A enfermagem na ressignificação da vida diante da enfermidade
REFLEXÃO
A enfermagem na ressignificação da vida diante da enfermidade
Nursing in life resignification on face of disease
El oficio de enfermero en la resignificación de la vida delante de la
enfermedad
Lucilda SelliI; Eloir Antonio VialII; José Roque JungesIII
IDoutora em Ciências na Saúde Pública.. Professora e Pesquisadora no PPG em
Saúde Coletiva - Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
IIAcadêmico de Enfermagem. Bolsista PROBIC/FAPERGS UNISINOS
IIIDoutor em Ciências da Saúde/Bioética.Professor e Pesquisador no PPG em Saúde
Coletiva - UNISINOS
1. INTRODUÇÃO
O trabalho no campo da saúde sofreu grandes transformações por influência de
reformas sanitárias acontecidas na década de 90 e, também, como decorrência das
transformações estruturais ocorridas por causa dos processos de globalização e
integração econômica, da evolução demográfica e epidemiológica, do
desenvolvimento tecnológico, dos novos atores que entraram em cena e devido às
mudanças nos paradigmas em saúde pública(1). As reformas querem responder a
perfis mais complexos de saúde, exigindo estratégias de intervenção mais
audazes orientadas a modificar as condições de vida, as iniqüidades e os
comportamentos individuais e coletivos(2).
A ressignificação é um processo de subjetivação pelo qual a pessoa se apropria
da sua doença, levando a um reordenamento, mudança e nova concepção de vida
para se situar no atual contexto existencial provocado pela doença. É nesse
universo existencial que a pessoa/doente é visitada e re-visitada pela
inquietação gerada pela nova situação vivencial. A percepção e apropriação
desta realidade, interpenetrada de campos de sentido afetivo-existencial,
auxiliam no sentido de redefinir e reorganizar continuamente seu horizonte de
significação, seu sentido vital(3).
O processo de ressignificação da vida frente à situação de doença é entendido
como a capacidade de "modificar o molde pelo qual uma pessoa percebe os
acontecimentos, a fim de alterar o significado. Quando o significado se
modifica, as respostas e comportamentos da pessoa também se modificam"(4). Esta
é influenciada pelo ambiente sociocultural e pela atitude do profissional da
saúde. A reflexão recolhe um viés teórico de análise o papel educativo do
trabalhador da saúde dos dados coletados em entrevistas semi-estruturadas, com
sujeitos enfermos crônicos, baixados em um hospital da grande Porto Alegre
(RS), e suas reações diante da doença.
Assim, a produção do artigo sobre o papel do profissional da saúde como
educador no processo de ressignificação da vida frente à doença originou-se da
constatação de que este tem um papel importante na subjetivação do processo
saúde/doença, sendo um fator marcante nessa construção.
2. CONTEXTO E SITUAÇÃO DO TRABALHADOR EM SAÚDE
As tecnologias aplicadas à saúde predominam no tratamento da doença e no
processo da cura, trazendo benefícios e suscitando expectativas cada vez mais
promissoras, porém, em muitas situações, são irreais para as pessoas vitimadas
pela doença. Portanto, constituem um elemento cada vez mais presente no
processo de ressignificação, visto que a mentalidade técnica configura sempre
mais o próprio contexto sociocultural. Embora as tecnologias da saúde abram
perspectivas positivas para os usuários, elas não penetram o âmago das questões
humanas existenciais mobilizadas, sobretudo, em situações de vulnerabilidade,
como é o caso da doença(5).
Por sua vez, o crescente uso de tecnologias, associado à visão mecanicista, que
percebe o corpo humano como uma máquina constituída de órgãos, peças, etc.,
força o profissional da saúde a avançar, sucessivamente, em campos específicos
de especialização. Essa exigência é influenciada não apenas pela resposta
tecnológica, mas, ao mesmo tempo, pelo ponto de vista que percebe a doença e
não o ser humano doente. A especialização, ao mesmo tempo em que aprofunda um
conhecimento, encaminha-se a uma fragmentação do saber e do próprio paciente.
