"Levantamento de Recursos e Necessidades de Enfermagem no Brasil": um documento
da década de 50 do século XX
1 Considerações iniciais
Em nossa atividade docente temos constatado que o estudo que dá nome a este
artigo não é conhecido por muitas enfermeiras e mesmo por docentes de
enfermagem. Próximo de completar cinqüenta anos de existência, este documento é
um valioso testemunho dos valores e práticas de pesquisa da Enfermagem
brasileira da época. Sua posterior repercussão até hoje se faz sentir quando se
observa, por exemplo, a disponibilização de dados censitários nos sites das
entidades de classe e a preocupação dos órgãos governamentais responsáveis pelo
planejamento em saúde com a distribuição quali-quantitativa dos profissionais
de enfermagem.
Na década de 50, quando o documento foi produzido, as informações sobre
enfermeiros brasileiros dependia em grande parte dos dados armazenados na única
entidade de classe existente - Associação Brasileira de Enfermeiras Diplomadas
(ABED), mais tarde denominada Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn). O
veículo de divulgação à época - Revista Annaes da Enfermagem, noticiava
principalmente os fatos que envolviam a agremiação, e apresentava artigos de
revisão e de opinião de enfermeiras e outros profissionais da saúde. Em 1955,
esta revista passou a se intitular Revista Brasileira de Enfermagem e, no seu
papel de disseminador de relatórios de pesquisas, manteve este pioneirismo até
quando começaram a serem editadas outras revistas de enfermagem, como a Revista
da Escola de Enfermagem da USP, em 1967 e a Revista Gaúcha de Enfermagem, em
1976, dentre outras, até hoje em circulação.
Assim, um estudo de tal porte, realizado em condições excepcionais, viria
marcar, pela sua significância, a História da Enfermagem brasileira não só na
época em que foi feito, como posteriormente. Nesse particular, destaca-se o
arrojo da entidade promotora considerando: o reduzido número de enfermeiras
"diplomadas" no país e, portanto, de associadas, a busca e conquista de
financiamento internacional, o número de profissionais que mobilizou para sua
execução, a abrangência do objeto de estudo, a correção do tratamento
metodológico e as implicações do produto para as políticas de Saúde e Educação.
2 O documento
A elaboração do estudo iniciou-se em 1955, provavelmente com o objetivo de
favorecer o desenvolvimento da Enfermagem e controlar o exercício da profissão,
entre outros motivos porque, na época, em decorrência do conflito mundial
encerrado na década anterior, situações de excepcionalidade econômica e
política em outros países provocava a imigração de enfermeiros estrangeiros
para o Brasil. Registre-se ainda que um levantamento de dados preliminar, de
âmbito restrito, fora divulgado em 1950, mas só anos mais tarde foi constituída
uma comissão para concretizar esse intento(1).
É possível inferir ainda que a realização do mesmo tenha sofrido forte
influência de trabalhos de mesma natureza, realizados nos Estados Unidos, como
o traduzido para o português em 1945(2). Além disso, a busca do financiamento
pela Comissão de Intercâmbio Cultural e Profissional da ABED, acabou por
resultar na conquista do apoio das fundações W. K. Kellogg e Rockfeller, ambas
americanas. Ainda contou com a colaboração técnica da Oficina Sanitária Pan-
Americana (OPAS), o que resultou na constituição de um centro de pesquisa que
elaborou o projeto, recrutou e treinou os enfermeiros entrevistadores.
Os dados foram colhidos a partir de 1956 e o relatório final do Levantamento de
Recursos e Necessidades de Enfermagem no Brasil foi organizado em cinco partes,
como se relatará a seguir.
A primeira - "Enfermeiros em atividade e inativos" apresenta o quantitativo de
profissionais, sua distribuição nos postos de trabalho no campo hospitalar, de
saúde pública e de ensino, e as causas de satisfação e insatisfação com as
condições de trabalho. O texto aponta o interesse dos afastados em voltar a
trabalhar em tempo parcial e inclui recomendações para estudos sobre satisfação
e insatisfação no trabalho, indicando, como um atrativo para esses
profissionais, a facilidade para atualização e formação no nível de pós-
graduação.
A segunda - "Enfermagem Hospitalar", contém informações sobre os
estabelecimentos hospitalares, a organização do Serviço de Enfermagem nessas
instituições, a implementação de Educação em Serviço e o Treinamento de
Atendentes de Enfermagem. Naqueles tempos, o quantitativo de profissionais de
enfermagem era limitado, utilizando-se a prática de treinar leigos, em serviço,
nos próprios hospitais, para a execução de tarefas elementares. Chama a atenção
ainda, a existência, na época, da diminuta relação de pessoal de enfermagem /
leito, apontada pelas relatoras como conseqüência do desconhecimento pela
população, dos direitos à assistência de enfermagem de qualidade, conceito até
hoje valorizado.
A terceira parte - "Enfermagem em Saúde Publica" aborda a distribuição nos
serviços federais, estaduais e nos chamados centros de saúde. Nas recomendações
desse capítulo, observa-se a prescrição de capacitação dos enfermeiros para o
trabalho com grupos de clientes. Há interessantes comentários sobre uma
categoria profissional com quem houve disputa no campo de atuação - a
visitadora sanitária.
