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BrBRCVHe0034-71672006000300015

BrBRCVHe0034-71672006000300015

variedadeBr
Country of publicationBR
colégioLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0034-7167
ano2006
Issue0003
Article number00015

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O cuidado em situação de rua: revendo o significado do processo saúde-doença PESQUISA

O cuidado em situação de rua: revendo o significado do processo saúde-doença

The care of homeless person: reviewing the meanings of health-disease process

La atención a personas sin hogar: revisando el significado del proceso salud- enfermedad

Anderson da Silva RosaI; Maria Garbriela SeccoII; Ana Cristina Passarela BrêtasIII IEnfermeiro. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Saúde, Políticas Públicas e Movimentos Sociais da Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP IIEnfermeira IIIEnfermeira Sanitarista. Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP. Orientadora do estudo.

1. INTRODUÇÃO Este estudo, uma pesquisa qualitativa exploratória, fundamenta-se na premissa de que quanto maior for a desigualdade social de um país, maior será a repercussão na qualidade de vida e, conseqüentemente de saúde, da sociedade de uma forma geral e do indivíduo e sua família em particular(1). Nesta ótica o empobrecimento populacional brasileiro exerce influências significativas na qualidade de saúde dos indivíduos, uma vez que a saúde individual não se limita às suas dimensões biológica e psicológica; ao contrário, está diretamente relacionada com as condições de vida dos seres humanos e sofre influência das políticas sociais e econômicas adotadas pelos países(1).

O foco de atenção deste trabalho é a população que vive em situação de rua, em particular os adultos e idosos, bem como os trabalhadores que atuam com este segmento populacional em um centro comunitário destinado ao atendimento do povo em situação de rua. Para tal, e visando uma maior aproximação do leitor com a temática do estudo, comentaremos alguns dados sobre o "povo da rua", na cidade de São Paulo.

um número crescente de pessoas que são excluídas das estruturas convencionais da atual sociedade, como, emprego, moradia e privacidade.

Pensando no fenômeno da pobreza, são pessoas que possuem menos do que o necessário para atender as necessidades vitais do ser humano. Vivem na linha da indigência ou pobreza absoluta, onde a sobrevivência física, na maioria das vezes, está comprometida pelo não suprimento das necessidades nutricionais(2).

É neste cenário que encontramos o povo de rua.

São milhares de pessoas, de famílias, que vivem na e da rua, entretanto, quando organizados, preferem a denominação de "pessoas em situação de rua", visando caracterizar o princípio da transitoriedade deste processo de absoluta exclusão social, mesmo que no fundo, muitos saibam que sair da rua não é tão simples. As políticas voltadas a esta população, majoritariamente, são apenas compensatórias, assistencialistas(3).

Quando não são ignorados, são tratados como objetos da tutela estatal, da filantropia privada ou da caridade das igrejas. Se, por um lado, são tidos como incômodos ocupantes das vias públicas, por outro, sentem-se incomodados pelos olhares que lhes são direcionados(4). A relação público-privado se mistura no cotidiano do povo da rua.

Em 2003 a FIPE, por meio de contrato com a prefeitura de São Paulo, realizou contagem da população de rua, registrando 10.394 pessoas nesta situação.

Destes, 6.186 foram localizados nas ruas e 4.208 em albergues. Em sua maioria são do sexo masculino (84%), não brancos (64%), concentrando-se no intervalo de 41 a 55 anos de idade (35%). Foram encontrados em todos os 96 distritos administrativos da cidade, predominando nos mais centrais e na região sudeste (5), onde o comércio e serviços se concentram facilitando a obtenção de alimentos e recursos financeiros, em contra partida durante a noite esses locais são despovoados transformando-se em abrigos(6).

Para operacionalização teórica deste estudo, no que tange à Saúde adotamos o conceito de Canguilhem quando propõe que em se tratando de defini-la é necessário partir da dimensão do ser, pois é neste contexto que ocorrem as definições do que é normal ou patológico. O que é considerado normal em um indivíduo pode não ser para outro; não rigidez nesse processo. A saúde torna-se a capacidade que o ser humano tem de gastar, consumir, a própria vida (7).

