O processo de enfermagem e a lei do exercício profissional
INTRODUÇÃO
A premissa do empirismo nas práticas do cuidado tem sido contestada, desde a
década de 1950 e, por esta razão, os profissionais impulsionados pelo
positivismo, pela lógica do sistema capitalista e pelo avanço da ciência
buscaram a valorização da enfermagem, ao iniciar a construção de um
conhecimento próprio, por meio de elaborações teóricas. No Brasil, o emprego da
sistematização das ações de enfermagem ocorreu a partir da publicação do livro
"Processo de Enfermagem" de Wanda de Aguiar Horta, na década de 1970. Baseada
na teoria das necessidades humanas básicas de Maslow, sob a classificação de
João Mohana, ela propôs uma metodologia, a qual denominou processo de
enfermagem. Essa metodologia é permeada pelo método científico e compõe seis
etapas: histórico de enfermagem, diagnóstico de enfermagem, plano assistencial,
prescrição de enfermagem, evolução e prognóstico de enfermagem(1). Os estudos
de Horta impulsionaram o ensino e a pesquisa da metodologia da assistência de
enfermagem no Brasil, pois também coincidiram com o surgimento dos primeiros
cursos de mestrado em enfermagem no país.
O desenvolvimento da sistematização da assistência de enfermagem esteve
contextualizado nos caminhos percorridos para a profissionalização da categoria
no Brasil, que foi fundada sob interesses do governo, mercado de trabalho e do
ensino de enfermagem. Esses interesses refletem-se nas políticas de saúde, que
nas décadas de 1960 e 1970, privilegiavam a prática curativa, individual e
especializada e a assistência previdenciária, acarretando a lógica da expansão,
direcionando o mercado de trabalho e o ensino de enfermagem para a área
hospitalar(2). Foi nesse período de expansão hospitalar, da ênfase nas práticas
curativas, da procura pela valorização profissional, que se inseriu o
planejamento da assistência, buscando o embasamento científico no processo de
trabalho do enfermeiro.
Este período também se caracterizou pelos esforços da categoria em validar o
seu processo de trabalho resultando na aprovação da Lei 7.498, de 25 de junho
de 1986. Esta lei regulamentou a prescrição de enfermagem e a consulta de
enfermagem como atribuições privativas do enfermeiro, estabelecendo um limite
entre as atividades exercidas pelos profissionais da Enfermagem. Esperase
evidenciar no contexto histórico e social do Brasil, a legitimação do exercício
profissional que se deu a partir das demandas econômicas, sociais e políticas
com pouca visibilidade da sociedade usuária deste atendimento de enfermagem e
da enfermeira, profissional que presta este atendimento. Desta forma, o
objetivo deste estudo é analisar nos documentos legais de enfermagem as
atribuições do enfermeiro frente a sociedade brasileira, na perspectiva da
implantação de metodologia científica em seu processo de trabalho.
METODOLOGIA
Para atingir o objetivo desta pesquisa, optou-se pela pesquisa qualitativa
sócio-histórica de cunho documental, representada pela legislação que normatiza
a categoria, como leis e decretos que influenciaram a prática da enfermagem A
pesquisa documental é para o pesquisador um dos fundamentos do fato histórico,
apresenta-se como prova histórica. O documento não fica por conta do passado,
ele é um produto da sociedade que o faz de acordo com as relações de força que
detém o poder. Ele é composto por elementos que servem para orientar um
entendimento, um conhecimento a respeito de uma época, de um assunto e
necessita de uma crítica interna que revelem as condições de produção
histórica, a sua intencionalidade inconsciente(3).
