o relato a seguir:
[...] fiz ecografia, né, fiz a ecografia, fiz exame de sangue na
hora, foi tudo feito na hora e aonde constou que eu tinha pedra na
vesícula, que tinha que ficar pra operar(Marisa, 38 anos).
O hospital é considerado como um local que congrega a maior parte dos recursos
da medicina oficial, que além da consulta médica, dá remédios, faz injeção,
realiza exames, enquanto a procura ao "postinho", resulta somente na consulta
médica(11). A mesma percepção dos informantes de um estudo foi identificada no
que diz respeito à utilização do hospital em detrimento dos serviços
ambulatoriais da rede básica(18).
O acesso ao Serviço de Emergência representa também um viés para conseguir uma
internação em outros setores do hospital, uma vez que o caminho natural para
este fim seria a já comentada "peregrinação" pelos serviços de saúde e uma
conseqüente espera pela desocupação de um leito. Nesta perspectiva, na visão de
Fátima, 47 anos, a Emergência é válida:
[...] porque é um modo que tu tem de chegar até aqui ... , ... no
caso de tu precisar de um leito, uma coisa, tu tem. Se tu não
precisar, tudo bem, tu vai embora dali, né, mas se tu precisar ... tu
vem [para unidade de internação](Fátima, 47 anos).
Esta estratégia não é de uso exclusivo do usuário, uma vez que o encaminhamento
por médicos do ambulatório do hospital configura-se em um freqüente motivo de
procura ao Serviço de Emergência. A falta de leitos no hospital, faz com que o
Serviço seja visualizado como uma trilha secundária para a efetivação de uma
internação, ou até mesmo para a própria internação.
2.5 Não é nada agradável
A permanência em setores de emergência, atualmente, representa a possibilidade
de vivenciar ambientes superlotados e, portanto, passíveis de despertar nos
indivíduos os mais diversos tipos de sentimentos.
Neste sentido, o estudo identificou sentimentos de medo relacionados à própria
condição de portar uma doença, como mostra o depoimento:
eu me senti [...] , eu estava apavorado, achando que ia morrer, mas
eu tive bastante assistência médica, bastante carinho por parte da,
da equipe de enfermagem e equipe médica em geral, né. Foram bastante
atenciosos comigo, daí essa segurança, né, mas é uma situação triste
que você não imagina passar por aquilo, mas acontece, enfim, você tem
que tentar superar, né. Eu tentava ser paciente, rezava por conseguir
um leito pra vê se melhorava a situação (José, 37 anos).
Esta declaração demonstra, além do que já foi comentado, aspectos que
contribuem para determinar o sentimento do usuário durante sua permanência na
Emergência. Se por um lado, a atenção dispensada pela equipe de saúde contribui
para proporcionar segurança, por outro as condições ambientais e de acomodação
colaboram para aumentar o sofrimento, pois José ...rezava para conseguir um
leito pra vê se melhorava a situação. Ainda no último depoimento, fica
explícito um sentimento bastante comum nas pessoas, de que as coisas ruins da
vida só acontecem com os outros.
Quanto à relação equipe de saúde/usuário, muito tem se falado que o atendimento
prestado acontece somente em uma dimensão biológica, sem que aspectos
individuais sejam contemplados nesta relação(19). Porém, este estudo revela que
o usuário percebe esta relação de uma maneira diferente, pois refere
...bastante carinho por parte da equipe de enfermagem e equipe médica..., ...a
partir que tu chamasse elas, elas tavam junto contigo, sempre ajudando....
Outro aspecto identificado, diz respeito à dificuldade de acomodação adequada
gerada pela superlotação do Serviço, sendo que isto resulta em sentimentos
relacionados ao desconforto de permanecer sentado, explicitado na fala a
seguir:
ah, eu não tava acostumado, eu me senti mal acomodado. As primeiras
horas eu até suportei, mas depois a gente se sente meio inconfortado.
Durante a noite a gente [...], problemas, dores, cansado, sente sono,
não tem onde deitar, aí tem que dar um jeito, tá entrando pros
consultórios, que tem as macas ali nos consultórios, né, pra poder
tirar ali uma hora, duas de sono, e daí o cara descansa e tem que
levantar, sentar na cadeira de novo, né. Acho que é uma espera, né,
sacrificada, exige um pouco de sacrifício, e a pessoa doente acaba se
decaindo mais, devido a isso, né(Paulo 30 anos).
Por outro lado, a convivência dos usuários no mesmo ambiente, gera um
sentimento de uns em relação aos outros, construído a partir de quem, além de
experienciar o contexto de atendimento, também se torna espectador dos eventos
que acontecem ao seu redor:
ah, infelizmente não é nada agradável, é até...bastante assustador.
