Concepção de clientela: análise do discurso da benevolência no contexto da
reforma psiquiátrica brasileira
INTRODUÇÃO
Tradicionalmente, no campo da saúde mental, ainda acompanhamos o trabalho
organizado para a produção de saúde tendo por base uma concepção organicista do
processo saúde-doença. Essa concepção de corpo, mente e espírito, suas
dissociações e irregularidades levaram à construção de práticas voltadas para a
intervenção nos sintomas e sinais apresentados pelos sujeitos. Sujeitos estes
que eram, muitas vezes, internados em instituições especializadas, destinadas a
controlar, supervisionar, conter e tratar essas manifestações(1).
A loucura, como fenômeno da existência, ao ser comparti-mentalizada num
conhecimento médico impessoalizante, transfor-mou o sujeito em paciente,
obrigou-o a carregar o rótulo da limitação, da periculosidade e da impaciência,
sendo este afastado do contato com as pessoas para ser tratado em instituições
especializadas. Um sujeito que perdeu seus direitos à vida, à dignidade, à
convivência e à liberdade, em nome daquilo que a psiquiatria consagrou como
"doença" o que deveria ser caracterizado apenas pela incerteza(2).
A relação intrínseca entre o objeto do conhecimento (a loucura-doença) e o
objeto da prática (o louco-doente) determinou a existência de diferentes
mecanismos de controle, repressão e vigilância às manifestações do louco. Esses
conhecimentos, traduzidos ao longo de séculos e trancados nos manicômios,
sobrevivem até os dias atuais pela consolidação de seus discursos, excludentes
pela ciência médica, os quais velam o potencial humano para dar vazão a um
discurso de que o louco é um ser limitado e incapaz. Incapaz de assimilar
comportamentos, de compartilhar experiências humanas e de comandar sua própria
vida.
Apesar das dificuldades enfrentadas no cotidiano dos serviços de saúde, o
cenário psiquiátrico brasileiro vem mudando com a difusão dos diferentes
dispositivos de atenção substitutivos. Os mais de 1000 (mil) Centros de Atenção
Psicossocial espalhados pelo Brasil são prova de que há uma transformação na
estrutura da assistência em saúde mental. A rede de serviços, na qual o CAPS se
insere, vem substituindo a atenção especializada e centrada nas instituições
manicomiais, originalmente excludentes, reducionistas e opressoras da vida, da
liberdade e da autonomia do sujeito(3).
No entanto, o ato de reformar não pressupõe apenas a substituição de um serviço
por outro, ou de um serviço por uma rede. Isso porque transformar uma realidade
parte do princípio de envolver todas as dimensões possíveis no processo de
mudança (serviços, atores, processos de trabalho, políticas). Mesmo que se
resista ao conformismo e se contemple a mudança, a reforma sobrevive como
movimento porque sempre procura subsídios para reinventar o cotidiano, num
esforço contínuo de superação dialética(4-5).
Compreendemos que o exercício da superação dialética no contexto da reforma
psiquiátrica é um processo, no qual estão permeados diferentes atores,
instituições, conflitos, embates, saberes e práticas. Essa realidade não só
reflete a dinâmica da produção de cuidado em saúde mental atualmente, como
também apresenta as diversas dificuldades de um movimento complexo que busca,
no interior e no exterior dos serviços, uma nova imagem social para aquele
indivíduo que sempre foi afastado de seu convívio social.
Nesse sentido, objetivamos, com este estudo, conhecer o contexto dinâmico e
controverso onde ocorre a prática em saúde mental. Para isso, analisamos o
discurso de trabalhadores de saúde mental de um serviço substitutivo, com
relação à clientela de atendimento. Procuramos desvelar contradições,
conceitos, potencialidades e limitações destacadas pelos discursos dos
trabalhadores no conjunto de sua prática cotidiana.
REFERENCIAL TEÓRICO-FILOSÓFICO
Para este estudo, escolhemos a Análise Crítica de Discurso (ACD)(6) como
referencial teórico-filosófico para conhecer o contexto da prática em saúde
mental e para analisar os discursos dos trabalhadores. O referencial é produto
da articulação de diferentes teorias oriundas das ciências humanas e das
ciências linguísticas dos últimos 30 anos, responsáveis por compreender o
discurso como produção da sociedade, capaz de modificar o meio, assim como ser
modificado nesse processo de interlocução.
