A organização da Enfermagem do HC-UFPR: refletindo sobre seus determinantes
PESQUISA
A organização da Enfermagem do HC-UFPR: refletindo sobre seus determinantes
The organization of Nursing in the HC-UFPR: reflecting about historical
determinations
La organización de la Enfermería en lo HC-UFPR: reflexionando sobre los
determinantes historicos
Elisabeth BernardinoI; Vanda Elisa Andres FelliII
IEnfermeira.Doutoranda do Programa Interunidades da EE/EERPUSP. Docente da
disciplina de Administração de Enfermagem da Universidade Tuiuti do Paraná.
elisaber@onda.com.br
IIEnfermeira. Professora Associada do Departamento de Orientação Profissional
da Escola de Enfermagem da USP. vandaeli@usp.br
1. INTRODUÇÃO
A origem da gerência remonta ao aparecimento do capitalismo industrial que, a
princípio, detinha o conhecimento e a perícia do ofício. Como o capitalismo
cria uma sociedade onde impera o interesse próprio e prevalece o contrato de
trabalho entre empregado e empregador, a gerência torna-se um instrumento
perfeito e sutil(1).
As abordagens teóricas que buscam explicar o gerenciamento das organizações de
um modo geral e o gerenciamento em saúde e em enfermagem, mais especificamente,
partem de dois paradigmas que coexistem na atualidade: o positivista e o
materialista(2). O paradigma positivista tem sido hegemônico na abordagem do
trabalho em enfermagem e está fundamentado na Teoria Geral da Administração. Em
oposição, no paradigma materialista, o gerenciamento é apreendido enquanto
inserido nas práticas de saúde, historicamente estruturadas e socialmente
articuladas, sendo que as gerências de serviços estariam subordinadas à
política de um determinado período(2). Em aderência a esses dois paradigmas,
modelos de atenção à saúde e de gestão são operados pelos serviços de saúde
socialmente articulados(3).
Campos(3) identifica dois modelos gerenciais: o da lógica de mercado e o da
epidemiologia. Relata que o primeiro está sustentado na lógica neoliberal na
qual a prestação de saúde é organizada a partir da demanda por consumo de ações
médicas, a presença da racionalidade capitalista significando a relação
positiva entre produção de atividades e custos voltada para a assistência
médica curativista, o caráter mercantil da assistência entendida como maior
lucratividade. Refere que estes modos de produção em saúde consolidam um corpo
de conhecimentos administrativos centrados nos hospital. Relata, ainda, que o
segundo modelo - o da lógica da epidemiologia, cuja organização da produção em
saúde está voltada às necessidades em saúde. Nesta lógica, diferentemente do
modelo da lógica de mercado, a eficiência está subordinada à eficácia e à
garantia do acesso universal aos serviços de saúde, buscando a equidade e o
bem-estar social sem deixar de lado a relação custo-produção.
A forma ou modo de produção em saúde de serviços de saúde seria uma composição
concreta de recursos, sejam financeiros, materiais e força de trabalho, como
tecnologias e modalidade de atenção, articulados de maneira a constituir uma
dada estrutura produtiva e um certo discurso, projetos e políticas que
assegurem a sua reprodução social(5). Desta maneira, para um determinado modelo
assistencial implica um modelo gerencial(2).
Campos(6) afirma que inventar um modelo de gestão que responda a uma série de
exigências do próprio modelo de atenção sugerido pelo SUS é, ainda, um desafio
em aberto. Ainda para o autor, seria necessário um sistema de gestão que
assegurasse tanto a produção qualificada em saúde, quanto garantisse a própria
sobrevivência do sistema e a realização de seus trabalhadores.
Nessa concepção, é instigante analisar os modelos de gestão em enfermagem, em
um cenário específico O Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Paraná
(HC-UFPR). O HC-UFPR passou, recentemente por uma mudança gerencial, na qual
utilizou o modelo de "linha de cuidado", descrito por Cecílio(6). Este pretende
atender ao modelo assistencial que está sendo desenhado, tendo como base os
princípios da universalidade, integralidade, equidade propostas na Lei orgânica
8080(7).