A análise documental ateve-se a decretos-lei formulados nos anos de 1890, 1922,
1923, 1931, 1949 e 1966 e as Leis de exercício profissional de 1955 e 1986, por
entender que estas são suficientes para responder a questão norteadora deste
estudo. A discussão a ser empreendida volta-se para dois períodos históricos,
aqui determinados pela publicação de leis que modificaram o exercício
profissional da enfermagem. O primeiro período vai de 1890, quando foi
instituído o ensino para a formação da enfermagem, até a década de 1950, com o
Decreto 27.426, de 1949. O segundo período para análise se estende entre 1955
até 1986, referente a publicação das Leis que modificaram as atribuições para o
exercício profissional da enfermagem.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A profissionalização da enfermagem e sua interface com o contexto político
social brasileiro
No início do século XX, a enfermagem estava sujeita a menos valia do trabalho
manual e a sua formação estava restrita aos grandes centros urbanos, que
aliados ao pequeno número de secundaristas no país acarretaram deficit de
profissionais nesse período. A política de governo nas décadas de 1960 e 1970
para expansão profissional fez diminuir os ganhos financeiros da categoria,
que, se na década de 1920, era reconhecida como profissão liberal, passou a ser
assalariada, com ganhos ditados pelo mercado de trabalho(4).
O preparo dos docentes e discentes até a década de 1960 era deficitário, haja
vista que em 1956, 64% das professoras de enfermagem tinham apenas o
certificado ginasial. A carreira de nível superior, anseio da categoria desde a
implantação do ensino de enfermagem, foi consolidada somente em 1961, com o
ingresso efetivo de secundaristas na universidade. Esse fato decorreu das
dificuldades de expansão do ensino, o que também foi comprovado por números,
pois, em 1950, haviam 39 escolas, e, em 1974, eram apenas 41, com a efetivação
da pós-graduação somente após a década de 1970(5-6).
Portanto, a publicação do artigo de Wanda Horta sobre o processo de enfermagem,
em 1971, coincidiu com o processo de qualificação docente imposto pela reforma
universitária, provocando na academia o desenvolvimento de metodologias
pedagógicas para seu ensino e sua validação em hospitais-escola. Este fato pode
ser comprovado em estudo sobre a história da metodologia da assistência de
enfermagem(4), quando constatou que existem 47 artigos sobre o tema e suas
autoras eram docentes ou profissionais ligadas a centros acadêmicos na época,
destacando-se quantitativamente, escolas de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Somava-se à falta de preparo docente a existência de apenas um periódico
científico de abrangência nacional na área, nas décadas estudadas, a Revista
Brasileira de Enfermagem, que socializava conhecimentos e experiências da
prática para toda a categoria(6). Neste período, a ditadura militar no País
estabeleceu a centralização do poder e impôs uma rigorosa repressão política,
por meio da censura aos meios de comunicação e forte repressão policial.
Portanto, a população, na qual se inseria a categoria da enfermagem, foi
alijada de vários direitos e exacerbada de deveres para com a Pátria. Aliavam-
se a isso, os preceitos de abnegação e obediência em que se fundamentava a
formação em enfermagem e o número reduzido de profissionais, fatores que
contribuíram para a falta de criticidade apontada por autoras(5) que procederam
análise dos artigos na Revista Brasileira de Enfermagem, no mesmo período.
Primeiro período: 1890 a 1950
O primeiro ato normativo na enfermagem foi o Decreto Federal 791, de 27 de
setembro de 1890(7), que se transformou no marco histórico da implantação do
ensino de Enfermagem no Brasil, criando a Escola Profissional de Enfermeiros e
Enfermeiras, no Hospital Nacional de Alienados do Rio de Janeiro. O surgimento
dessa escola foi decorrente da crise de pessoal qualificado no atendimento aos
enfermos desse hospital, dado o abandono desse serviço pelas irmãs de caridade
(8).
Além de justificar a criação da escola para o preparo de pessoal qualificado em
enfermagem, essa idéia também foi sugerida como solução para o contingente de
meninas e mulheres mantidas em orfanatos do Estado e pela filantropia, conforme
comentários de José Cesário de Faria Alvin, no texto da Lei, em sua
justificativa para criação da escola, ao apontar novos horizontes à mão de obra
feminina(7).
Apesar do Decreto 791/1890 representar um marco histórico para a enfermagem no
Brasil, foi claro o seu enfoque prioritariamente biologicista, cujo currículo
enfocava a assistência hospitalar exclusivamente, com aulas ministradas por
professores médicos do hospital, formando profissionais voltados para prestar a
assistência: o cuidado com o doente e a integração no serviço(4).