Canguilhem citando Kant salienta que o ser humano não sente o bem-estar, pois esse é a consciência de viver, é o seu impedimento que provoca a reação do indivíduo com vistas a restabelecê-lo. Vale destacar que a vida não admite a reversibilidade, ela aceita apenas reparações. Cada vez que o indivíduo fica doente está reduzindo o poder que tem de enfrentar outros agravos, ele gasta o seu seguro biológico, sem o qual não estaria nem mesmo vivo(7).

Entretanto, nem sempre o indivíduo consegue escolher a melhor forma de "consumir a vida". Determinantes sociais podem interferir neste processo, muitas vezes comprometendo a qualidade de saúde das pessoas. Tal fenômeno é visível nas ruas de São Paulo, onde a miséria rompeu os limites geográficos, saiu das vilas, favelas e cortiços para as ruas e praças comprometendo a vida de brasileiros e brasileiras. Compreender esta população, suas peculiaridades, seus sonhos, sua vida, não resolve o problema da desigualdade e exclusão social, no entanto, foi o caminho que encontramos, por meio da pesquisa (enquanto mecanismo de conhecimento e denúncia social), para promover ações no sentido da inclusão pelo menos no setor Saúde.

2. OBJETIVO Conhecer o significado do processo Saúde - Doença - Cuidado para pessoas em situação de rua e trabalhadores de um centro comunitário de atendimento à população de rua na cidade de São Paulo.

3. PERCURSO METODOLÓGICO Este estudo é uma pesquisa qualitativa exploratória. Qualitativa porque parte da premissa de que existe uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, entre o sujeito e o objeto, entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito (8). Exploratória pois se destina a uma primeira exploração do problema, visando a operacionalização de outras pesquisas(9).

A pesquisa qualitativa é uma designação ampla que abriga diversas correntes do pensamento que se contrapõem ao modelo experimental, enquanto padrão único de pesquisa para todas as ciências, prevalecendo entre elas as orientações filosóficas da fenomenologia e da dialética(10). Ao contemplarmos o aspecto qualitativo do objeto estamos considerando como sujeito de estudo: pessoas, com características próprias, pertencentes a determinado grupo/ classe social com suas crenças, valores e significados(8).

Podemos afirmar que a pesquisa qualitativa requer impreterivelmente rigor metodológico, acrescido da capacidade criativa e experiência do pesquisador, que deverão estar presentes durante todo o processo de estudo, da concepção do problema à apresentação e discussão dos resultados. O êxito dessa pesquisa implica no imbricamento bem sucedido entre a habilidade do pesquisador, sua experiência e seu rigor científico(8).

Vale lembrar que os procedimentos éticos inerentes a pesquisas desta natureza, bem como a vigilância rigorosa das condições de utilização das técnicas e a sua adequação ao problema posto, estão presentes em todas as etapas deste estudo. O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de São Paulo/ Hospital São Paulo.

3.1 Local do estudo A pesquisa foi realizada em um centro comunitário destinado à população em situação de rua, na cidade de São Paulo. É um local que tem por objetivo criar espaços para que as pessoas de rua se sintam acolhidas, possam conviver e se organizar na busca de soluções para seus problemas básicos pessoais e grupais, visando à recuperação do direito, do respeito e da dignidade humana. Possui convênio com o poder público municipal. Oferece espaço e condições para banho, corte de cabelo, unhas e barba, pequenos curativos, lavagem e/ou troca de roupas. Tem por princípio resgatar a possibilidade do indivíduo cuidar de seu corpo. Funciona durante o dia, não serve como albergue.

O critério de escolha deste centro comunitário se pautou no fato dele ser destinado ao desenvolvimento de atividades de ensino e extensão universitária para graduandos de enfermagem da Universidade Federal de São Paulo, portanto os pesquisadores têm familiaridade com a estrutura e pessoas que freqüentam ou trabalham no local, minimizando o estranhamento com a temática e sujeitos do estudo.

3.2 População do estudo A população do estudo foi composta por quatro adultos em situação de rua que freqüentam o centro comunitário e por quatro agentes comunitários que trabalham neste local.