A análise crítica de discurso desenvolveu-se como disciplina no campo da
análise de discurso a partir de um movimento teórico-filosófico nas ciências
humanas denominado "giro lingüístico", o qual representava certa
mudança de paradigma na filosofia e nas disciplinas correlatas, o qual
pressupunha uma reorientação para o próprio conceito de linguagem, como um
evento que não somente "representa" uma realidade, mas como
"formadora" delas. Isso quer dizer que a linguagem não é produto do
meio, mas produtora deste, em contínuo processo de transformação das realidades
(7).
A perspectiva crítica da análise de discurso teve como influência principal a
"lingüística crítica", uma corrente teórica dos estudos da linguagem
em articulação com as ciências sociais críticas, baseadas principalmente nos
pressupostos filosóficos da Escola de Frankfurt. A análise crítica de discurso
busca a identificação de elementos discursivos específicos que possam estimular
ou romper com certas estruturas cristalizadas de poder e ideologia. Nesse
sentido, ela é crítica por ser dialética, além de ser um método de análise que
permite atribuir significados a eventos sociais específicos marcados, muitas
vezes, pela relação vertical, pelo poder, pela subversão e pela normalização
(6).
Um exemplo de como os significados do discurso podem servir para diferentes
finalidades na sociedade está na constituição do discurso psiquiátrico no
século XIX. O discurso psiquiátrico nesse período não se caracterizou por
objetos privilegiados, mas pela maneira de como esses objetos foram formados
pela medicina. Para poder falar de tais objetos, foi necessário elevar o
discurso ao nível da prática social, pois o discurso só pode "formar"
objetos quando estes puderem ser abordados, nomeados, analisados, classificados
e explicados. Foi assim que se criou uma unidade dos discursos sobre a loucura.
A medicina mental foi capaz de defini-la como dimensão patológica não enquanto
saber, mas enquanto prática, ou seja, a loucura como constituinte de mecanismos
de repressão, de jurisprudência, de compreensão teológica, de objeto do
diagnóstico nosológico e das descrições patológicas. Sendo assim, o discurso
não é uma representação de elementos, mas constitui-se em práticas, que formam
sistematicamente os objetos de que fala(8).
No campo da saúde, em processo de transformação, a loucura foi destrancada do
isolamento e re-inserida na comunidade, onde ela nasceu e onde deveria ser
tratada. Nos serviços de saúde mental que se propõem a trabalhar com a loucura
e com o louco na comunidade, como os CAPS, há o nascimento de novos discursos,
responsáveis pelo redimensionamento da prática a partir da construção de novas
teorias, sendo um desafio permanente para o movimento da reforma psiquiátrica
brasileira. Discursos novos que, no entanto, também estão permeados de
contradições, muitas vezes marcadas pela mescla de modelos de atendimento
incompatíveis para a realidade atual de cuidados. Neste estudo será possível
observar algumas dessas particularidades com relação ao discurso sobre a
clientela de atendimento do CAPS.
PERCURSO METODOLÓGICO
Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa. O corpus deste trabalho é
composto por entrevistas aplicadas pelos pesquisadores, no período de 17/07/
2006 a 15/08/2006, a 17 dos 25 trabalhadores de saúde mental que trabalham em
um serviço substitutivo de uma cidade da Região Sul do Brasil e que se
dispuseram a participar da pesquisa. O serviço investigado é um CAPS II,
referência para o atendimento em saúde mental na microrregião em que se
encontra.
Entre os profissionais entrevistados, destacam-se: um médico psiquiatra, três
psicólogos, um enfermeiro, dois assistentes sociais, dois terapeutas
ocupacionais, três auxiliares/técnicos de enfermagem, um farmacêutico, um
agente de saúde pública, um oficial administrativo, um vigilante e um servente.
Foram aplicadas três perguntas-chave, conforme roteiro previamente
estabelecido. As entrevistas foram gravadas em fitas cassete e, depois de
concluídas, encaminhadas a dois digitadores diferentes, responsáveis pela
transliteração das gravações.
Nos estudos do discurso, a transcrição concentra-se na descrição detalhada de
todos os fenômenos semióticos envolvidos nas conversações, como: pausas,
entonações, corte de sílabas ou sinais verbais/não verbais. No caso da
transliteração, compreende-se a transcrição dos signos lingüísticos, mas
utilizando-se uma ortografia convencional para descrever apenas os enunciados
produzidos pelos falantes, sendo o nível mais comum de representação de todos
os corpus orais(9).