A seguir, foi assinado o Decreto 15.799, de 10 de novembro de 1922, que aprovou
o regulamento do Hospital Geral de Assistência do Departamento Nacional de
Saúde Pública e em seu artigo 3° traz a criação da Escola de Enfermeiras do
Departamento Nacional de Saúde Pública, anexo aquele hospital, que em 1926,
passaria a chamar-se Escola de Enfermeiras Dona Anna Nery. As atribuições da
enfermeira diplomada estavam descritas no artigo 54º:
Art. 54. A ella incumbirá a organização e distribuição dos serviços e
cuidados aos doentes, da cozinha dietética e da rouparia, cabendo-lhe
a responsabilidade pelo bom andamento destes serviços. Os cuidados
aos doentes serão orientados pelos médicos-chefes cujas prescripções
deverão ser rigorosamente cumpridas(9).
Esse texto deixava transparecer as questões de gênero, que sempre estiveram
presentes no processo de trabalho da enfermagem, outorgando-lhe tarefas do
papel feminino na sociedade: a administração doméstica no fórum hospitalar,
ficando responsável pelos serviços de hotelaria, e a subserviência ao médico,
detentor do poder pelo conhecimento da ciência e representante do sexo
masculino(4). As enfermeiras diplomadas eram as auxiliares superintendentes,
como enfermeiras chefe, denominação que perdurou na sociedade até fins do
século XX. Outro dado pertinente foi o parágrafo único do artigo 56º:
Art. 56. Paragrapho único. Nessas enfermarias todo o serviço de
enfermagem ficará a cargo das alumnas(9).
Foi delegado às alunas da Escola todo o serviço de enfermagem das enfermarias,
as quais eram utilizadas como local de aprendizado. A falta de mão-de-obra na
área da saúde utilizava o serviço das aprendizes para suprir a escassez de
profissionais qualificados ao serviço. A legislação era o reflexo do interesse
do governo daquela época: a formação de profissionais qualificados para as
práticas do cuidado; a utilização das alunas para suprir o deficit desses
profissionais; a imposição dos preceitos de administradora domiciliar; e a
subserviência médica.
Por meio do Decreto 16.300, de 31 de dezembro de 1923, aprovou-se o regulamento
do Departamento Nacional de Saúde Pública, determinando:
Art. 221. A fiscalização do exercício profissional dos médicos,
pharmaceuticos, dentistas, parteiras, massagistas, enfermeiros e
optometristas será exercida pelo Departamento de Saúde Pública, por
intermédio da Inspetoria de Fiscalização do exercício da Medicina
(10).
Transparecia, nesse artigo, a hegemonia do poder médico dessa época, ficando
sob sua fiscalização o exercício profissional de todas as categorias da área da
saúde. Este fato pertence a construção histórica das profissões na área da
saúde, alcançando na contemporaneidade esta hegemonia, quando o médico
configura como elemento central do processo assistencial, decidindo sobre o
diagnóstico e tratamento e controlando o processo de trabalho em saúde,
resultando em uma assistência fragmentada, resultante de um trabalho parcelado
e compartimentalizado(11).
O Decreto continuava regulamentando a Escola de Enfermeiras, enunciando o
objetivo da escola na formação de enfermeiras profissionais, elencando as
atribuições da chefia, estruturação do curso, composição do corpo docente,
matrículas e exames. Ressaltavam-se, dentre os requisitos para matrícula:
Art. 411. e. attestado de boa conducta, passado pelas autoridades
policiaes competentes ou por duas pessoas idoneas, a juízo da
directora da escola e da superintendente geral do Serviço de
Enfermeiras;
f. Diploma de escola normal, ou documento, que prove ter instrucção
secundaria bastante, a criterio da directora, podendo na hypotese de
recusa, ser levado o facto á decisão do Director Geral do
Departamento(10).
A exigência do diploma de escola normal ou de instrução secundária
caracterizava o esforço de transformar o ensino de enfermagem em ensino de
nível superior. Entretanto, a aspiração das enfermeiras norte-americanas que
fundaram essa escola seria plenamente alcançada somente em 1961, devido ao
deficit de secundaristas na sociedade brasileira(4). O requisito do atestado de
boa conduta mostrava claramente a influência de Florence Nightingale nas
enfermeiras norte-americanas e deixou transparecer a sua contribuição na
elaboração do texto do decreto. Todavia, compreende-se que, ao fundamentar o
ensino da profissão no país, a intenção tenha sido transformar o estereótipo
que a enfermagem tinha na época, o de profissionais de conduta duvidosa.