Os sujeitos concordaram em participar da pesquisa após terem sido informados sobre os objetivos, finalidades, metodologia e formas de divulgação do mesmo.

Assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

O número de entrevistados foi definido durante o processo de coleta de dados.

Esta escolha se sustenta na crença de que a utilização da técnica de entrevista, em uma pesquisa qualitativa, não requer determinação amostral para a definição dos sujeitos que serão entrevistados. A seleção dos narradores se baseia na disponibilidade do entrevistado, a qual não é previsível antes de um primeiro contato. A seleção resulta de uma avaliação da relevância ou da representatividade social (não estatística) das pessoas. Tal avaliação fica por conta da sensibilidade e conhecimento técnico e científico do pesquisador(11).

Salientamos que a finalidade de entrevistar estes sujeitos é a de objetivar o objeto do estudo, uma vez que estes atores e atrizes sociais vivenciaram e vivenciam a situação de moradia na rua, portanto tem subsídios empíricos suficientes para discorrer sobre esta experiência, relatando seus sentimentos, atitudes, valores, contribuindo para a construção desta pesquisa que tem por objeto o significado da saúde em situação de rua na cidade de São Paulo.

3.3 Coleta dos dados Os dados foram coletados por meio da técnica da entrevista com a utilização de um roteiro com questões semi-estruturadas. Vale destacar que esta modalidade de entrevista consiste numa forma de obtenção de informações baseadas no discurso livre do entrevistado(10). Esta técnica faz parte dos estudos exploratórios e em muitas situações é concebida como meio de aprofundamento qualitativo da investigação. 11Para Thiollent "trata-se de explorar o universo cultural próprio de certos indivíduos em referência às capacidades de verbalização específica do grupo ao qual pertencem, sem comparação com outros grupos"(11).

As entrevistas foram realizadas pelos pesquisadores, em local e horário acordado com os sujeitos do estudo. Foram gravadas e transcritas para serem utilizadas como fonte de dados subjetivos. Os entrevistados foram tratados como informantes do objeto em estudo, e não como objetos de análise intensiva.

Visando assegurar o sigilo acordado com os depoentes utilizamos as letras "M" para identificar os narradores em situação de rua e "T" para os trabalhadores, seguidas por números referentes a cada entrevistado.

3.4 Análise dos dados Os dados coletados foram analisados à luz da hermenêutica. Optamos pela sua utilização, pois esse "caminho de pensamento", faz com que o pesquisador "busque entender o texto, a fala, o depoimento como resultado de um processo social (trabalho e dominação) e o processo de conhecimento (expresso em linguagem) ambos frutos de múltiplas determinações, mas com significado específico"(8).

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO 4.1 Os sujeitos do estudo No que tange as pessoas em situação de rua, foram entrevistados quatro homens com idades entre 35 e 44 anos. O tempo de rua variou de oito meses a 12 anos.

Apenas um pernoita em albergue, os demais utilizam os logradouros públicos. O que utiliza o albergue sobrevive da confecção e venda de artesanato, e é o único que almeja e esboça esforços para deixar a situação de rua. Os outros sobrevivem de donativos recebidos em instituições sociais e/ou por meio da mendicância. Dois são dependentes de álcool, bebendo de uma a duas garrafas de cachaça por dia.

Podemos dizer que do ponto de vista teórico, um deles "está na rua", ou seja, ainda mantém laços familiares capazes de auxiliarem na saída da rua. Por outro lado os outros "são da rua", romperam com os laços familiares, incorporaram a cultura da rua.

Quanto aos trabalhadores, foram entrevistados quatro, sendo três homens e uma mulher. No que diz respeito à escolaridade um possui nível universitário completo, um universitário incompleto, um possui ensino médio completo e o outro ensino fundamental completo. Trabalham na instituição de dois a seis anos, possuem em média 40 anos de idade. Todos são registrados conforme previsto na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).