Eu em casa, eu tinha medo de voltar pra emergência pra...não me
encontrar novamente nessa situação; até nem tanto por mim, que eu fui
super bem atendido e tive a felicidade de não ficar tanto tempo nesse
local, mas mais pelo que acontece ao redor; outros pacientes que tão
ali com uma idade bem avançada e tão ali sentados ali há três dias e
tomando medicação, exaustos e...é bastante assustador(José, 37 anos).
Os depoimentos mostram uma tendência do usuário em visualizar no outro uma
condição pior que a sua, o que pode ser interpretado como uma forma de
mecanismo de defesa, enquanto ele se percebe, de uma certa forma, privilegiado.
Da mesma forma, há no usuário uma necessidade de manter sua privacidade
enquanto indivíduo, mesmo em um ambiente superlotado onde as pessoas são
obrigadas a permanecer muito próximas umas das outras. Este fato revela um
sentimento de auto-proteção, uma vez que esta proximidade pode representar um
risco para sua situação atual de saúde:
[...] a gente se sente ruim, né, se sente mal, vendo aquelas pessoas
ali; assim ó, não discriminando ninguém, mas tem pessoa assim, que
por exemplo..., às vezes tem aquelas pessoas cheia de piolho, cheias
de sarna, né ... eu, por exemplo, se eu vejo uma pessoa assim, eu nem
procuro chegar muito por perto, né, porque já tenho problema
suficiente, ainda vou pegar mais aquele monte de problema deles, né?
(Sandra, 47 anos).
2.6 Só tenho a agradecer
A qualidade dos serviços, de qualquer natureza, oferecidos à população, é um
assunto que vem sendo amplamente discutido, desde que o consumidor foi
reconhecido como o componente mais importante no processo que se estabelece na
venda de um produto.
Da mesma forma, os serviços de saúde cada vez mais vêm dando importância a este
processo e reconhecendo no usuário a finalidade principal de oferecer cuidados
de qualidade e efetivos.
A satisfação do usuário pode, então, representar um eficiente instrumento de
avaliação dos serviços, na medida em que representa um julgamento sobre a
qualidade do cuidado prestado(20).
É na perspectiva da relação que se estabelece entre usuário/serviço de saúde,
que esta análise possibilita a discussão de alguns aspectos que compõem a
avaliação de um Serviço de Emergência(21). Embora não tenha sido solicitado
formalmente aos informantes da pesquisa que avaliassem o Serviço em estudo, os
depoimentos constantemente foram permeados por expressões relacionadas a esse
aspecto.
A totalidade dos informantes sente-se agradecida pelo atendimento recebido no
Serviço de Emergência, objeto desta análise, sendo comum os depoimentos
iniciarem por expressões do tipo ...já vou te falar antes, não tenho nada para
reclamar.... Por outro lado, este tipo de declaração pressupõe um receio de
tecer críticas em relação a um Serviço que, apesar de todas as dificuldades,
acolhe o usuário. Tal sentimento se torna evidente quando:
os pacientes se vêem, muitas vezes, induzidos a fazer críticas ao
atendimento dispensado pelo HMMC [Hospital Municipal Miguel Couto],
mas assumem um discurso contraditório entre o revelar das
deficiências do serviço e a gratidão por terem sido atendidos ali(15:
116).
Assim, podem ser identificados diversos critérios que subsidiam a opinião dos
usuários em relação ao atendimento ofertado na Emergência, sendo que estes
podem dizer respeito ao Serviço, do ponto de vista de estrutura e
funcionamento, como às atitudes dos profissionais.
Em geral, os depoimentos dos usuários do Serviço de Emergência são permeados
por críticas, mas ao mesmo tempo demonstram um reconhecimento em relação ao
esforço que os profissionais fazem para atender todos, revelando um discurso
contraditório, como mostra o depoimento de Neusa:
[...] é muita gente pra pouco espaço e pessoal pra atender. Acho que
se tivesse mais espaço, mais pessoal, aí não tinha aquele tumulto ali
de tanta gente doente, porque chega um com uma coisa, outro com outra
... , já vem mal, né, e daí tudo ali tem que atender os mesmos que
estão ali de plantão, né. Daí, as vezes, eles mesmo não conseguem
atender todo mundo como eles querem, né. Mas fui bem atendida lá
embaixo, apesar da demora, coisa assim, eu achei que fui bem
atendida, né,...porque eles não abandonam a gente, né. Enquanto tão
lá, tão servindo comida pra quem precisa comer, né, chazinho, soro,
eles fazem de tudo lá embaixo, naquela sala, até poder encaminhar pra
um leito aqui em cima(Neusa, 38 anos).
Também é comum o reconhecimento pelo esforço dos profissionais em tentar
diminuir o desconforto gerado pela necessidade de permanecer sentado à noite.
Os usuários fazem referência ao uso de consultórios como possibilidade de
deitar para ... tirar um cochilo ...
eu deitei uma vez, foi a última vez agora, eu deitei duas horas. Só
porque eu tava muito ruim, eles sentiram que eu tava ruim, me
deitaram lá, numa cama lá, no consultório do médico lá, numa maca lá
(João, 44 anos).