Em lugar de tratar a pessoa doente, o especialista tende a tratar a patologia
de sua especificidade(6). Este fato favorece um domínio específico de saber
técnico/prático, entretanto, limita o profissional no sentido de desenvolver
uma visão integral da saúde humana.
Na década de 70(7), já se alertava sobre a substituição do médico artesão, com
habilidades fundadas no conhecimento pessoal dos indivíduos, pelo médico
técnico, que aplica regras científicas a categorias de doentes. O que antes era
considerado abuso de confiança e transgressão da moralidade, agora, pode ser
racionalizado como falha técnica ocasionada pelos equipamentos ou por seus
operadores.
A falta de uma relação mais empática pela redução da prática a um exercício
predominantemente técnico não permite ao trabalhador da saúde ser um mediador
do necessário processo de subjetivação do usuário. É importante que ele
compreenda esse movimento de ressignificação de subjetividade frente à doença.
Considerar o significado para a promoção da saúde, estando atento à influência
do ambiente sociocultural e ao seu papel na seqüência de situações vivenciais
envolvidas no processo de ressignificação. Nesse sentido, o profissional de
enfermagem, no seu papel de educador, ajuda a pessoa, em situação de doença, a
interpretar e reinterpretar sucessivamente a sua própria doença, levando-o a
familiarizar-se(8)com o novo, possibilitando ao usuário criar condições de agir
consciente no processo de ressignificação da vida frente à doença.
3. A DIALÉTICA INDIVÍDUO/SOCIEDADE
As relações entre o indivíduo, considerado em sua complexidade, e o social
entendido como representação social e coletividade social no processo de saúde/
doença, não são facilmente percebidas e compreendidas pelos indivíduos, tanto
profissionais quanto pacientes. A própria percepção da saúde ou da doença é
influenciada pela posição social e pela cultura do grupo social de referência
do indivíduo(8). O processo educativo implica perceber o indivíduo/sujeito
inserido em um determinado contexto sociocultural e os significados
representativos, assimilados pelo mesmo como construções de vida/saúde/doença.
A doença, como fenômeno intimamente ligado à vida privada dos indivíduos, é,
raramente, um caso isolado(9).
Outro aspecto é a autonomia, que, expressa pelo indivíduo que se apropriou de
sua realidade, é entendida, neste contexto, não como liberdade absoluta,
emancipada de qualquer dependência, mas como autonomia em dependência do seu
meio ambiente, seja ele biológico, cultural ou social(10). Ou seja, trata-se de
uma autonomia entendida como sujeito que integra e interage no ambiente e com o
ambiente em suas diferentes formas de expressão. O profissional da enfermagem
tem o desafio de investir na construção conjunta de um projeto que englobe a
complexidade e a multidimensionalidade das necessidades de saúde. Trata-se de
articular os saberes e as ações de outros âmbitos da produção do cuidado, tais
como educativo, preventivo, psicossocial, comunicacional, que aparecem como
periféricos ao trabalho nuclear da assistência médica individual(11). Além de
articular os diferentes saberes, o trabalhador da saúde, como sujeito mediador
no processo de ressignificação, é interpelado a desenvolver competências que
possibilitem um olhar para a pessoa em sua existência total(5), isto é,
compreendendo o ser humano em sua integralidade e não apenas como portador de
doença.
A apropriação da saúde e da doença, a partir de construções de sentido, implica
um processo de subjetivação. Essa construção tem a ver com as representações
culturais presentes no contexto social. Os seres humanos interpretam suas
experiências a partir de referências simbólicas presentes nos significados
socialmente aceitos(12). Daí a importância de conjugar a dialética indivíduo/
sociedade no processo saúde/doença/ressignificação. Este processo implica uma
postura de desnaturalização das situações tidas, rotineiramente, como normais,
no saber/fazer profissional, possibilitando, deste modo, espaço para a
problematização das situações permeadas nas práticas cotidianas. Esse
distanciamento crítico caracteriza um momento de conscientização e, portanto,
uma atitude profissional ética e educativa.
