Enfermagem e serviço de atendimento pré-hospitalar: descaminhos e perspectivas
REFLEXÃO
Enfermagem e serviço de atendimento pré-hospitalar: descaminhos e perspectivas
Nursing and pre-hospital care: dead end paths and perspectives
Enfermería y servicio de atención prehospitalar: descaminos y perspectivas
Pedro Paulo Scremin MartinsI; Marta Lenise do PradoII
IEnfermeiro, Aluno do Curso de Mestrado em Enfermagem do Programa de Pós-
graduação em Enfermagem/ UFSC
IIEnfermeira, Doutora em Filosofia da Enfermagem, Docente do Departamento de
Enfermagem e do Programa de Pós-graduação em Enfermagem da UFSC, E-mail:
martadp@nfr.ufsc.br
1 Introdução
O mundo vem sofrendo constantes mudanças, mas a violência têm sido uma marca de
todos os tempos, a qual muda de natureza, mas não diminui seu impacto nos
índices de morbi-mortalidade. A violência tem acompanhado o homem ao longo de
sua história, traduzida nos mais diferentes atos, revestida das mais
diversificadas intenções. As guerras que num certo período da história da
humanidade eram responsáveis pelos maiores números de mortes, no "mundo
moderno" foram ultrapassadas por outras formas de violência que poderíamos
intitular de uma guerra oculta, não declarada e apolítica, embora muitas vezes
seja resultado de políticas perversas. Nesse sentido, as causas violentas têm
sido nos dias atuais as principais responsáveis pela mortalidade no âmbito das
"causas externas" as quais, no conjunto da mortalidade geral no Brasil, têm
ficado atrás somente da mortalidade por doenças cardiovasculares e oncológicas
(1,2). Similarmente aos tempos remotos, as causas violentas foram o impulsor
que levou o Estado a preocupar-se com medidas de intervenção, por intermédio do
Setor de Saúde e de Segurança Pública.
Frente ao aumento exacerbado da violência, doenças cardiovasculares,
respiratórias, metabólicas entre outras, responsáveis pelas ocorrências de
urgência/emergência, cresce, também, a necessidade de atendimento imediato das
vítimas no local da ocorrência, bem como de transporte adequado para um serviço
emergencial de atendimento definitivo. Nesse sentido, surgiram os Serviços de
Atendimento Pré-hospitalar (SvAPH), os quais possibilitam a intervenção
precoce, reduzindo os índices de mortalidade e minimizando seqüelas. Sobre esse
surgimento - daquilo que hoje é denominado de Atendimento Pré-Hospitalar (APH)
-, suas influências, desenvolvimento, atualidade e perspectivas, bem como o
compromisso da Enfermagem com essa questão, é o que abordaremos no presente
texto.
2 Alguns marcos no contexto brasileiro
Os SvAPH surgem no Brasil em diversas cidades e com características próprias,
cuja sistematização é resultado de influências das duas tradicionais escolas de
APH surgidas em meados do século passado: o Serviço de Atendimento Médico de
Urgência (SAMU), modelo francês e o Serviço de Emergência Médica (SEM), modelo
norte-americano. De modo geral, o modelo francês (SAMU) é composto por médicos
anestesiologistas, intensivistas, cardiologistas, psiquiatras, emergencistas
entre outros, técnicos auxiliares de regulação médica, enfermeiros (incluindo
enfermeiros especializados em anestesia) e técnicos em ambulância. É o
responsável pela assistência direta às emergências e pela ordenação e
coordenação de todo o sistema através da Central de Regulação Médica. O modelo
dos EUA é uma associação de esforços da first responder com o SEM que congrega
os Técnico em Emergências Médicas (TEM-Básico habilitado para o Suporte Básico
de Vida, TEM-Intermediário e TEM-Avançado ou Paramédico), departamento de
emergência, médico supervisor, pessoal da saúde, administração hospitalar,
administração do SEM e supervisão de agências governamentais (3).
O modelo com maior predominância no Brasil é o norte-americano adotado pelos
Corpos de Bombeiros Militares, mas, em várias cidades, foi adotado o modelo
francês, com certas adaptações.