O cuidado é entendido, neste modelo, como sendo o resultado de muitos
"cuidados", isto é, o conjunto de saberes e práticas de todos os profissionais,
multidisciplinar, portanto, envolvidos na produção do cuidado. Alguns aspectos
deste novo modelo, no que diz respeito a sua lógica, devem ser considerados,
para efeito deste estudo: a integralidade do cuidado só pode ser conseguida em
rede (Merhy, Cecílio, 2003), pela articulação dos inúmeros serviços de saúde; e
a convivência de múltiplas formas de coordenação, com um modo de operar
apoiado, fundamentalmente, na lógica de profissões(8).
Segundo Pires(9), a organização do trabalho em enfermagem segue a organização
hegemônica do trabalho em saúde em duas lógicas básicas: a do trabalho
profissional artesanal e a do trabalho parcelado, implicando em ações
compartimentalizadas com poucos espaços de integração. Salienta que, neste
espaço, convivem o trabalho profissional, com a divisão parcelar do trabalho e
com relações hierárquicas de comando. Refere que este trabalho parcelado é
verificado na enfermagem e em outras profissões, sendo que o profissional de
nível superior detém o poder e delega tarefas específicas aos trabalhadores de
nível médio.
A enfermagem do HC-UFPR, ao longo de seus 43 anos, se organizou conforme os
modelos de gestão adotados pela instituição, modelos estes fundados, como na
maioria dos hospitais, nas várias correntes de administração. Atualmente, por
conta do novo modelo de gestão implantado no hospital, a enfermagem sofre o
impacto de uma ruptura com os modelos anteriores de gestão. Isto porque, as
estratégias adotadas pelo grupo superior não foram consistentes, para a
implantação de uma mudança deste porte, pois permitiram suscitar dúvidas sobre
quais os reais interesses que a sustentaram.
Diante desta nova organização, os profissionais de Enfermagem demonstram
dificuldade de reorganizar a assistência em outra lógica e de fazer emergir
lideranças para a condução deste momento. Demonstram, ainda, baixa auto-estima
desencadeada por uma "provável" mudança paradigmática e pouca adesão à
coordenação de uma política de reconstrução, dentro de um novo modelo ou
retomada do modelo antigo.
Diante deste fato nos perguntamos: Quais são os determinantes da relação entre
os modelos gerenciais e a organização do trabalho de enfermagem, que podem
estar influenciando a situação e a organização de enfermagem atual?
Assim, na busca de respostas a esse questionamento e diante do exposto, nos
propusemos a desenvolver este estudo que tem por objetivos: resgatar a história
da enfermagem do HC-UFPR, segundo seus protagonistas; identificar os
determinantes históricos que a influenciaram; e analisar os fatos importantes
resgatados, segundo os modelos gerenciais existentes nos diferentes momentos
históricos.
2. MÉTODO
Este estudo se caracteriza como retrospectivo, no qual se utilizou apenas
fontes primárias para a obtenção dos dados. O local de estudo foi o HC-UFPR e
os sujeitos da pesquisa foram seis enfermeiras que ocuparam cargos de direção e
de chefia, desde 1961 até 2004. Estas concordaram em participar do estudo,
voluntariamente, após terem sido esclarecidas sobre o sigilo das informações e
a assinatura do termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Quando houve
saturação dos dados necessários, as entrevistas foram interrompidas,
constituindo, portanto, seis participantes.
Para as coleta de dados, utilizamos o modelo por pauta descrito por Beck,
Gonzáles e Leopardi(10), no qual as entrevistadas receberam uma relação de
perguntas norteadoras, em relação às funções, organização do serviço de
enfermagem e os principais eventos da época em assumiram o cargo de chefia.
As entrevistas foram gravadas, transcritas e as falas foram organizadas e
categorizadas, considerando dois momentos distintos: a época cronológica em que
estavam ocupando cargo de direção ou similar e nas outras épocas, quando tinham
outras atribuições dentro da instituição. A análise das falas, assim,
categorizadas permitiu identificar os modelos gerenciais de cada época e os
seus determinantes. Estes resultaram de uma ambientação entre o momento da
enfermagem na instituição, no contexto profissional e as políticas públicas da
época, que influenciavam os modelos de gestão.