4.2 As narrativas Buscando sistematizar a apresentação dos dados subjetivos criamos três categorias temáticas: a compreensão do processo saúde-doença; o cuidado com a saúde na rua; e "conselhos" para sobrevivência na rua. Elas foram trabalhadas por meio da relação dialógica entre os diferentes sujeitos - povo de rua e trabalhadores - salientando possíveis convergências e divergências no significado das narrativas.

4.2.1 A compreensão do processo saúde-doença Alguns depoentes crêem que é possível ter saúde na rua, fundamentam que cabe ao indivíduo em situação de rua saber se cuidar. Tal atitude será refletida nos determinantes biológicos e psicológicos resultando na qualidade de saúde de cada um.

(...) uma pessoa que mora na rua pode ter saúde, conheço vários que não bebem, não fumam, que não dormem assim perto do esgoto ou no capim, forram um papelão(...). Então eu penso que a pessoa começa a adoecer na medida que vai faltando as coisas para o organismo, para o corpo, para a mente. A doença vai muito além do físico. Imagina uma pessoa dessa quando pensa antes de dormir o quanto de problemas que eles tem. (T1) Tomam como parâmetro para análise apenas as pessoas em situação de rua diluindo os fatores sociais e econômicos, uma vez que todos vivem semelhante estado de privação. Com isso, não comparam as desigualdades postas para este grupo populacional com a sociedade paulistana de uma forma geral.

Com certeza você pode ter saúde na rua! Ela pode perder o emprego, perder tudo na vida e viver na rua, em qualquer lugar do planeta.

Quando a gente veio ao mundo não tinha nada, nem roupa e a gente tinha saúde. (M1) Partimos da visão de Canguilhem que saúde é a capacidade que o ser humano têm de consumir vida, salientando que o meio influencia esse consumo(7). Sendo o meio em questão os logradouros públicos de São Paulo certamente a qualidade de vida e de saúde estarão comprometidas.

Pode ser que alguns tenham saúde, mas no geral eu acho que não. É difícil, quando o morador de rua vem aqui a gente percebe no olhar dele o sofrimento. Ele não vem aqui para tomar um banho e comer um prato de macarrão, ele vem atrás de carinho. Alguns estão aqui para preencher um vazio que existe dentro deles, não é o banho que faz a diferença, é a personalidade com que você cuida dele que consegue preencher esse vazio.(T1) Quando perguntamos aos depoentes qual era o maior problema de saúde do povo de rua, foi uníssona a questão do uso abusivo do álcool. Dois moradores de rua relatam que o álcool foi o motivo de terem ido para a rua, comprometendo laços familiares e vínculos empregatícios.

Vieram me encher as paciências e eu tinha tomado umas cachaças e coloquei fogo dentro de casa. Perdi todas as minhas roupas, fiquei com a roupa do corpo e fui para a rua, faz 12 anos. (M2) (...) meu último emprego foi na Brasil Transporte Mundial faz dois anos, entrei num outro, bebi uma cachaça, fiz um bafômetro e pegaram.

Faz dois anos que sai de casa, fiquei no albergue, mas venceu o prazo, faz dois meses que vim pra rua. (M3) Os trabalhadores por sua vez acreditam que o álcool é uma fuga da realidade da rua.

Pelo o que eu converso, eles falam que bebem para esquecer. Eles precisam de alguma coisa para tentar amenizar, para tentar esconder, para tentar acalmar. Bebem para esquecer que bebem. (T2) A gente ouve por que o povo da rua começa a usar drogas para amenizar o sofrimento, mas é o jornal e a pesquisa que deduz isso. É complicado a gente querer avaliar sentimento e pensamento, sei que vem gente aqui de talento, inteligente, toda emporcalhada, cheio de muquirana, não conseguem nem falar de tanta pinga. A gente fica pensando como ele caiu nessa, é quando eu falo que a gente tem que olhar o passado, voltar atrás, nessa hora complica mais ainda.(T1) Trabalhar com a saúde do povo de rua implica necessariamente em atuar com as questões decorrentes do alcoolismo e da drogadição. Apesar das narrativas não terem abordado a utilização de drogas ilícitas, a nossa prática com o povo de rua mostra que principalmente entre os mais jovens ela está presente - consumindo vidas, acarretando anos potenciais de vida perdidos. Além disso, a drogadição e o alcoolismo acabam sendo os determinantes da entrada, permanência e saída da rua. Para romper com este ciclo necessidade de criação de serviços especializados para este segmento populacional, onde sejam consideradas as peculiaridades da cultura da rua.