No Brasil, a idéia de atender as vítimas no local da emergência é tão antiga
quanto em outros países. Data de 1893, quando o Senado da República aprovou a
Lei que pretendia estabelecer o socorro médico de urgência na via pública,
sendo que o Rio de Janeiro, no momento, era capital do país (4). Consta ainda
que em 1899 o Corpo de Bombeiros (CB) da então capital do país, punha em ação a
primeira ambulância (de tração animal) para realizar o referido atendimento,
fato que caracteriza sua tradição histórica na prestação desse serviço. Em
meados dos anos 50, no século passado, instala-se em São Paulo o SAMDU -
Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência - órgão da então
Secretaria Municipal de Higiene (5,6).
Os Corpos de Bombeiros (CB), no Brasil, há muito tempo realizam o serviço
emergencial em diversas situações, incluindo o Resgate e Salvamento de pessoas;
embora por muito tempo tenha sido realizado por profissionais pouco
qualificados - para o cuidado em si -, as viaturas serem inadequadas e os
recursos materiais insuficientes. Somente a partir da década de 80 o APH passou
a ser aplicado de forma mais sistematizada por alguns CB, os quais deram início
à estruturação dos Serviços de Atendimento Pré-hospitalar - SvAPH. O CB, em
cada unidade da Federação, foi estruturando o APH conforme as suas
peculiaridades, sendo estes sistemas gradativamente, espalhados pelo Brasil e
tomando proporções diversas. Atualmente, muitos já dispõem do socorro aéreo. Um
dos programas pioneiros de socorro extra-hospitalar aeromédico, iniciado em
1988, foi CB/RJ, em associação com a Coordenadoria Geral de Operações Aéreas do
Estado do Rio de Janeiro - CGOA (7).
Uma das experiências mais importantes ocorreu em 1989 em São Paulo, quando
através da Resolução 042 de 22/05/89 teve origem o Projeto Resgate desenvolvido
em conjunto pela Secretaria Estadual de Saúde (SES) através do SAMU-SP e a
Secretaria de Segurança Pública (SSP) através do CB e Grupamento de Rádio
Patrulhamento Aéreo.(8,9) Para esse serviço adotou-se uma sistemática de
atendimento mista, ou seja, nos moldes e tecnologia do modelo norte-americano
com adaptações do modelo francês. Atualmente o CB de SP (capital) opera com
Unidades de Resgate (UR) tripuladas por Bombeiros Socorristas com o curso
Resgate, em conjunto com o SAMU, através de Unidades de Suporte Avançado (USA),
tripuladas por médico e enfermeiro do SAMU, e um bombeiro motorista (10).
Outras importantes cidades de São Paulo, adotaram exclusivamente o modelo SAMU.
Outro modelo misto consiste no Sistema Integrado de Atendimento ao Trauma e
Emergências - SIATE, proposto pelo Ministério da Saúde (MS) e implantado
inicialmente em 1990, em Curitiba, numa ação conjunta entre a SES e SSP. Na
ocasião, o atendimento era realizado pelos Socorristas do CB e contava com
"médicos dentro do sistema regulador que poderia ser deslocado para o local da
emergência quando necessário, dependendo da situação" (11, 12:38).
O SIATE serviu de modelo para uma reestruturação do APH em nível nacional
iniciada a partir de 1990 com a criação do Programa de Enfrentamento às
Emergências e Traumas (PEET) pelo MS, cujo objetivo era redução da incidência e
da morbi-mortalidade por agravos externos por meio de intervenção nos níveis de
Prevenção, APH, Atendimento Hospitalar e Reabilitação. Um dos níveis desse
programa, o Projeto de APH (PAPH) coube aos CB, considerando que muitos já
executavam esse atendimento de forma incipiente. A partir daí, tornaram-se
responsáveis pelo APH às emergências e traumas no âmbito público. Contudo,
somente o CB do Estado do Rio de Janeiro dispunha de "Quadro de Saúde" -
oficiais médicos e praças auxiliares/técnicos de enfermagem - para realizar o
APH. Nos demais estados os bombeiros passaram a ser treinados num curso básico
de Socorristas e denominados de Agentes de Socorros de Urgências (ASU) -
treinamento baseado e equivalente ao Treinamento em Emergências Médicas Básico
- TEM dos EUA . O PEET-MS promoveu em 1991, no Distrito Federal (DF), o
primeiro curso de instrutores (multiplicadores) de ASU, quando foi adotada a
sistemática de atendimento com base no método mnemônico ABCDE do ATLS, adaptado
ao APH pelo PHTLS, nos EUA na década de 801. Essa sistemática foi inicialmente
traduzida e adaptada para os "Socorristas" inclusa na denominação avaliação
primária/secundária e posteriormente substituída pelas denominações avaliação
inicial, dirigida e continuada (7, 13).