A análise permitiu recompor o contexto institucional, inserido no contexto
social de cada época, no âmbito de políticas sociais, econômicas e de saúde.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise desses dados permitiu a recuperação da história da enfermagem no HC-
UFPR, sua trajetória organizacional e seus determi-nantes em quatro fases:
Primeira Fase: a fase técnica (1961-1986)
A fase técnica caracteriza-se, primeiramente, pela inserção das Irmãs
Vicentinas na organização do HC-UFPR, com maior ênfase na Enfermagem, Nutrição,
Lavanderia e Passanderia. Na verdade, o trabalho das irmãs começou quase um ano
antes da inauguração do hospital, com seis meses de treinamento no HC de São
Paulo e seis meses para a organização do trabalho em si. As três primeiras
enfermeiras do Hospital eram irmãs Vicentinas e estas recrutaram,
posteriormente, outras enfermeiras vindas de diversos pontos do Brasil. Eram
auxiliares (religiosas e leigas) e profissionais leigos, indicados pelos
médicos, com um certo "dom" para a enfermagem e que foram sistematicamente
capacitadas pelas enfermeiras para o exercício da profissão.
"...pessoas leigas mas que tinham o dom de enfermagem, encaminhadas
as vezes pelos médicos, conheciam o trabalho mas não tinham esta
profissão..."(Ea)
Estas pessoas trabalharam no planejamento, organização das unidades, confecção
de normas e rotinas, na seleção e capacitação de pessoal e detinham grande
poder.
"...o reconhecimento da estrutura da enfermagem era muito forte
dentro do hospital, a gente percebia isso..."(Eb)
A Enfermagem era denominada "T1", significando a sua subordinação à Divisão
Técnica do Hospital, passando posteriormente para Direção de Enfermagem. Sua
organização, primeiramente, era simplificada, composta por uma chefia geral,
chefias de unidade e as supervisões diurna e noturna. Não tinham muitos
intermediários, uma vez que o hospital ainda não estava em sua capacidade
total. Havia grande compromisso com o trabalho por parte do pessoal de
enfermagem e as regras eram claras e seguidas por todos. Com a ampliação dos
serviços, foram criados cargos intermediários, dando início ao parcelamento do
trabalho.
Os serviços de saúde, como os demais setores da organização produtiva,
organizaram-se na lógica em que o controle é o conceito fundamental de todos os
sistemas gerenciais e sob os princípios da gerência científica. Assim, o
hospital organiza-se para permitir a convivência, no mesmo espaço, da
especialização do conhecimento e da divisão pormenorizada do trabalho,
internamente às profissões(11).
Este foi um período caracterizado pela organização de rotinas, pela divisão de
tarefas, pela preocupação com a capacitação, pela supremacia da técnica. As
enfermeiras cuidavam, tanto da assistência aos doentes como da administração
das unidades:
"...as enfermeiras, eram, faziam chefia e assistencial. .."(Ed)
Podemos apreender, deste período, que ele reproduziu o modelo de intervenção
curativa e individual vigente, caracterizado pela institu-cionalização da
atenção médica(12). Analisando, à luz do paradigma materialista, observamos que
a prestação de serviços veio a partir da demanda em construir um hospital e
melhorar/consolidar a Faculdade de Medicina e o saber médico. Outra demanda foi
pelo ensino de enfer-magem sendo que, a partir de 1974, foi criado o Curso de
Enfermagem da Universidade Federal do Paraná.
Nesta fase aparece uma grande preocupação com a eficiência, verificada na
relação positiva entre produção de atividades/custos. Observamos, também, a
organização racional dos recursos pela consolidação do saber centrado no
hospital, investimentos grandes em formação, capacitação, organização e
reprodução de modelos considerados bem sucedidos, como HC de São Paulo.
"nós adaptamos a nossa realidade, mas nós trouxemos (de São Paulo)
muita coisa" ( Ea)
Como conseqüência, no que se refere à organização da produção de serviços em
saúde, a Administração do Hospital condicionou o modelo de organização em
enfermagem e foi condicionada pelo modelo médico vigente.
Observamos, ainda neste período, que se instala, e que perduraria enquanto
cultura organizacional, a preocupação com a assistência humanizada, demonstrada
pelos horários de visita, preocupação com o bem-estar do paciente e seus
familiares.