A população de rua não necessita de um novo sistema de saúde, pois a eqüidade e a universalidade do atendimento estão garantidas na Constituição Brasileira (1988) com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS)(12,13). Porém acreditamos que os técnicos que atendem nos equipamentos de saúde não têm uma formação adequada quanto às peculiaridades desta população. Neste momento, trazemos a discussão para a universidade enquanto órgão formador de profissionais para o SUS. Qual é ou deveria ser a responsabilidade social da academia no processo de formação? 4.2.2 O cuidado com a saúde na rua Apesar de compreendermos o cuidado como parte do processo saúde-doença, os narradores na sua totalidade separaram os conceitos. Para eles o processo saúde-doença depende do indivíduo e o cuidado é responsabilidade dos serviços de saúde. Para nós, tudo que precisamos está na constituição do ser. existimos pelo cuidado, por mais que na vida adulta muitas vezes neguemos este fato. Assim, o processo saúde-doença-cuidado faz parte da essência do ser humano(2).

Compreendendo que nem sempre esta relação é harmoniosa em alguns momentos o indivíduo não consegue manter o auto-cuidado necessitando da ajuda de outras pessoas. Nesta hora, surge a figura do cuidador profissional institucionalizado ou não.

Entendemos que o SUS tem por obrigação assegurar o atendimento integral, universal e equânime a todos os brasileiros e brasileiras, criando e mantendo serviços, capacitando trabalhadores da saúde para o cuidado profissional.

Cuidar profissionalmente além de competência técnica e científica requer do profissional comprometimento com a vida humana. Os valores humanos inerentes a cada trabalhador irão ser determinantes da qualidade do cuidado profissional.

Observamos nas narrativas que os moradores de rua, talvez por não conhecerem a dinâmica do sistema de saúde, estão satisfeitos com o atendimento oferecido.

Sempre procuram ajuda nos pronto-socorros e conseguem, ao menos naquele momento, resolver seus problemas de saúde.

Nos hospitais que eu fui me atenderam muito bem. Pelo o que eu conheço todo mundo que vive na rua é bem atendido. Tem uns que são meio violentos e tem um atendimento meio diferente, mas sendo calmo você é bem atendido.(M2) Se você sentir uma dor muito forte, normalmente você vai para um hospital público, e é muito bem atendido, isto eu posso dizer com certeza. No geral, o atendimento da saúde está muito bom. Dizem que o sistema de saúde esta uma porcaria, está precário, mas não está porque quando você esta doente você vai diretamente no médico, e ele salva sua vida. (M1) na visão dos trabalhadores o serviço de saúde oferecido é de qualidade.

Avaliamos que esse pensamento esteja vinculado ao conhecimento que têm do SUS e, conseqüentemente, dos seus princípios doutrinários e operacionais, portanto esperam mais do sistema do que o povo em situação de rua.

A crítica dos trabalhadores ao atendimento prestado nos equipamentos de saúde do SUS fundamenta-se no despreparo dos profissionais para lidar com o povo de rua, no estigma da prestação do cuidado e na discriminação demonstrada pelos profissionais de saúde.

Eu levei um que tava com gangrena no , nem o médico nem a enfermeira colocaram as mãos pra tirar o curativo porque disse que ele estava fedendo, eu tive que tirar! Por isso que eu digo que tem muita discriminação e despreparo. (T3) Eles acham que não são bem atendidos nos Pronto Socorros pela discriminação, mesmo eu levei muita gente no PS e vi, é que eu meto as caras, pq sozinho eles não são atendidos. No posto de saúde eles falam que vão marcar e não marcam, para despistar eles, eles são muito mal atendidos nos Pronto Socorro pela discriminação, pelo jeito que eles vão vestidos, descalços, sujos. (T3) Os moradores de rua, por sua vez, referem que se sentem discriminados pela população de uma forma geral, fato que reflete no atendimento à saúde.