A partir desse marco, os SvAPH, nos diferentes estados, foram sendo construídos
mediante conflitos ao tender por basear-se no modelo americano ou francês,
tendo em vista que na época, alguns gestores estaduais de saúde também buscavam
convênios com o SAMU francês. No Rio Grande do Sul (RS) foi adotado um modelo
através do CB com referência ao norte-americano e, especificamente no município
de Porto Alegre, o Hospital Municipal de Pronto Socorro (HPS), em meados de
1995, iniciou a implantação do SAMU, através de um termo de cooperação técnica
com a França (12). Atualmente o SAMU de Porto Alegre opera com médico regulador
que comanda o atendimento - através da Central de Regulação - realizado por um
técnico de enfermagem e um motorista. Quando necessário, o médico vai ao local
da emergência através de veículo de ligação rápida, transformando a unidade de
atendimento em UTI móvel (14).
Já em Santa Catarina (SC), o primeiro serviço foi instalado junto ao CB de
Blumenau em 1987 e foi aperfeiçoado com o PAPH-MS a partir de 1990.Vários
cursos de ASU foram realizados em todo o Estado. Em 1995, o CB em convênio com
o Centro de Ciências da Saúde da UFSC, realizou o primeiro (e único) curso de
Técnicos em Emergências Médicas, similar ao TEM-I (Intermediário) dos EUA.
Posteriormente, reconhecendo o denominado Suporte Básico de Vida (SBV) como
cuidado de enfermagem, foram realizados cursos de Auxiliar de Enfermagem,
através do Projeto Auxiliar de Enfermagem, de responsabilidade dos
Departamentos de Enfermagem e de Saúde Pública da UFSC, para os Socorristas do
CB, que posteriormente foram formados Técnicos em Enfermagem, também por
realização da UFSC, fato que caracteriza uma iniciativa única no país.
Atualmente, está em estudo a implantação em nível Estadual, o SAMU, seguindo o
modelo francês (12, 14).
A implementação do PEET-MS (extinto em 1992) foi bastante distinto em cada
Estado, já que os recursos acabaram ficando restritos à Região Sudeste do
Brasil. Entretanto, o aumento preocupante da morbi-mortalidade por causas
externas foi o que resultou num sistema de APH ligado aos CB, a partir do PEET-
MS, com a expectativa por parte dos governantes de amenizar a situação com
poucos investimentos. Com a redução dos investimentos por parte do MS a partir
de 1993, os sistemas dos CB tinham a obrigação primeira, conforme o PEET-MS, de
atender as causas externas; com o decorrer do tempo os Socorristas passaram a
ser chamados para atender às emergências decorrentes de causas naturais, de
modo que, foi se justificando a necessidade de aperfeiçoar os serviços e
implementar o SvAPH medicalizado no molde do SAMU.
3 Normatização do atendimento pré-hospitalar no Brasil
Evidencia-se até meados da década de 90, maior influência do modelo norte-
americano na conformação dos sistemas de APH no Brasil. Entretanto, por volta
de 1997, os Conselhos Regionais e Federal de Medicina (CRM e CRF), passaram a
questionar os SvAPH dos CB operados por "Socorristas", até então, carentes de
embasamento legal para atuação, salvo a missão constitucional do CB, não
regulamentada. Tal fato culminou em Resoluções dos Conselhos de Medicina sobre
o APH e, conseqüentes normatizações por parte do Ministério da Saúde (MS),
significando uma nova influência do modelo francês (SAMU). Com estas
normatizações, conforme analisamos adiante, acabam as possibilidades de se
organizar no Brasil, SvAPH a partir do modelo norte-americano, exceto a
realização do SBV.
Embora os Conselhos de Medicina dos Estados do PR (Resolução Nº 054/95) e de SP
(Recomendação nº 01/93) tivessem editado as primeiras resoluções específicas ao
APH, foi o CRM do Estado de Santa Catarina (CREMESC) que editou duas resoluções
(nº 027/97 e nº 028/97) que regulamentaram pela primeira vez no país, o
transporte de pacientes em urgência/emergência, em ambulâncias e o APH em SC
(15). As resoluções dos Estados do PR e SP, por definirem atos possíveis de
serem realizados pelos Socorristas - formados com base nos protocolos de SBV
norte-americanos, foram consideradas incipientes para a área, pela própria
corporação médica.