"...eles (os pacientes) recebiam,...nós tínhamos a possibilidade de
trazer filmes bons, alegres...aqueles filmes do Gordo e do
Magro...então eles davam tanta risada..." (Ea)
Esta fase caracterizou-se, além da reprodução do modelo hegemônico assistencial
curativista, pela construção do modelo gerencial adotado, com forte influência
religiosa e militar apreendido pela: rigidez hierárquica e definição de papéis
e funções; eficiência buscada no controle dos processos; e no estabelecimento
de padrões de comportamentos, de cuidado e de relações.
Segunda Fase: o auge do capitalismo - a abertura (1986-1994)
Esta fase representou um marco para abertura dos serviços aos apelos
tecnológicos e a lógica de mercado. Aparentemente, houve um paradoxo neste
período, pois apesar da criação de espaços de discussão e participação dos
profissionais, ainda observamos um forte poder centralizador.
"...as nossas idéias não eram ouvidas, era uma administração
extremamente autoritária...." (Ef)
Foi intensificada a verticalização da pirâmide hierárquica, com a criação, na
estrutura organizacional de enfermagem, de mais um nível intermediário,
caracterizado pela inserção de enfermeiros denominados assistenciais e
administrativos:
"...foi oficializado a figura do enfermeiro administrativo de
andar..." (Ec)
Neste momento, desencadeou-se um importante processo de informatização do
hospital, no qual foi percebida muita resistência dos enfermeiros.
"...dizendo (as enfermeiras) que estávamos exigindo delas uma atuação
de digitadoras e não mais de enfermeiras assistenciais..." (Ec)
O período foi de crescimento profissional e de delineamento de metas, as
atividades foram normatizadas e padronizadas, em decorrência da demanda por
conhecimento técnico, relacionada, principalmente, à especialização do
trabalho.
Houve a continuidade do modelo anterior (da lógica de mercado). Como referido
por Campos(4), somando-se o número de ações médico-hospitalares realizados
pelos serviços pela lógica de mercado, comparadas as produzidas na área
pública, percebe-se a importância da primeira. Na atenção individual e curativa
há um nítido predomínio do hospital sobre as demais alternativas da
assistência, evidenciando a centralidade do hospital no sistema de saúde
brasileiro.
Como também refere Pires(9), a partir dos anos 90 aparecem alguns elementos do
processo de reestruturação produtiva, como a introdução de trabalhadores
desenvolvendo múltiplas atividades, uma tendência à utilização de trabalhadores
mais qualificados, escolarizados e poli-valentes, provavelmente, pela
necessidade de qualificação de pessoal dada a inovação tecnológica.
Contextualizando, o número de enfermeiros cresceu muito para atender a grande
especialização, decorrente do Transplante de Medula Óssea e da criação das
Unidades críticas, o que exigiu maior número de pessoas mais qualificadas para
dar conta de demandas tão específicas.
"...a estrutura foi remodelada, provavelmente o número de enfermeiros
de 80 pulou para 200 bem nesse momento aí....(Eb)
Observamos, também, que os servidores começaram a serem chamados para
participar de Comissões, introduzindo uma ampliação de papéis ou uma
flexibilização, sem alteração da estrutura verticalizada e centralizada do
modelo de gestão vigente.
"...a gente optava por qual comissão a gente gostaria de trabalhar,
de acordo com as habilidades que a gente tinha..."(Ef)
Continuou a preocupação com a qualidade da assistência, humanização no
atendimento, normas e rotinas e a sistematização da assistência.
Em 1992, ocorreu o Processo de Municipalização do SUS em Curitiba(13),
demarcando o início de uma mudança paradigmática. Nesta época, também, vemos, a
forte participação do sindicato nos espaços do hospital, com sindicalistas
pertencentes ao serviço de enfermagem, fato que não se via anteriormente, dando
início à participação política dos trabalhadores da enfermagem.
Podemos apreender, desta época, que a tecnologia e a especialização do trabalho
exigiram um redimensionamento quantitativo e qualitativo de profissionais da
enfermagem. Estas foram as causas da inserção de um novo nível hierárquico, que
aumentou a distância entre elaboração e execução do trabalho, conferindo, ao
saber administrativo, maior status e poder.