3. O PROCESSO DE SUBJETIVAÇÃO
A construção de políticas de educação em saúde, pautadas pelo compromisso com a
defesa da vida, não pode minimizar o papel dos processos nos quais as
subjetivações se produzem e reproduzem. Intervir nas organizações significa
intervir nas construções de sentido. Uma questão candente está relacionada às
organizações, cuja questão é o que fazer com as mesmas uma vez que a essência
destas são também a essência de seus trabalhadores(13). Avançando nesta
discussão(14), ao adentrar a micropolítica do trabalho vivo em saúde, enfatiza
que mexer em processos de trabalho é mexer com cabeças e interesses, ou seja, é
mexer em subjetivações.
A subjetividade tem consistência e sentido em um mundo infinitamente plural
apenas e na medida que se compõe pluralmente(3), ou seja, é na relação que se
constrói e reconstrói a subjetividade. Dessa forma, o trabalhador da saúde,
pelo seu saber/fazer profissional, constitui elemento chave para o indivíduo/
sujeito, contribuindo no re-apropriar dos componentes da subjetividade e
instaurar processos de ressignificação.
Para entender a subjetividade consideramos as idéias dos biólogos Maturana e
Varela(15), os quais revolucionaram a compreensão dos seres vivos ao proporem a
definição de sua identidade não mais a partir de características morfológicas,
mas de sua organização autopoiética. Qualquer sistema vivo conforma-se como
autopoiese, pois está capacitado a reordenar seus componentes numa nova
organização quando sofre perturbações. Nesse sentido, a autopoiese é a
capacidade de reagir de todo ser vivo.
Assim, o que caracteriza um ser vivo não é apenas os seus componentes ou a soma
deles, mas inclusive a forma própria de organizá-los devido à sua capacidade
autopoiética. Essa auto-organização depende da interação do ser vivo ao seu
ambiente. O ser vivo morre quando perde essa capacidade auto-organizativa,
porque não consegue fazer frente à desordem provinda do meio ao qual está
ligado(16).
O ser humano detém uma organização autopoiética muito mais complexa por ser um
ente ao mesmo tempo biocultural provido de linguagem e consciência. A
autopoiese humana significa uma complexificação da capacidade de reordenar seus
componentes em uma nova organização. Saúde significa autopoiese; doença um
ataque à organização autopoiética. Neste sentido, saúde não pode ser definida
ou caracterizada simplesmente pela presença de certos componentes, contudo pela
capacidade de auto-ordenar, re-ordenar esses componentes em uma nova composição
existencial. Essa capacidade autopoiética identifica-se com o processo de
subjetivação e é influenciada pelas representações culturais e pelo contexto
social. Por isso, no ser humano, a organização autopoiética tem uma
complexidade que engloba as dimensões: somática, psíquica, social, cultural e
espiritual. O funcionamento da organização autopoiética depende do seu
acoplamento ao ambiente.
Além da organização autopoiética (biológica), o ser humano é constituído de um
conjunto de processos sociais e intrapsíquicos, a resiliência, ou seja, "... a
capacidade do ser humano para fazer frente às adversidades da vida, superá-las
e, inclusive, ser transformado por elas"(17).A capacidade reativa depende dos
recursos fornecidos pelo meio que, para o ser humano, é essencialmente
sociocultural. O profissional da saúde ocupa um papel de destaque no
fornecimento de recursos para autopoise e resiliência, substanciais para o
processo de ressignificação.
4. COMPETÊNCIAS PARA AS PRÁTICAS EDUCATIVAS EM SAÚDE
Ainda consideramos que, enquanto componente das representações sociais do
sujeito/paciente/usuário, o trabalhador da saúde é parte integrante nas
compilações imaginárias, não-familiares e de um universo reificado(8), que, no
entanto, são as próprias bases constituintes para a familiarização e o universo
consensual deste sujeito.