Até a década de 1930, os decretos estavam direcionados para a regulamentação do
ensino. A primeira legislação que se voltou para o exercício da enfermagem no
Brasil foi o Decreto 20.109, de 15 de junho de 1931. Como justificativa do
decreto foi afirmado:
Considerando que a enfermagem é uma das mais nobres profissões às quais possa
aspirar à atividade humana;
Considerando que os seus benefícios resultam não só dos cuidados ministrados
aos doentes em domicílio ou nos hospitais, mas também da ação preventiva
conjuntamente exercida pela enfermeira de saúde pública;
Considerando que, para o exercício dessa profissão, se vai exigindo nos povos
mais adiantados um preparo técnico cada vez mais desenvolvido, outorgando-se
mesmo às escolas que administram esse preparo as regalias de escolas
superiores; [...](12).
O estabelecimento da enfermagem como nobre profissão demonstrava mudanças nas
concepções acerca da enfermagem, iniciadas com a fundação da escola Anna Nery,
demonstrando que os esforços das enfermeiras norte-americanas surtiram efeito.
Entretanto, essas mudanças iniciaram-se nos grandes centros urbanos, onde foram
fundadas as primeiras escolas. No restante do país, as concepções negativas
percorreram tempo cronológico maior, determinando, em conjunto com o número
reduzido de secundaristas no País, obstáculos à expansão da enfermagem como
profissão na década de 1920(4).
O reconhecimento da formação de enfermagem em nível superior revelou o
prestígio que a categoria detinha nessa época no poder governamental, já que
essa formação estava restrita a pequeno número de profissões. O destaque à ação
preventiva, como sendo de responsabilidade da enfermagem, evidenciou o
interesse do governo nas ações de saúde pública, visto que ela foi o maior
mercado empregador até a década de 1940. Também, mostrou, mais uma vez, o
antagonismo que permeou a instituição da enfermagem como profissão, já que o
currículo da Escola Anna Nery era direcionado para o cuidado hospitalar. A
justificativa do Decreto 20.109/31 retratou também o poder das enfermeiras
norte-americanas que fundaram a Escola Anna Nery, pois esse decreto
sacramentalizava essa escola como padrão a ser seguido pelas demais
instituições de ensino no País.
Esse decreto fazia referência a titulação, estabelecendo que enfermeiras
diplomadas eram as profissionais formadas por escolas oficiais ou equiparadas,
na forma dessa lei, ou diplomadas por escolas estrangeiras reconhecidas no
País, pela diretoria da escola Anna Nery. Regulamentava também a equiparação de
instituições de ensino com essa escola, descrevendo os requisitos básicos e a
formação da banca examinadora para tal equiparação.
Apesar de ser a primeira lei de regulamentação profissional, o texto não
descreveu as atribuições do profissional, deixando como lacuna o rol dos seus
direitos e deveres na sociedade brasileira. O foco do decreto foi a
oficialização do ensino de enfermagem em nível superior e a constituição da
escola padrão, determinando o controle do ensino para as enfermeiras norte-
americanas fundadoras da escola Anna Nery. A partir deste decreto foi cunhado o
termo "enfermeira padrão" ou "enfermeira alto padrão", referindo-se ao padrão
Anna Nery de formação de enfermeiras e que se diferenciava dos demais cursos
existentes.
Em 1949, foi criada a lei que regula o curso de enfermagem e o de auxiliar de
enfermagem, pela Lei n° 775, de 6 de agosto de 1949(13). Nessa lei foi
formalizada a duração do curso de enfermagem em 36 meses e o de auxiliar de
enfermagem em 18 meses. Um evidente esforço para a expansão do ensino de
enfermagem, ao determinar a criação de escolas de enfermagem em cada centro
universitário ou sede de faculdade de medicina, que ministrasse os dois cursos
de enfermagem. O incentivo ao aumento de escolas de enfermagem é revelado no
seguinte texto:
Art. 23. O poder executivo subvencionará todas as escolas de
enfermagem que vierem a ser fundadas no país e diligenciará no
sentido de ampliar o amparo financeiro concedido às escolas já
existentes(13).