Terceira Fase: o esgotamento do modelo (1994-2002)
Os anos 90 foram um período de transformação no setor saúde do País, com a
criação do Sistema Único de Saúde (SUS), público, universal e gratuito. A lei
8080, de 19 de setembro de 1990, dispõe sobre as condições para a promoção,
proteção e a recuperação da saúde(7). As constituições Estaduais e as Leis
Orgânicas Municipais(14,15) e a lei 8142, de 28 de dezembro do mesmo ano,
versam sobre a participação da comunidade e os mecanismos de recursos
financeiros do governo federal às diversas instâncias de gerência. Dadas as
dificuldades de implemen-tação desses mecanismos, Negri(16) diz que as crises
financeiras marcam os primeiros anos do SUS e comprometeram sua qualidade,
valia e desenvolvimento.
Um dos pontos mais importantes da implantação do SUS no País é a
descentralização. O SUS passa a regular-se, na sua ação cotidiana, por meio de
Normas Operacionais Básicas (NOBs) que incidem, fundamentalmente, sobre a
fração da assistência hospitalar e ambulatorial, anteriormente de
responsabilidade do INAMPS e depois da Secretaria de Assistência à Saúde do
Ministério da Saúde(14). As NOBs INAMPS/91, SUS/93, e SUS/96 aprofundaram a
descentralização (Mendes,1998). Mais recentemente, foram elaboradas as Normas
Operacionais de Assistência à Saúde (NOAS, 01/2001 e 01/2002), cuidando
especificamente do regionalismo da assistência(16).
Mendes(14) afirma que a descentralização se deu, sobretudo, no campo da atenção
ambulatorial e hospitalar. Percebe-se, ainda segundo o autor, a nítida
polarização entre o governo federal, com papel normatizador, que detinha os
recursos financeiros e os municípios, com seus novos atores sociais, que
surgiram para responder, com agilidade, por meio das secretarias municipais de
saúde, às demandas organizacionais postas pelo Ministério da Saúde.
De forma prática, com o processo de descentralização, os recursos que eram
repassados diretamente do governo ao HC-UFPR, passam a ter um intermediário que
é o gestor municipal, ocasionando uma certa "dependência" do hospital ao
gestor. Este fato pode explicar, parcialmente, os eventos sucedidos na época
relacionados à organização dos serviços, em particular, ao da enfermagem.
Campos(17) afirma que a desarticulação entre o poder local e a área hospitalar
foi agravada pela dificuldade concreta de se estabelecer qualquer nível de
integração entre os sistemas locais e os hospitais universitários e de ensino:
"Aqui nem se poderia falar em uma futura unificação , já que a lei do
SUS assegurou "autonomia administrativa" aos serviços universitários,
determinando tão somente sua "integração ao SUS" ( lei federal nº
8080, de 19 de setembro de 1990, art. 45)
Neste período, há uma mudança na condução da escolha da Direção de Enfermagem e
uma professora do Departamento de Enfermagem, que já havia trabalhado no
hospital, é indicada para assumir a Direção de Enfermagem.
"... não me lembro ao certo, sei que em uma das vezes apareceu um
grupo de professores que começou a se queixar que o hospital era
universitário, porque não tinha professor no assento?..."(Eb)
Em termos operacionais, este fato representa uma quebra no andamento dos
trabalhos (de certa forma vitoriosos) implantados pelas duas gestões anteriores
caracterizados, respectivamente, pelo novo desenho organizacional e por
relações mais democráticas. O período que o departamento chefiou o hospital,
segundo relatos, foi um período de poucas decisões e avanços.
"...achou-se que não caminhou muito, não desenvolveu muito..."(Eb)
Posteriormente, na outra gestão, há uma tentativa da enfermagem em retomar o
modelo de administração anterior, porém, a situação política interna
conflitante impede a definição de objetivos institucionais, refletindo na
própria condução diretiva do hospital, pois neste período de quatro anos,
passaram pelo hospital quatro diretores diferentes.
"...começou a briga pelo poder, ....eles(os médicos) começaram a
descobrir que estavam perdendo campo e eles quiseram resgatar o
poder..."(Ef)
Há muito empenho em continuar com os planejamentos, educação continuada,
reformulação de papéis e funções, a diminuição da distância entre as categorias
da enfermagem. Percebe-se que o clima organizacional interfere muito na
condução do momento e a tentativa de direcionar a enfermagem para ações mais
assistenciais sofreu muita resistência e fracassou.