A quarta parte - "Escolas e Cursos de Auxiliar de Enfermagem", aponta a
distribuição geográfica das instituições de ensino e a composição dos corpos
docente e discente. Os reparos a serem feitos no currículo de formação do
auxiliar de enfermagem são indicados pelas autoras, e foi feita uma crítica à
ausência de interesse do Ministério da Educação e Cultura nesse tipo de ensino.
Evidentemente, não houve comentários sobre o técnico de enfermagem uma vez que
a questão só passou a freqüentar as discussões da classe nos anos 60.
Finalmente, a quinta parte - "Escolas de Enfermagem" caracteriza os
estabelecimentos, suas instalações, os corpos discente e docente e os aspectos
financeiros. Quando o estudo foi realizado, havia 33 escolas de formação de
enfermeiros, com maioria na região sudeste. O nível de detalhamento do estudo
abrange as instalações e chega à indicação do número de exemplares de livros
didáticos nas bibliotecas, dentre outras preciosidades.
A apreciação do estudo não se restringe à descrição da realidade observada, mas
deve se estender para a proposição das etapas da investigação, detalhadas no
próprio documento, numa demonstração do pioneirismo e rigor adotados no seu
planejamento e realização. Assim, pode-se tomar o documento em pauta como um
marco também da pesquisa em enfermagem no Brasil (3).
Em um estudo realizado por Carvalho(1), há um capítulo com cerca de 30 páginas
em que discorre sobre esse estudo, contando desde os seus antecedentes até a
conclusão. Consultá-lo permite conhecer as personagens que dele participaram e
as diversas etapas, inclusive os componentes da Comissão de Seguimento do
Levantamento que operou até 1964.
3 Considerações Finais
O referido estudo, desde seu início, propiciou recomendações a vários órgãos.
Como exemplo, cita-se o que constou como recomendação do IV Congresso
Brasileiro de Enfermagem, realizado em Salvador-BA em 1950, "obter apoio do
Ministério da Educação e Saúde, a fim de realizar periodicamente o censo das
enfermeiras diplomadas e das várias categorias de pessoal auxiliar de
enfermagem"(4).
O fato do relatório final ter sido divulgado em cópias mimeografadas somente em
inglês contribuiu para o conhecimento restrito sobre o estudo. Essas cópias, em
número reduzido, foram distribuídas para as líderes da Enfermagem. A publicação
em português, também em edição numericamente restrita, só ocorreu no início dos
anos 80(5). Ainda assim, o relatório esteve disponível para consulta em
bibliotecas de Enfermagem que são referência no país, como as das principais
escolas de enfermagem e, mesmo assim, poucas menções a ele são feitas em
estudos mais recentes. Dentre estes, merece destaque o trabalho realizado por
Brandão(6), que estudou três gerações de enfermeiras pesquisadoras brasileiras,
identificando a primeira delas como a "das pioneiras" - a que despontou nos
anos 50, atribuindo destaque em seu comentário ao documento ora em foco como um
marco da pesquisa em Enfermagem, que propiciou o reconhecimento social da
categoria e permitiu aos enfermeiros enunciar um discurso autorizado sobre a
profissão.
O desconhecimento de tão importante documento pode ser explicado pelo fato do
estudo da História ainda ser pouco valorizado em nosso país, o que se reflete
também no pouco interesse de parte significativa dos profissionais de
enfermagem pela História da Enfermagem brasileira. Apesar de Barreira e
Baptista(7) terem descortinado um panorama mais favorável para a pesquisa e a
divulgação de estudos sobre a História da Enfermagem no Brasil, é preciso
reconhecer que isto se dá, principalmente, no âmbito acadêmico e pouco se
estende para o profissional que desempenha sua atividade em espaços distantes
desse meio.
Assim, ainda é válido perguntar: Será que nós, enfermeiros, não deveríamos
preocupar-nos em saber daquilo que foi recomendado após o referido estudo, o
que foi obtido e aquilo que não se obteve? A despeito dos trabalhos
posteriormente realizados sobre esta temática pelas associações de classe de
Enfermagem, trinta anos depois(8,9), não estaria na hora de repetir o estudo
para buscar saber, entre outras informações, como estão os profissionais de
enfermagem ativos os inativos e os que exercem outras profissões/atividades,
como consta em um artigo(10) de 1998?
As áreas de atuação a serem investigadas hoje se resumiriam na saúde pública e
hospitalar? Certamente não pois, além das atividades nessas áreas estarem
ampliadas e modificadas, outras possibilidades se apresentam. Em compensação,
poderia ser irrelevante hoje buscar informações sobre o atendente de
enfermagem. Dentre os dados a serem coletados sobre escolas e cursos de
formação de profissionais de enfermagem dever-se-ia incluir o técnico de
enfermagem, as especializações e a pós-graduação senso estrito.
Muitas outras perguntas e propostas poderiam surgir, tal como naquela época, o
que instigou um grupo de enfermeiras corajosas a realizarem o estudo. Assim,
este artigo, mesmo tendo características histórico-documentais pretendeu
instigar a consulta ao documento, informar de sua existência aos pesquisadores
interessados no tema e propor questões de sua análise à luz da realidade do
início do século XXI.
Próximo de seu cinqüentenário, o "Levantamento de Recursos e Necessidades de
Enfermagem no Brasil, 1956-1958"(5), continua mais vivo do que nunca,
representando importante marco na História da Enfermagem brasileira.