Na rua é muito difícil porque você é rejeitado, a sociedade não te aceita mais.(M1) Outro ponto que emergiu das narrativas diz respeito ao acesso aos medicamentos.

Ambos os segmentos relatam que o maior problema não está no atendimento à saúde, mas na dificuldade em conseguir os medicamentos prescritos. Destacamos que os remédios para algumas doenças de notificação compulsória são assegurados pelas unidades básicas de saúde de referência.

(...) o médico o receituário e se você tiver condição de arrumar o remédio você arruma, senão você morre. Esses remédio são caros e a verdade é uma o atendimento médico é instantâneo, porém como você vai arrumar 200, 300 reais para comprar um remédio para sobreviver? Na rua você não consegue, então se entrega ao mundo das drogas e morre de uma vez. (M1) (...)a gente quando precisa de um posto a gente sente um pouco na pele, aquele tanto de gente, aquela fila, alguns reclamando que não conseguem pegar o remédio. Para o morador de rua ainda é um pouco mais diferente, às vezes eles não conseguem nem ser atendidos. (...) Se uma pessoa na rua tiver sua vida dependente de remédio ele está complicado. O sistema de saúde não oferece boas condições nesta área.

(T1) Um agravante à atenção prestada ao povo de rua refere-se a falta de autonomia que têm em relação ao cuidado que lhe é direcionado. Se possuir doenças crônicas como hipertensão e/ou diabetes que requerem uma dieta própria, não tem acesso a esses alimentos.

É difícil fazer uma dieta na rua. As pessoas ganham a comida e não podem ficar escolhendo o que vai comer. O morador de rua perde a opção de escolher, dependem do que é oferecido a eles. (T2) o governo fala: se vira que você não é quadrado. Morre na rua, bebe cachaça e morre. Porque o governo não vai te dar nada, e na rua você não vai conseguir dinheiro para comprar remédio para pressão alta, doenças coronarianas, doenças cerebrais.(M1) 4.2.3 "Conselhos" para sobrevivência na rua.

Alguns narradores mencionaram que o melhor conselho no que diz respeito à situação de rua é não fazer parte dela.

O ideal seria que as pessoas não estivessem na rua, pois rua pressupõe violência, pressupõe sujeira, preconceito, dor, frio, fome.

Não é lugar para um ser humano viver com dignidade. (T2) O primeiro trabalho que eu teria seria um acompanhamento sócio- educativo, conscientizando que a rua não é morada para nenhum ser humano, é um lugar das pessoas irem e virem no caso cuidando de sua vida pessoal, é um lugar de trânsito, não é um lugar de morada.(T4) Ao serem questionados sobre quais conselhos dariam a uma pessoa que estivesse entrando na rua, os moradores tomam por referência a sua própria trajetória.

Todos relatam que a alimentação não é problema, uma vez que conseguem facilmente. Quanto ao pernoite, aqueles que se adequaram ao albergue entendem que essa seja uma boa opção, outros acreditam que a rua seja o melhor lugar, uma vez que existem regras neste equipamento social que contrariam as suas próprias.

Não beber, não usar drogas, sempre se preparar e se alimentar bem. Se preparar não dormindo no chão liso, forrar direito com papelão, se agasalhar e não dormir no sereno. (M1) É melhor procurar um albergue para não viver os perigos da rua. (M4) os trabalhadores recomendam que o povo de rua busque os albergues como forma de proteção. A rua deve ser a última opção, porém quanto for a alternativa viável devem ser tomados cuidados com relação à higiene.

"Eu diria para ele primeiro procurar um albergue que é aonde tem mais segurança. Fica difícil para quem vai para rua direto."(T1) No que diz respeito ao cuidado corporal, os moradores de rua aconselham a procura de equipamentos sociais. Os trabalhadores aliam o tempo de rua ao autocuidado. Quanto maior for o tempo, menor é o autocuidado.