Isto demonstrou o interesse governamental e do mercado de trabalho em expandir
o ensino de enfermagem e, conseqüentemente, o número de profissionais atuantes
no País, que, quantitativamente não acompanharam o aumento de instituições
hospitalares no Brasil, a partir da década de 1940.
Esta lei, porém, não normatizou o ensino nem as atribuições de cada categoria,
lacuna que foi preenchida somente pela publicação do Decreto 27.426, de 1949,
que aprovava o regulamento básico para os cursos de enfermagem e de auxiliar de
enfermagem.
Art. 1º O "Curso de Enfermagem" tem por finalidade a formação
profissional de enfermeiros, mediante ensino em cursos ordinários e
de especialização, nos quais serão incluídos os aspectos preventivos
e curativos da enfermagem.
Art. 2º O "Curso de Auxiliar de Enfermagem" tem por objetivo o
adestramento de pessoal capaz de auxiliar o enfermeiro em suas
atividades de assistência curativa(14).
Ao direcionar as atividades do auxiliar de enfermagem para as práticas
curativas, o decreto revelou o interesse de vários setores: do setor privado,
que visava à formação de mão-de-obra barata, para diminuir o emprego de
enfermeiras diplomadas; da classe médica, que necessitava de maior número de
auxiliares para o tratamento terapêutico, e para a enfermeira, também foi
interessante, pois, devido ao déficit de profissionais, ela poderia delegar
funções a um grupo de pessoas mais bem preparado do que o atendente de
enfermagem, norteando suas ações para a administração, supervisão e ensino que
lhe eram atribuídas(4).
Segundo período: 1955 a 1986
Somente em 1955 o exercício profissional da enfermagem foi regulamentado no
Brasil pela Lei 2.604/55. Diferentemente da lei de 1931, ela descrevia as
atribuições dos profissionais da enfermagem, discorrendo sobre seis
categorizações existentes na enfermagem na época vigente: Enfermeiro, Auxiliar
de Enfermagem, Obstetriz, Parteira, Parteira Prática, Enfermeiro Prático ou
Prático de Enfermagem.
Para as categorias de enfermeiros práticos e parteiras práticas, a lei fixou
prazo para a sua descontinuidade, revogando os Decretos 23.774 e 22.257, que as
amparavam legalmente e que reconheciam os portadores desses certificados até a
data da publicação da Lei 2.604/55. Por existirem sete categorias na profissão,
que configurava a formação da equipe de enfermagem, considerou-se necessário
especificar as funções atribuídas a cada uma delas, o que está regulamentado na
Lei 2.604/55, em seu artigo 3º, destaca-se o texto relacionado às atribuições
da enfermeira:
Art. 3º São atribuições dos enfermeiros, além do exercício da
enfermagem:
a) direção dos serviços de enfermagem nos estabelecimentos
hospitalares e de saúde pública, de acordo com o art. 21 da Lei n/
775, de 6 de agosto de 1949;
b) participação do ensino em escolas de enfermagem e de auxiliar de
enfermagem;
c) direção de escolas de enfermagem e de auxiliar de enfermagem;
d)participação nas bancas examinadoras de práticos de enfermagem(15).
Ao especificar as atribuições das enfermeiras para "além do exercício da
enfermagem", a lei não determinou o significado deste termo, porém podemos
inferir que este refere-se àquelas atividades da prática de enfermagem
cotidiana. O trabalho manual, de execução das técnicas de enfermagem, não
retrataria o 'exercício da enfermagem' descrito na lei? Se assim o era,
refletia ele a expectativa da sociedade frente à enfermeira? Apesar da frase
ressaltada, o texto da lei descreveu claramente as funções de chefia,
administração e de ensino para a enfermeira. A ela caberia prioritariamente a
liderança, a condução do serviço de enfermagem que era o foco da formação
destes profissionais, mantendo o preceito da divisão social do trabalho,
transcrito no artigo 5º desta Lei.
Na análise das atribuições do enfermeiro e do auxiliar e prático de enfermagem,
transcritas na lei, percebem-se os preceitos da divisão social do trabalho da
enfermagem em intelectual e em manual, ficando a atividade gerencial para o
enfermeiro, a quem compete a coordenação da equipe de técnicos e auxiliares de
enfermagem.