Nacionalmente, a primeira normatização deu-se por parte do CFM com a resolução
nº 1.529/98. Posteriormente a essa resolução, foi editada a portaria do MS nº
824 de 24 de junho de 1999, normatizando o APH em todo o Brasil. No entanto,
fazendo uma sucinta análise dessa portaria e comparando com as resoluções
anteriores, é possível constatar que têm a mesma essência, pois em síntese
regulamentam quatro aspectos: a regulação médica do sistema no molde do SAMU;
os profissionais do sistema (oriundos da área da saúde e não oriundos da área
da saúde); a formação dos profissionais, delimitando, inclusive, o conteúdo
curricular para cada categoria profissional; as normas técnicas para veículos
de APH e transporte inter-hospitalar. É possível deduzir daí, que a resolução
do CFM teve origem nas resoluções do CREMESC. Por outro lado, é fato que a
portaria do MS teve origem na resolução do CFM, pois incorporou na íntegra o
conteúdo da resolução do CFM.
O grupo de estudos que formulou propostas, que posteriormente foram levadas ao
CFM e ao MS, no sentido de buscar a regulamentação do APH e transporte inter-
hospitalar no Brasil, surgiu em 1995 - a partir do I Simpósio Internacional de
Atendimento às Urgências Pré-Hospitalares, com ajuda da cooperação francesa, da
rede 192, atual Rede Brasileira de Cooperação em Emergências (6). O MS apenas
adaptou a Portaria 824/99 da resolução do CFM nº 1.529/98 a qual, apesar de ser
relativa à categoria médica - e definida por ela - resolve, também, as ações e
formação de outras categorias profissionais, inclusive dos não-oriundos da área
da saúde, submetendo-os à supervisão médica à distância. Percebe-se que essa
normatização, veio no sentido de favorecer a reestruturação e criação dos
sistemas de APH nos moldes do SAMU. A Portaria define, entre outras coisas, que
o sistema de atendimento pré-hospitalar é um serviço médico; sua coordenação,
regulação e supervisão direta e à distância deve ser efetuada unicamente por
Médico; tem na Central de Regulação Médica, o elemento ordenador e orientador
da atenção pré-hospitalar, sendo o Médico regulador o responsável pela decisão
técnica em torno dos pedidos de socorro e a decisão gestora dos meios
disponíveis (16 ). Caracteriza-se, portanto, num sistema médico-centrado. Em
outras palavras, a primeira Portaria do MS, teve cunho abertamente
coorporativo, não reconhecendo a inerente natureza multiprofissional do serviço
e tão pouco demonstrando preocupação para além do poder corporativo.
No ano de 2000, o Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) editou a Resolução nº
225, que "dispõe sobre o cumprimento de prescrição de medicamentos/terapêutica
à distância", permitindo que os profissionais de Enfermagem cumpram prescrições
médicas via rádio/telefone, em casos de urgência ou risco de vida iminente. Na
Resolução 260/2001, o COFEN inclui o APH no rol de especialidades de
enfermagem, sem questionar a delimitação das ações de enfermagem e formação
desses profissionais para o APH por parte do MS; vale dizer, por parte dos
Conselhos de Medicina.
Já o Conselho Regional de Enfermagem do Estado de São Paulo (COREN/SP),
regulamentou as atividades de enfermagem no APH para o Estado de São Paulo,
através da Decisão COREN/SP DIR-01-2001. Apesar de considerar os cuidados de
enfermagem em simples e complexos de acordo com o nível de dependência da
vítima, ainda admite uma possível similaridade do APH, no Brasil, com a divisão
em SBV e SAV, conforme o modelo norte-americano, sendo que os militares da
Segurança Pública, desde que treinados, poderiam executar o SBV (17).