Quanto mais tempo a pessoa fica na rua a possibilidade dela sair vai diminuindo. Vai diminuindo e também vai agravando a situação geral da pessoa. Então, ela sofre um processo de depauperação física, mental, patológica, tudo. Nem todos os lugares ela vai ter a possibilidade de ter uma alimentação balanceada, de tomar um banho, trocar de roupa, ter um abrigo da noite, do tempo, enfim. A pessoa sofre um envelhecimento muito grande na rua em virtude de todo esse mar de situações e fatores que fazem com que ele sofra e também perca um pouco a certa noção de realidade, e até de cuidar de si mesmo. (T2) Quanto à gregária, divergência nas respostas dos moradores de rua. Enquanto alguns defendem a solidão, outros acreditam que a convivência em grupo pode lhes proteger dos "perigos da rua" (violências). Os trabalhadores não citam este tema.

Na rua você tem que normalmente ficar sozinho porque na rua você vai encontrar, principalmente à noite, as piores pessoas que você viu.

São drogados, normalmente tem armar, tem facões, facas. (M1) A gente sabe que a maioria que vive na rua, vive em comunhão, cada um tem um pouquinho e acaba dividindo tudo, até mesmo aquela pinguinha ou as bitucas de cigarro que eles catam no chão."(M3)

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O povo de rua é heterogêneo, se confunde com os demais transeuntes nos grandes centros nem sempre sendo identificado. Isso ocorre nas primeiras fases do processo de viver na rua, ou seja, quando o indivíduo está ingressando na mesma, portanto mantêm, mesmo que de forma tênue, os vínculos familiares. Esse período entre o ingresso e a auto percepção de ser da rua é gradual e varia de pessoa para pessoa, tema que deverá ser pesquisado nos nossos próximos estudos.

É indubitável que o tempo é um fator significativo para a aquisição da cultura da rua. Tal fato depende da (con)vivência do indivíduo com o cenário e os outros atores que compõem a vida na rua. O vinculo familiar contribui para acelerar ou retardar esse processo.

O estudo nos mostrou que os estigmas surgem no momento em que o povo de rua passa a se descuidar, muitas vezes dado à auto-estima fragilizada, assumindo características próprias que a sociedade identifica como mendigo, mal-trapilho, mal-cheiroso. Na linguagem da rua quem não se cuida é mendigo, os demais são pessoas em situação de rua.

Ao buscarmos o significado do processo saúde-doença-cuidado, percebemos que este é um paradigma muito mais da academia do que da realidade vivida pelo povo de rua e trabalhadores do centro de convivência. Para eles o processo saúde- doença depende do indivíduo e o cuidado é responsabilidade dos serviços de saúde. Ficamos surpresos com as narrativas das pessoas em situação de rua elogiando o atendimento que recebem nos equipamentos de saúde. Vale destacar que os equipamentos citados são pronto-socorros, o que fere o princípio da hierarquização dos serviços de saúde proposto pelo SUS, e suscita a reflexão sobre o modelo de atendimento oferecido a essa população.

De todos os agravos à saúde que observamos e foram narrados a dependência ao álcool prevaleceu, o que nos leva a defender a tese de que trabalhar com a saúde do povo de rua implica necessariamente em atuar com as questões relativas ao uso e abusivo desta substância. Destacamos que ele acaba sendo o determinante da entrada, permanência e saída da rua, tema que deveria ser abordado nas universidades visando contribuir para a melhoria da qualidade do atendimento realizado pelos profissionais de saúde.

Trabalhar com o processo saúde-doença-cuidado do povo de rua traz implícito duas questões que se complementam, a primeira diz respeito à assistência prestada que deve respeitar as peculiaridades desta população. A segunda, refere-se a existência de políticas que minimizem a desigualdade econômica de tal forma que o país não tenha pessoas em situação de pobreza absoluta, levando à indigência e conseqüentemente à rua.

Entretanto, enquanto essa utopia da eqüidade não se viabilizar em realidade, cabe a manutenção de equipamentos sociais e de saúde capazes de atender com qualidade ao povo que vive na e da rua, para tal, é fundamental capacitar profissionais e assegurar infra-estrutura física e material para a operacionalização destes serviços.


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