Cabe destacar que o serviço de enfermagem atualmente se organiza sob a divisão
parcelar do trabalho e desenvolve-se com relativa autonomia em relação aos
demais profissionais, mas ainda está subordinado ao ato assistencial em saúde
realizado pelo médico. As enfermeiras assumem a gerência em enfermagem, e além
de organizar o processo de trabalho da enfermagem, buscam concretizar as ações
realizadas junto aos clientes(11).
A Lei citada demarcava as funções de cada categoria: à enfermeira cabia a
administração e o ensino e ao pessoal auxiliar caberiam "todas as atividades da
profissão". Essa lei regulamentou o exercício profissional até 1986, quando a
legislação do exercício profissional foi atualizada, portanto, o período da
implementação do processo de enfermagem foi regulamentado pela Lei 2.604, de
1955. Com as atribuições da enfermeira claramente definidas para a
administração, liderança da equipe de enfermagem, regulamentadas tanto na lei
do exercício profissional como no ensino, surgiu a preocupação das enfermeiras
em organizar a assistência de enfermagem praticada pelos profissionais sob seu
comando. No início da década de 60, surgiu na literatura de enfermagem a
utilização de um método científico que permitia a valorização profissional no
mercado capitalista, diferenciando-o dos demais integrantes da equipe de
enfermagem para a realização dos cuidados.
Estes novos conceitos nortearam um novo paradigma profissional, quando o
trabalho manual passou a ser valorizado e cobrado pela elite intelectual da
categoria. Assim, a enfermeira dos anos 60 viu-se pressionada por cobranças
contraditórias das universidades, da prática assistencial hospitalar e da lei
do exercício profissional. De um lado, o ensino sofreu mudança radical,
preconizando, dentre suas atribuições, o planejamento do cuidado prestado, em
dicotomia com a legislação profissional, que definia como suas atribuições a
administração, supervisão e ensino(4).
Nessa mesma década, o governo militar, pressionado pelo mercado de trabalho em
conjunto com a pressão popular por mais vagas universitárias, instituiu os
cursos profissionalizantes, incluindo o curso técnico em enfermagem. Esse curso
profissionalizante iniciou na escola Anna Nery, por meio do Parecer 171/66(16).
Esse documento descreve as disciplinas que seriam ministradas, bem como as
áreas de estágios, como médica, cirúrgica, psiquiátrica e de saúde pública,
dentre outras.
Esse parecer contém a mesma lacuna deixada pela legislação de enfermagem em
anos anteriores, ou seja, a indefinição das atribuições desempenhadas por essa
nova categoria, na equipe de enfermagem. O que se percebe, na análise desses
documentos, é a criação de uma nova categoria, a fim de aumentar o número de
profissionais no mercado a baixo custo, entretanto, sem delimitação de funções.
Acrescentava-se a isso a existência de mais uma categoria, atendente de
enfermagem, que era composta por pessoas sem formação especializada, cuja
aprendizagem das práticas do cuidado dava-se no serviço de forma empírica. Ela
não era considerada categoria legalizada, porém, correspondia à maioria da
força de trabalho na enfermagem, até sua extinção, prevista na lei do exercício
profissional de 1986. Esse contexto da nãodelimitação de funções
correspondentes a cada categoria na equipe de enfermagem deve ter contribuído
para as dificuldades encontradas pela enfermeira na aplicação do processo de
enfermagem. Se existia a clareza de que competia a ela a supervisão,
administração e o ensino, isso não acontecia na delegação das tarefas a serem
executadas.
A promulgação da lei do exercício profissional de 1986 foi decorrente da ação
conjunta entre a União, a Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), o
Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) e os Conselhos Regionais de Enfermagem,
os quais conseguiram a aprovação de Lei 7.498, de 25 de junho de 1986, que
atualizava o exercício profissional da enfermagem, e do Decreto 94.406, de 8 de
junho de 1987, que regulamentava esta lei. Muitos de seus artigos foram
vetados, outras emendas surgiram, entretanto, a categoria considerou um grande
avanço para o desenvolvimento profissional.