Em 2002 entra em vigor a Portaria nº 2048/GM do MS, que aprova em anexo o
"Regulamento Técnico dos Sistemas Estaduais de Urgência e Emergência". Esse
regulamento tem como baliza mecanismos criados anteriormente pelo MS no sentido
de implantar Sistemas Estaduais de Referência Hospitalar em Atendimento às
Urgências e Emergências e aperfeiçoados nessa portaria de acordo com as
diretrizes do SÚS e da Norma Operacional da Assistência à Saúde - NOAS-SUS 01/
2002. Estabelece os princípios e diretrizes dos referidos sistemas tais como
critérios de funcionamento, classificação e cadastramento de serviços;
estabelece Planos Estaduais de Atendimento às Urgências e Emergências,
Regulação Médica, APH fixo, APH móvel, atendimento hospitalar, transporte
inter-hospitalar e a criação de Núcleos de Educação em Urgências(18). Tem
caráter nacional e as Secretarias de Saúde dos estados, do Distrito Federal e
dos municípios de Gestão Plena do Sistema Municipal são responsáveis em adotar
as medidas necessárias ao cumprimento desta portaria, bem como, classificar,
habilitar e cadastrar os serviços de atendimento às urgências e emergências já
em funcionamento. Nota-se ainda, que NOAS-SUS 01/2002, foi editada como anexo
de Portaria Ministerial e também não passou por discussões no Conselho Nacional
de Saúde e pelos fóruns de controle social da saúde que o antecedem(18).
Em linhas gerais o regulamento é uma ampliação das propostas constantes no
relatório final do III Simpósio Internacional de Atenção Pré-hospitalar às
Urgências e Traumas (Campinas/SP 1997) - que situa as políticas de emergência
exclusivamente no âmbito das políticas de saúde e delimita a regulação do
sistema de urgência enquanto exclusividade médica (15). Soma-se a isso, a
manutenção dos aspectos referentes ao APH regulamentados nas portarias
anteriores - sem mudanças essenciais - articuladas com as prerrogativas
previstas na NOAS-SUS 01/2002. Desse modo, o regulamento prevê a estruturação
dos Sistemas Estaduais de Urgências e Emergências - envolvendo toda a rede
assistencial de forma regionalizada e hierarquizada; desde a rede pré-
hospitalar fixa (unidades da atenção primária da saúde e unidades não-
hospitalares de atendimento às urgências e emergências), SvAPH móvel até a rede
hospitalar de alta complexidade -, mediados pelo mecanismo de Regulação Médica,
como elemento ordenador e orientador dos sistemas por meio de atribuições
técnicas e gestoras (18).
No âmbito desse sistema, APH móvel deve ser entendido como atribuição da área
da saúde, sendo vinculado a uma Central de Regulação Médica e todos os pedidos
de socorro médico que derem entrada por outras centrais devem ser imediatamente
retransmitidos à Central de Regulação, sendo que os serviços de Segurança e
Salvamento devem orientar-se pela decisão do Médico Regulador. Consta ainda,
que em situações de atendimento às urgências relacionadas às causas externas ou
de pacientes em locais de difícil acesso, deverá haver uma ação pactuada,
complementar e integrada de outros profissionais não oriundos da saúde,
formalmente reconhecidos pelo gestor público para o desempenho de ações de
Segurança, Socorro Público e Salvamento, tais como: sinalização do local,
estabilização de veículos acidentados, reconhecimento e gerenciamento de riscos
potenciais, obtenção de acesso ao paciente e SBV (18). Mesmo que o APH seja
considerado atribuição da área da saúde e que a figura do Socorrista tenha sido
excluída, os profissionais responsáveis pela Segurança Pública (inclusive
Bombeiros Militares), devem realizar o denominado SBV com ações não invasivas,
bastando que sejam reconhecidos pelo gestor público e ajam sob supervisão
médica direta ou à distância. Do mesmo modo, o condutor de veículo de urgência
da saúde deve prestar o socorro básico a fim de auxiliar a equipe de saúde no
local da ocorrência. Entretanto, é garantido a esses profissionais, apenas o
treinamento nos moldes do SBV norte-americano.