"...foi feito um grupo de trabalho para reverter ou modificar a
supervisão, mas não foi conseguido ...até pela resistência....pela
quebra de apoio..."(Eb)
Ferraz(18) diz que os sinais fortes de muito empenho e pouco resultado,
resistência dos enfermeiros às mudanças são já alguns dos sinais de
esgotamento, como também perda de autoridade, transgressões de subordinados,
lutas coorporativas.
Em síntese, a turbulência interna, relacionada a múltiplos fatores, não
permitiu que a enfermagem se desenvolvesse. Primeiramente porque houve uma
quebra de confiança, quando foi escolhida uma Diretora que não pertencia ao
hospital. Mesmo quando assumiu outra diretora, apesar de todos os esforços para
ter um projeto próprio, o estímulo à pesquisa e aos grupos de trabalho para
melhorar a assistência, não há renovação das lideranças e o clima
organizacional muito instável, acaba por influenciar na desmotivação e apatia,
na falta de perspectivas da categoria, no isolamento das enfermeiras nos seus
setores e na migração de antigas lideranças para outras áreas.
Quarta Fase: a quebra dos paradigmas ou a crise de identidade (2002-2005)
O novo grupo diretivo que assume em 2002, efetua mudanças significativas, com
uma proposta de um novo modelo de gestão. O modelo teórico adotado é o de
"linha de cuidado" segundo as propostas de autores como Luiz de Oliveira
Cecílio, Emerson Elias Merhy e Gastão Campos.
A utilização prática da lógica da "linha de cuidado", no Hospital, seria a
criação de unidades administrativas ou assistenciais representadas pelo
agrupamento de unidades afins, ou seja, pertencentes a uma mesma "linha de
cuidados" como, por exemplo, as unidades pediátricas, de urgência/emergência,
saúde da mulher e outras, denominadas Unidades Funcionais.
Esta nova proposta de organização contemplaria alguns princípios como: a
descentralização das decisões, a participação democrática tendo como fórum os
colegiados, o cuidado integrado e a co-responsabilização. Estas mudanças
propõem modificar o desenho organizacional do hospital, alterando o organograma
tradicional em forma de pirâmide para um organograma circular demonstrando
graficamente a descentralização pretendida.
O início do processo de transição foi difícil, em especial para a Enfermagem,
que perdeu muito espaço enquanto corporação e força de trabalho. Esta perda não
ficou apenas no imaginário das pessoas, ela se concretizou pela perda da sala,
da secretária, dos assentos nos fóruns de discussão e no andamento da
implantação do novo modelo.
"...a saída da enfermagem tanto física, como estruturalmente foi
rapidamente desfeita, a própria sala que foi transferida para uma
sala externa foi feita na ausência das pessoas que estavam no dia a
dia....houve uma perda material e até emocional ..."(Eb)
"..foi muito traumático a forma, não foi bem trabalhado a perda..."
(Ef)
A Coordenação de Enfermagem foi instalada, pelo novo grupo diretivo, fora do
prédio central do HC-UFPR, em uma sala desocupada em uma casa distante, uma
quadra do hospital, no que parece ser, uma clara negação da importância da
enfermagem, enquanto grupo ou força de trabalho neste novo modelo.
A nova Coordenação foi eleita pelos servidores da enfermagem, sem conhecer
muito bem seu papel no momento. Primeiramente, porque não tinham sido definidos
os papéis e as funções no novo modelo gerencial; e, em segundo lugar, porque a
enfermagem só conhecia o modelo de gestão tradicional, do qual havia feito
parte até o momento e do qual, infelizmente, não havia surgido lideranças
capazes de assumir a reorganização fundada em outros modelos.
"...outra proposta... pra se tentar recuperar a enfermagem desta
perda (da direção de enfermagem)"... (Ef)
Houve, nessa época, uma migração de antigas lideranças da enfer-magem para
outras coordenações, configurando uma aparente contradição. Por um lado, um
fortalecimento da enfermagem pela ascensão de enfermeiras em cargos de
confiança, reconhecendo o seu potencial administrativo; e, por outro, uma
desconsideração pela representativi-dade de, praticamente, um terço do total de
servidores do hospital, da Coordenação de Enfermagem.