No texto dessa lei, a redução das categorias na enfermagem refletiu a realidade
profissional, de enxugamento da categoria com a extinção dos enfermeiros
práticos e parteiras práticas, tendo sido acrescido a categoria de técnico de
enfermagem, criado em 1966. A figura do atendente de enfermagem, que não
constava oficialmente na lei, mas figurava como participante das práticas de
cuidado de enfermagem, foi extinta oficialmente, concedendo o prazo de dez
anos, a partir da data da publicação da lei, para que este se qualificasse. O
texto da Lei regulamenta, nos artigos 10 e 11, como atribuições do enfermeiro:
Art. 10º. O desempenho das atividades de enfermagem constitui o
objeto da profissão liberal de enfermeiro, ao qual é assegurada
autonomia técnica de planejamento, organização, execução e avaliação
dos serviços da assistência de enfermagem.
Art. 11º O enfermeiro exerce todas as atividades de enfermagem,
cabendo-lhe:
1) Privativamente:
a) direção do órgão de enfermagem integrante da estrutura básica da
Instituição de saúde pública ou privada, e chefia de serviço e de
unidade de enfermagem;
b) Organização e direção de serviços de enfermagem e de suas
atividades técnicas e auxiliares nas empresas prestadoras desses
serviços;
c) Planejamento, organização, coordenação, execução e avaliação dos
serviços de assistência de enfermagem;
h) Consultoria, auditoria e emissão de parecer sobre matéria de
enfermagem;
i) Consulta de enfermagem; j) Prescrição da assistência de
enfermagem;
l) Cuidados diretos de enfermagem a pacientes graves com risco de
vida;
m) Cuidados de enfermagem de maior complexidade técnica e que exijam
conhecimento de base científica e capacidade de tomar decisões
imediatas(17).
Nesta lei, as atribuições de administração e supervisão das unidades de
enfermagem permanecem, dando continuidade às atribuições delegadas à
enfermeira, desde a implantação da profissão no Brasil. Todavia, algumas
atividades da administração desenvolveram-se e outras foram criadas, no período
compreendido entre as duas leis do exercício profissional, de 1955 e 1986, como
consultoria, auditoria e emissão de pareceres, que, já na década de 1980,
figuravam-se no processo de trabalho dos enfermeiros, advindas da necessidade
dos seguros de saúde e medicina de grupo em fiscalizar as atividades prestadas
a essas instituições.
A regulamentação da prescrição de enfermagem e da consulta de enfermagem, que
foi conquista da enfermagem e é de interesse do presente estudo, coroa a
trajetória da metodologia da assistência de enfermagem iniciada na década de
1960, desenvolvida com esforços, reflexões, críticas e indiferenças, com a
inclusão da sistematização da assistência nessa lei. A aprovação desses
instrumentos retratou o reconhecimento da sociedade da necessidade de
implantação do método científico no processo de trabalho do enfermeiro.
Prossegue o artigo, agora determinando as funções da enfermeira na equipe de
saúde:
2) Como integrante da equipe de saúde:
a) participação no planejamento, execução e avaliação da programação
de saúde;
b) participação na elaboração, execução e avaliação dos planos
assistenciais de saúde;
c) prescrição de medicamentos estabelecidos em programas de saúde
pública e em rotina aprovada pela instituição de saúde;
d) participação em projetos de construção ou reforma de unidades de
internação;
e) prevenção e controle sistemático da infecção hospitalar e de
doenças transmissíveis em geral;
f) prevenção e controle sistemático de danos que possam ser causados
à clientela durante a assistência de enfermagem;
g) assistência de enfermagem à gestante, parturiente e puérpera;
h) acompanhamento da evolução e do trabalho de parto;
i) execução de parto sem distócia; educação visando a melhoria de
saúde da população; [...](17).
A participação da enfermagem na elaboração e avaliação dos programas de saúde
já era realidade na prática assistencial. Mais uma vez, a lei vem a reboque da
prática profissional. A participação da enfermagem em programas de saúde
coletiva foi impulsionada pela reforma sanitária, quando os profissionais da
área redirecionaram a lógica das políticas de saúde para a promoção da saúde e
prevenção de doenças, que tanto assolavam a população brasileira. Outra
atribuição à enfermeira, que não aparecia na lei do exercício de 1955, era o
controle de infecção hospitalar. Essa função também já era exercida pelo
enfermeiro, como integrante das Comissões de Controle de Infecção Hospitalar,
foco de atenção das autoridades e dos profissionais de saúde.