Como o Regulamento Técnico, sob resquícios de influências do modelo norte-
americano, divide o APH em SBV e SAV, as competências/atribuições das
diferentes categorias profissionais de enfermagem estão longe de serem
definidas em conformidade com o seu ofício de cuidar sob as condições das
respectivas legislações do Exercício Profissional e, de modo geral, confundidas
com as denominadas ações de SBV. Fica estabelecido, apenas, que a ambulância de
SAV deve ser necessariamente tripulada por um enfermeiro, conforme constava na
resolução do COREn-SP com base na Lei do Exercício Profissional de Enfermagem,
por tratar-se de cuidado complexo. Há ainda, no Regulamento Técnico, o
argumento de que as urgências não se constituem em especialidade médica ou de
enfermagem e nos cursos de graduação a atenção dada à área ainda é bastante
insuficiente (18). Sendo assim, propõe aos gestores do SUS, a criação de
Núcleos de Educação em Urgências - NEU. Salienta-se que tais núcleos devem se
organizar como espaços de saber interinstitucional de formação, capacitação,
habilitação e educação continuada de recursos humanos para as urgências(18).
São definidos os currículos (temas, conteúdos, habilidades) com cargas horárias
mínimas para a habilitação e certificação dos profissionais da área de
Atendimento às Urgência e Emergências, oriundos e não oriundos da área da
saúde, inclusive aqueles de sistemas privados de APH. Contraditoriamente à
afirmação de que as urgências não são especialidades, o núcleo se caracteriza
como espaço de especialização do saber e embora sua composição inclua as
instituições de ensino superior, seus princípios norteadores e objetivos
estratégicos não incluem a pesquisa na área. Fato que significa o caráter de
mero transmissor de conhecimentos produzidos e sistematizados em países que
detém, inclusive, a patente da produção2 de vários aspectos desse conhecimento.
3 Dos descaminhos às perspectivas
Constatamos que a trajetória do APH no Brasil, atualmente, é desviada para os
moldes do modelo francês, inserido num complexo sistema de urgência/emergência
que envolve toda a rede assistencial em saúde, mas ainda guarda resquícios da
aproximação com o modelo dos EUA. A normatização vigente, tem no médico
regulador, o elemento centralizador não somente do que se refere ao
funcionamento do sistema mas, sobretudo, em relação ao domínio do conhecimento
que é, em essência multiprofissional. O médico regulador é o gestor do sistema,
ordenador e orientador técnico de todas as categorias profissionais e
instituições envolvidas, e é, também, a quem a sociedade deverá recorrer quando
se tratar de um agravo à saúde, pois os problemas sociais dos quais resultam
esses agravos foram transformados em problemas do Setor de Saúde e,
consequentemente os problemas de saúde em problemas médicos; fato que não
poderia resultar, se não, do paradigma do ato médico3, para o qual todas as
outras profissões da saúde são consideradas meros meios auxiliares, tendo em
vista que todas as ações de saúde - tratamento, diagnóstico, cuidado e,
inclusive a prevenção - são consideradas privativas da Medicina.
Nessa simbiose do modelo francês com o modelo norte-americano, nossa realidade
se torna indiferente. Haja vista - para além dos problemas relacionados à
centralização do sistema na Regulação Médica - a normatização recente que
admite a divisão do sistema em SBV e SAV. Essa forma de compreender os SvAPH
gera sérias distorções e problemas éticos, tendo em vista que a divisão desses
serviços em SBV e SAV tem origem num modelo com características diferentes da
nossa realidade. As categorias profissionais que constituem o APH nos EUA não
foram possíveis de se constituírem em nosso país, dado o nível de
institucionalização das práticas de saúde numa outra direção. Consequentemente,
tal analogia é incompatível com a realidade e com as possibilidades concretas
existentes em nosso país. Não existe similaridade de categorias profissionais
historicamente institucionalizadas no Brasil e nos EUA, no que se refere ao
APH. Em outras palavras, não existe qualquer relação possível entre aquelas
divisões (SBV e SAV) e as ações inerentes às categorias profissionais de saúde
existentes no Brasil, ou seja, as ações de APH sejam de cuidados e/ou
tratamentos, podem ser simples ou complexas dependendo da situação da vítima
que necessita do socorro. Se for assim, o denominado SBV realizado por vários
elementos do sistema sob supervisão médica direta ou à distância, estão no
âmbito dos cuidados de enfermagem e, portanto, a supervisão destes cuidados é
de responsabilidade legal do profissional enfermeiro. Conseqüentemente, a
ordenação, supervisão, orientação direta e à distância (regulação) não podem
ser apropriadas pela Medicina.