"...por que ela (direção) deu a essas pessoas funções tão importantes
quanto elas (as antigas lideranças) têm hoje? ...porque essas pessoas
são os alicerces deles, são a base deles..."(Ef)
As atribuições da Coordenação de Enfermagem passaram de executivas para
normativas, sem que houvesse um suporte adequado, ou seja, as funções
executivas, antes pertencentes à Direção de Enfermagem, ficaram a cargo de
setores e pessoas que não tinham familiaridade, provocando uma desorganização
administrativa.
O erro estratégico de desconsiderar o impacto da mudança tornou o período
confuso. O cotidiano da enfermagem ficou a cargo das enfermeiras
administrativas que tentaram (e conseguiram) trabalhar isoladamente, cada uma
em sua unidade, não reconhecendo, nem as outras instâncias deliberativas, nem a
Coordenação de Enfermagem como liderança, mesmo porque este papel não era
reconhecido pelos pares.
Na tentativa de restabelecer a organização da enfermagem no hospital, um grupo
começou uma discussão, primeiro entre seus pares, depois com o grupo diretivo e
obtém alguns avanços, como a volta da sala da enfermagem para dentro do
hospital, assento em todos os fóruns deliberativos e algumas assessorias. Este
novo modelo da enfermagem consegue pequenos avanços praticamente um ano e meio
após a mudança gerencial.
Após dois anos, houve uma nova eleição para Coordenação de Enfermagem e o
cenário institucional foi marcado pela convivência (nem sempre pacífica) dos
dois modelos: o antigo, presente nas unidades e serviços, que ainda não
assinaram o contrato de gestão e, portanto, não se transformaram em unidades
funcionais; e o novo, que corresponde às unidades funcionais já implantadas.
Estas são independentes administrativamente da Coordenação, porém com
subordinação normativa, que ainda não é realizada. Esta forma híbrida de
organização traz dificuldades práticas na administração das unidades, pois
enquanto a enfermagem das unidades funcionais se organiza de uma maneira, as
demais ainda trabalham quase que de forma independente.
Atualmente, ainda, há dificuldade de reconhecer o conflito instalado.
Aparentemente, sua origem (do conflito) é atribuída à perda da Direção de
Enfermagem e são muitas as discussões e movimentações neste sentido.
Dificilmente a discussão avança para a construção de modelos alternativos de
gestão. Muitas tentativas foram feitas para restabelecer uma relação de
parceria entre grupo diretivo e a enfermagem, todas sem sucesso. A quebra de
confiança dividiu grupos, opiniões e se tornou palco de disputas de poder entre
segmentos da enfermagem. As propostas de implantação dos muitos programas e
projetos para o hospital obtêm pouca adesão da Enfermagem, não importando a
origem ou os prováveis benefícios.
"...com todas as dificuldades que se teve..., quem colocou as
dificuldades foi a própria categoria, não foi a direção..." (Ef)
"...qualquer pessoa que entrar na coordenação vai ter
dificuldades...ou ela vai ser uma pessoa que a categoria coloca lá no
sentido de....agredir a direção...ou entra e compreenda este novo
modelo de gestão é contrário a equipe lá fora..."(Ef)
É um período no qual se observa a queda da qualidade da assistência, com a
perda de antigos padrões assistenciais, dificuldade de articulação pela
exacerbação dos conflitos entre as categorias de enfermagem, a apatia e
isolamento dos enfermeiros e a dificuldade de se obter pactos estratégicos que
fortaleceriam a enfermagem enquanto grupo.
Esta nova proposta de organização institucional assinalou uma tentativa de
mudança paradigmática, influenciada, principalmente (mas não totalmente), pelo
avanço do SUS na regionalização no município de Curitiba, trazido
principalmente pela norma em vigor (NOAS-SUS 01/02). Esta estabelece duas
condições de gerência municipal: a gestão plena da atenção básica ampliada,
quando o município recebe com base per capita o financiamento das ações
básicas, e a Gestão plena do sistema municipal quando o município recebe o
total de recursos federais para o custeio da assistência(19).