A prática supõe também atitudes e posturas mentais, curiosidade, paixão, busca
de significado, desejo de tecer laços, relação com o tempo, maneira de unir
intuição e razão, cautela e audácia, que nascem tanto da formação como da
experiência. O conhecimento está presente em quase todas as ações humanas, às
vezes de maneira superficial; outras vezes, aprofundada e, quanto mais elas
forem complexas, abstratas, mediatizadas por tecnologias e apoiadas em modelos
sistêmicos da realidade mais conhecimentos aprofundados, avançados, organizados
e confiáveis elas exigem(18).
Dessa forma, as alterações produzidas por esse modelo educativo provocam um
deslocamento de noções: dos saberes à competência na esfera educativa; da
qualificação à competência na esfera do trabalho(19). A atuação em saúde,
respaldada por competências e com respostas educacionais adequadas, supõe
ações, avaliações e redefinições permanentes, acompanhadas pela constante
qualificação.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os determinismos históricos e culturais do ensino marcam fortemente a formação
dos profissionais da saúde. O modelo de ensino assenta-se substancialmente no
fator biológico do ser humano, com preocupação na resolução dos problemas
fisiológicos do paciente. O objeto de trabalho dos profissionais da saúde ainda
é a doença. É, em torno dela, que são elaborados os conhecimentos com uma
dicotomia marcante entre o papel educativo e curativo. O ensino, na área da
saúde, evidencia dois componentes inseparáveis: o processo de ensino e as suas
relações. Isso, colocado em prática, leva a crer que, dentro de alguns anos, as
escolas estarão graduando profissionais da saúde mais criativos, solidários,
críticos e competentes(20).
Há a necessidade da articulação político-pedagógica que viabilize a formação
profissional voltada para as necessidades da população a partir da construção
de projetos político-pedagógicos. Estes, com vistas a possibilitar a formação
de profissionais capazes de buscar constantemente o conhecimento para
solucionar os problemas que se apresentam das mais diversas formas, devem estar
voltados a uma construção de competências a fim de se apropriarem e transformá-
las num processo crítico reflexivo.
Nas instituições educacionais, permanece a falta de coerência(21) enquanto
sistema de educação. O corpo docente não está voltado para desenvolver
competências no corpo discente, isso porque leva em consideração ainda o
biológico com maior ênfase, deixando à margem a integralidade. Assim, o
profissional da saúde, como educador, não poderá contribuir com o usuário na
construção progressiva de uma vivência coerente e integral. Tal fato somente se
dará quando levar em consideração as diversas esferas, e que vão além do
biológico na composição do paciente: o imaginário, as expectativas, o conhecido
e o desconhecido, a subjetividade, as representações sociais, o familiar e não-
familiar(8). É necessário, então, que o profissional atue com competência na
implementação do saber/fazer enfermagem.
Dessa forma, o planejamento participativo constitui um instrumental de não
acomodação do educador e visibilizador na proposta pedagógica na relação (pré)
professor/aluno; e (pós) profissional/paciente no compromisso, no desejo, na
competência, podendo ajudar até a apontar onde a matéria-prima e a energia
precisam ser melhoradas(22). O processo educativo transversalizado implica
perceber o indivíduo/sujeito inserido em um determinado contexto sociocultural
e os significados representativos assimilados pelo mesmo em suas construções de
vida/saúde/doença.
É evidente o papel do profissional da saúde/educador inserido no mercado de
trabalho, do profissional criativo, ocupado com as transformações dos serviços
e competente para conduzir estas transformações. É imprescindível investir na
construção conjunta de um projeto educativo/assistencial que abarque a
complexidade e a multidimensionalidade das necessidades de saúde, que perpassa
e ultrapassa o aspecto curativo e contemple o existencial em jogo no processo
de ressignificação. Trata-se de articular os saberes e as ações de outros
âmbitos da produção do cuidado, tendo em vista a pessoa como um ser inteiro e
não apenas como um indivíduo portador de uma doença. A educação qualifica o
atendimento e constitui ingrediente fundamental no processo de ressignificação,
dessa forma, ajudando a pessoa a fazer frente à própria fragilidade e enfrentar
com propriedade as instabilidades a que, como humanos, somos submetidos.