Grande avanço conquistado nesta lei foi a delimitação das atribuições das
categorias que compõe a equipe de enfermagem. No entanto, a definição dessas
atribuições não foi, e ainda não é, consenso na categoria. Essa insatisfação
decorre do número de categorias em uma mesma profissão, divisão ímpar entre as
profissões liberais, acrescidas por interesses governamentais e do mercado de
trabalho. Apesar dessa polêmica, a promulgação da lei foi um grande avanço para
a profissão de enfermagem, pois delimitou o campo de ação dos profissionais,
impulsionando-os para a apropriação das funções que lhe foram atribuídas. No
caso da execução da prescrição e da consulta de enfermagem, sua regulamentação
refletia os esforços que a categoria vinha desenvolvendo para obter a
visibilidade e a credibilidade desses instrumentos, mostrando a necessidade do
embasamento científico no processo de trabalho do enfermeiro e despertando o
interesse pela apropriação desses instrumentos por parte dos enfermeiros.
O reconhecimento da importância do processo está evidenciado em artigos
recentes, que advogam que a aplicação de uma assistência de enfermagem
sistematizada é a única possibilidade de o enfermeiro atingir sua autonomia
profissional e constitui a essência de sua prática profissional(18).
Assim, as décadas de 1980 e 1990 caracterizaram-se por impulso na metodologia
da assistência de enfermagem, com a elaboração da taxonomia da North American
Nurses Diagnosis Association (NANDA) e a Classificação Internacional da Prática
de Enfermagem (CIPE), dentre outras. Ressalta-se também, os esforços da ABEn
Nacional para o desenvolvimento e a validação da Classificação Internacional da
Prática de Enfermagem em saúde Coletiva (CIPESC) por tratar-se de uma taxonomia
com contribuição brasileira e, portanto, adequada à realidade do país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se observar que as leis do exercício profissional foram promulgadas para
atender a necessidade econômica e política diante de questões sociais que
atravancavam o progresso do país. Exemplos são os primeiros atos normativos que
tiveram como pano de fundo a qualificação profissional, em um modelo
biologicista e apontavam como responsabilidade da enfermeira a organização do
serviço, dependência da decisão médica com conotação de uma profissão nobre.
A aprovação da lei 7.498 em 1986 representou um grande avanço em termos de
autonomia profissional, de maior clareza na definição de papéis, e uma
aceitação da sistematização da assistência de enfermagem como parte das
atividades privativas da enfermeira.
Os profissionais, ao verem estampadas em Lei suas atribuições, sentiram-se
responsáveis pela busca de subsídios que fornecessem o referencial para sua
implementação. Hoje a sistematização da assistência de enfermagem está presente
no cotidiano de trabalho destes profissionais, seja para sua concepção,
implementação ou realização. Assim, a lei do exercício profissional e a prática
têm relação de reciprocidade.
Porém a sociedade está parcialmente presente neste processo, uma vez que as
leis que foram promulgadas atendiam a exigência política de mercado e não a
população. Tal afirmação é pertinente, pois todos na equipe de enfermagem são
reconhecidos como enfermeiros, independente de sua categoria. Para a população,
enfermeira é aquela que presta o cuidado, independente da forma como este
cuidado é concebido e executado. Por outro lado, as instituições de ensino
preparavam o acadêmico de enfermagem para ações de assistência, ensino e
gerência, quando o mercado de trabalho procurava um profissional para gerenciar
o serviço, afastando-o do contato direto com a população. Assim perpetuase a
divisão entre concepção e realização do trabalho em enfermagem e a população
não tem como reconhecer o diferencial da assistência de enfermagem
sistematizada porque desconhece o papel desta profissional.
Embora existam esforços para reverter esta situação, ao se olhar para a
história da legalização da profissão de enfermeira, percebese que lentamente a
profissão atendeu indiretamente as necessidades da população, percebidas sob o
ponto de vista político e econômico e que atualmente, a Estratégia de Saúde da
Família pode ser o caminho para dar a população o conhecimento sobre o papel da
enfermeira e o direito de reivindicar a presença desta profissional ao seu
lado.