Finalmente, pode-se constatar que a satisfação do usuário do Serviço de
Emergência está intimamente vinculada à disponibilidade do mesmo em resolver as
necessidades de saúde daqueles que o procuram. Isto é evidenciado pela
capacidade do usuário em separar as experiências boas das ruins, prevalecendo
em sua avaliação o sentimento de ter sido bem atendido, como mostram os
depoimentos:
[...] não tenho queixa nenhuma, sou muito bem atendido lá, tirando
esta parte, fui muito bem atendido lá(Ricardo, 28 anos).
[...] eu gostaria de agradecer o serviço médico que tão me prestando,
que eu acho que pra mim tá sendo bom, né, a atenção, apesar das
alteração, dos negócio meio forçado e...ao pessoal da equipe médica,
os enfermeiro em geral, né, o meu agradecimento(Paulo, 30 anos).
3 Considerações finais
Atualmente, a superlotação se configura no maior desafio enfrentado pelo
Serviço de Emergência, uma vez que este evento gera dificuldades de prestar um
atendimento de qualidade.
O presente estudo permitiu conhecer, por meio de depoimentos dos informantes e
com base em observações, como os usuários percebem o processo que envolve seu
atendimento, contemplando aspectos relacionados à procura pelo Serviço de
Emergência, bem como a trajetória que estes percorrem desde a chegada até a
resolução de seus problemas de saúde. Embora o estudo de caso, por sua própria
característica, não pretenda generalizações, ressaltamos que alguns achados
deste estudo, específicos do contexto estudado, possam ocorrer de modo
semelhante em outros serviços de emergência e desta forma contribuir para
outros estudos.
A procura ao Serviço de Emergência pode acontecer por motivos diversos. Com
base nos dados obtidos, identificou-se que essa procura se dá a partir de
referências, as quais podem ser pessoais, de pessoas conhecidas ou por
encaminhamento médico. Assim, experiências anteriores positivas fazem com que o
usuário procure por atendimento no mesmo local. Também é expressivo o número de
usuários que procuram a Emergência por serem vinculados ao ambulatório de
especialidades, onde seus médicos orientam que a procurem no caso de
necessidade. É importante salientar que este tipo de orientação pode levar o
usuário a avaliar suas necessidades como merecedoras de atendimento de
emergência, resultando, muitas vezes, em uma má utilização do Serviço.
Como conseqüência da busca à Emergência, é imposta ao usuário a condição dele
passar por uma triagem, a qual ele denomina de "seleção", devido à necessidade
de reprimir a demanda por atendimento, que atualmente é bastante grande. Foram
identificados três momentos de triagem, sendo que os dois primeiros são
realizados por um segurança e por servidores administrativos, portanto, com
base no conhecimento leigo. Somente a terceira triagem é efetivada pela equipe
de saúde, o que aumenta a possibilidade de ocorrerem erros na avaliação de
saúde do usuário.
Contribui para a motivação do usuário em ser atendido na Emergência, o fato
deste achar que as ações de saúde que lhe são oferecidas são resolutivas para
os seus problemas. As ações são percebidas como imediatas, apesar de
condicionadas a uma espera em condições inadequadas, as quais são geradoras de
desconforto físico.
Além disso, a Emergência é percebida tanto pelos usuários quanto pelos médicos
como um viés para conseguir uma internação hospitalar. Estes fatos demonstram a
descaracterização da Emergência de sua concepção original de atendimentos
rápidos e com alta rotatividade. Ao contrário disso, os usuários estão sendo
internados no próprio setor, por conta da escassez de leitos no restante do
hospital.
A necessidade de permanecer por um tempo prolongado na unidade de emergência,
no contexto observado, faz aflorar no usuário sentimentos relacionados à
maneira como ele se percebe naquele ambiente, bem como sentimentos gerados a
partir da condição de espectador do que acontece com os outros usuários.
Os sentimentos auto-percebidos revelaram medo, desconforto, cansaço, depressão.
Mas por outro lado, o carinho ofertado pela equipe de saúde, bem como a sua
disponibilidade em ajudar, são considerados como geradores de segurança. Também
fica explícito o sentimento de auto-proteção quando os outros casos são sempre
considerados piores que o seu, assim como o de manutenção da privacidade quando
a proximidade com o outro pode ser considerada como um risco à sua integridade
física.
Há uma dificuldade em tecer críticas ao Serviço, resultando em um discurso
contraditório, pois os aspectos negativos percebidos são comumente abrandados
pelo sentimento de agradecimento pela disponibilidade do Serviço em prestar
atendimento, mesmo em condições inadequadas. Entretanto, não se pode afirmar
que o mesmo ocorreria com indivíduos entrevistados fora da instituição, pois o
grupo participante deste estudo ainda possuía vínculo com a mesma, o que pode
ter influenciado sua opinião quanto ao atendimento recebido na emergência.