A mudança em curso aponta uma série de fragilidades institucionais, como a
falta de preparo, tanto dos dirigentes, como dos servidores em passar de um
modelo construído na lógica clínica, para um modelo epidemiológico, cada vez
mais construído na lógica das necessidades dos usuários. É, como afirma Campos
(1994), muito difícil mudar um modelo de gestão, sem que a maioria dos gerentes
e trabalhadores de saúde, não só estejam de acordo com a nova proposta como se
empenhem em consolidá-la.
O maior determinante para a situação atual é, sem dúvida, o próprio modelo
hegemônico (clínico e hierarquizado) construído, vivido e cultuado pela
enfermagem como sendo o modelo ideal, que não estimulou a produção de
lideranças e que impediu a ampliação das discussões, dificultando uma possível
reorganização.
Este período expõe a histórica (porque já foi percebida em outros momentos),
dificuldade da categoria em se reorganizar em novos cenários, pela falta de um
projeto próprio e pelo culto à tradição. Esta dificuldade parece estar
relacionada a alguns fatores como a cultura organizacional; o distanciamento
das políticas de saúde do dia-a-dia da enfermagem, sobretudo a hospitalar; e a
formação clássica/tradicional, como dificultadora na instituição de novas
formas de organização e perfis profissionais.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
A História da enfermagem no HC-UFPR é marcada pelas parcerias com outros atores
institucionais, pela fidelidade aos objetivos institucionais, pelo protagonismo
de muitas inovações na assistência e pela produção de enfermeiros com grande
potencial assistencial e administrativo.
As mudanças impostas, que são objeto de análise da última fase, são ainda muito
recentes e, suscitam ainda, mais perguntas que respostas. Mesmo assim,
entendemos que as dificuldades apresentadas, relativas ao reposicionamento ao
novo modelo de gestão, não são exclusividade da enfermagem. Ao contrário,
atinge todas as profissões da área da saúde. Na verdade, este cenário está
contextualizado historicamente pela mudança de modelo assistencial proposto
pelo SUS e no empenho, por parte das autoridades governamentais, pela sua
operacionalização, como um projeto viável para atender as necessidades de saúde
da população brasileira.
Os hospitais públicos e de ensino, que deveriam assumir o protagonismo destas
mudanças, não conseguem se reorganizar, institucionalmente, ao projeto nacional
de saúde que está posto. Parece ser muito difícil a transição de um modelo
construído na lógica de mercado para um modelo na lógica da epidemiologia,
cujos objetivos deveriam ser construídos a partir das necessidades dos
usuários. Esta lógica exigiria uma nova reorganização no processo de produção
em saúde, uma reorganização que nem os próprios profissionais da área da saúde
parecem estar preparados para fazê-la.
O trabalho oportunizou observar que a enfermagem do HC-UFPR organizou-se
segundo o modelo gerencial tradicional, com poucas adaptações que, em geral, se
limitaram a atender as demandas imediatas e não as que se originam na
sociedade.
A maior quebra parece ter ocorrido quando o hospital adotou um modelo gerencial
que atendia ao modelo assistencial, proposto nacionalmente (não se discute aqui
o método de implantação). A enfermagem hospitalar acostumada às práticas,
essencialmente, curativas e com forte incorporação tecnológica, parece ter
dificuldade em se reorganizar mais democraticamente e se perceber como parte de
uma cadeia de cuidados à saúde, que incluem todos os níveis de atenção.
Finalmente, acreditamos que os determinantes históricos que estão atuando nessa
realidade estão relacionados ao fato da Enfermagem do Hospital, historicamente,
se organizou orientada pelo modelo religioso e militar, instituído pelas Irmãs
Vicentinas; um outro determinante da organização da Enfermagem do Hospital, foi
a inserção de novas tecnologias médicas e a crescente especialização que,
juntas, implicaram em novos níveis hierárquicos e contribuíram para a distância
entre o planejar e o fazer; e enfim, a mudança de modelo assistencial
alterando, por princípio, o processo de trabalho da enfermagem.
É certo que a Enfermagem do HC-UFPR, não irá se reorganizar considerando
somente os princípios com os quais foi tradicionalmente construída, pois
nenhuma profissão (ou instituição) passa por esta experiência incólume. O
modelo clínico, curativista e hospitalar não será suficiente para sustentar sua
reconstrução. Como uma profissão contextualizada e articulada historicamente,
ela não poderá ir à contramão de um projeto que está sendo construído
nacionalmente.