Sob esse prisma, definitivamente as medidas iniciais de atendimento que
constituem o APH, enquanto sistema, devem ser realizadas por profissionais com
formação na área de saúde, independentemente desse profissional ser membro do
Setor de Saúde ou de Segurança Pública, do qual fazem parte os CB que têm a
missão constitucional de realizar o Salvamento e Resgate. Respeitado esse
princípio, para as emergências decorrentes de causas violentas que envolvem a
Segurança Pública e Justiça, é conveniente que haja um elemento efetivo do
setor de Segurança Pública, a fim de favorecer ações integradas. Nessas
circunstâncias, para que ocorra o atendimento ao agravo à saúde de forma
eficiente, o APH depende fundamentalmente dos serviços de Segurança Pública, do
mesmo modo, que a Segurança Pública e a Justiça dependem do APH, pois a contra-
referência para as causas violentas se dá, também, no sentido de apurar os
fatos. Se for assim, referindo-se às causas violentas e outras que necessitam
Resgate, os serviços de APH devem estar interligados aos serviços de saúde e
integrado ao SUS, no sentido de favorecer o processo de reabilitação e retorno
das vítimas à sociedade, bem como a não fragmentação dos serviços de
assistência à saúde, mas também à Segurança Pública na perspectiva de favorecer
a apuração dos fatos e a prevenção dos eventos.
Portanto, o SvAPH que compreendemos necessário é aquele que não prescinde de
modernos recursos tecnológicos e do mais elevado conhecimento técnico-
científico específicos às categorias profissionais que o devem compor, numa
perspectiva multiprofissional e disponíveis de forma igualitária a toda a
população. Infelizmente o desenvolvimento das atividades de APH no Brasil, tem
sido mais uma espécie de disputa entre poderes corporativos e competições
institucionais que se estruturam na esfera do Estado. Mediante conflitos que se
sucederam, poderíamos dizer que no plano das idéias prevaleceu a hierarquia das
disciplinas. De todo modo, ao serem implementadas, tais normatizações poderão
trazer reais melhorias na qualidade assistencial em saúde, desde que garantida
a participação dos seguimentos envolvidos. Além disso, é preciso prover,
também, investimentos adequados tanto em recursos humanos quanto em recursos
materiais para o pleno funcionamento do serviço. Entretanto, vários são os
entraves que poderíamos apontar, que caminharam e ainda caminham no sentido
contrário ao referido princípio. A história mostra que reais conquistas no
âmbito das políticas sociais ocorreram mediante ampla participação popular no
sentido de reivindicar o atendimento das necessidades sociais. É justamente
isto que faltou no decorrer da trajetória do APH. Como resultado tem-se uma
política para a área, definida no interior dos gabinetes a partir de sugestões
discutidas por grupos hegemônicos.
É perfeitamente aceitável que o Regulamento Técnico dos Sistemas de Urgências e
Emergências considere que os diagnósticos das necessidades de saúde na área de
urgência e emergência sejam amplamente discutidos com todos os atores sociais
envolvidos na promoção, prevenção, atenção e recuperação aos agravos à saúde,
como Conselhos de Saúde, Gestores de Saúde, trabalhadores de saúde, prestadores
de serviços, usuários, conselhos de classe, educação, promoção social,
segurança social, transporte e outros, para então elaborar o plano estadual de
atendimento às urgências e emergências (18). Por outro lado, essa proposição é
inconcebível e contraditória tendo em vista que o plano já está pronto. Ou
seja, porquê conclamar a sociedade para discutir o diagnóstico se as ações já
estão planejadas e os atores principais já estão definidos? Ora! Se o APH é
mesmo uma atividade exclusiva do Setor de Saúde, agora inserido numa rede
assistencial de urgência/emergência, porquê sua normatização não passou pelos
fóruns de discussão que têm como responsabilidade a construção de políticas e
controle social da saúde? É preciso refazer o caminho percorrido até então, de
modo que se coloque como horizonte o compromisso social; voltado à satisfação
das necessidades sociais da maioria da população de modo a ampliar as condições
de saúde, como condição fundamental para o desenvolvimento do gênero humano, da
sua emancipação e, conseqüente, realização em sociedade. Parece então, se a
assistência de Enfermagem pré-hospitalar era um novo desafio para a Enfermagem,
no início da década de 90, agora, passa ser um velho desafio que se dissemina
no cotidiano da profissão a exigir coerência com os anseios e necessidades
sociais e de saúde (8).