Os dados foram organizados conforme o dispositivo chamado de "Diagrama
Axiológico-Discursivo"(10). Essa metodologia foi desenvolvida no intuito
de encontrar certo padrão discursivo nos informantes, ou seja, um
"discurso prototípico", que, por ser naturalmente valorativo, já que
agrega juízos de valor a comportamentos ou ações humanas, está inserido no
âmbito da axiologia. No caso dos usuários, a finalização do processo de
sistematização metodológica levou à identificação do discurso da
"benevolência". Trata-se de um padrão ideológico do trabalhador que
valoriza a experiência limitante da loucura, dando pouca ênfase às questões
mais complexas que envolvem a autonomia, a liberdade e a contratualidade do
louco no cotidiano das práticas e de suas relações interpessoais.
A partir da identificação desse discurso prototípico, a análise dos dados foi
em busca das estruturas linguísticas que mais caracterizassem a dimensão
discursiva, as quais são exploradas mais adiante. Não foi necessário reproduzir
fragmentos discursivos de todos os trabalhadores. Optamos por apresentar apenas
o discurso mais representativo da dimensão axiológica analisada (a
benevolência).
O projeto foi submetido previamente a avaliação pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal e Pelotas (UFPel),
obtendo parecer favorável ao seu desenvolvimento (Ofício 074/2005). Foi,
também, garantido o anonimato dos sujeitos do estudo e respeitados todos os
preceitos ético-legais que regem a pesquisa com seres humanos, como é
preconizado pelo Ministério da Saúde (Resolução 196/96 do Conselho Nacional de
Saúde) e Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise dos resultados evidenciou que os trabalhadores ainda estão procurando
uma definição precisa para a clientela de atendimento, a qual possui uma
relação intrínseca com o conceito de normalidade e de patologia em saúde
mental. A partir do modo como percebem as questões mais complexas que envolvem
a loucura no cotidiano, eles também percebem quem é o potencial usuário do
sistema. Um usuário ora tratado como uma pessoa, um indivíduo com direitos, ora
como um transtorno, um diagnóstico, responsável por gerar limitações
importantes para a convivência pacífica desse usuário em sua comunidade.
O termo "usuário" não é absoluto e tem sido criticado no contexto da
saúde. O termo foi introduzido na legislação do Sistema Único de Saúde no
sentido de destacar o protagonismo de alguém chamado, anteriormente, de
"paciente". A expressão acabou sendo utilizada no contexto da saúde
mental para referir-se ao indivíduo com sofrimento mental. No entanto, no campo
da reforma psiquiátrica, o termo "usuário" ainda parece manter certa
relação do indivíduo com um serviço de saúde, quando o importante seria tornar
o indivíduo, e não o serviço, o protagonista da relação(11).
Os trabalhadores parecem compreender o modo de operar no interior do serviço
substitutivo, no entanto, com dificuldades na sistematização de determinados
conhecimentos complexos (louco e loucura, por exemplo), dos quais o modo de
operar é dependente. Essas dificuldades transparecem, no discurso, a partir de
relações discursivas e figuras de linguagem, sendo a "sinédoque" a
que mais caracteriza essa indefinição. O fragmento inicia com o questionamento
do investigador, e, a seguir, o posicionamento do trabalhador:
Investigador Eu vou te fazer cinco perguntinhas, né? E ai diante
delas a gente vai discutindo algumas coisas, né? Me fala sobre o
atendimento do serviço em primeiro lugar. Do atendimento do serviço,
como é que funciona, qual é o objetivo...
Trabalhador Bom... então, o atendimento dentro do CAD é como se
fosse um hospital-dia, né? em que as pessoas vêm e passam o dia
aqui...é/é atendido vários tipos de patologias...é...o nosso perfil
de clientes geralmente são usuários com...em estado psicótico, né? Se
investiga se tem internações ou não, se tão em crises, na verdade as
que estão nesse perfil tem sido discutido várias vezes assim, né?
Desde que eu cheguei, já foram discutidos algumas vezes mas no geral
é... tem que estar em estado psicótico...
Inicialmente, ao ser questionado sobre o atendimento do serviço em geral, o
trabalhador começa explicitando a questão do perfil de atendimento da
clientela. Parece existir uma correspondência entre o usuário atendido e o
perfil, o qual se estabelece não pelo que "está posto" como norma,
mas por aquilo que os trabalhadores julgam, operam e não compreendem em sua
totalidade (o conceito de loucura). Isso porque, nessa situação, a norma está
presente e faz parte da rotina dos trabalhadores, e é ela que comanda
determinado modo de organização e sistematização do cuidado, assim como a
própria concepção do usuário do sistema.
A conseqüência desse relacionamento complexo com a loucura está exposta no uso
figurativo da linguagem, onde há transferência de significados para
caracterizar o usuário, mas todos eles estão unidos por uma única relação (a
loucura).
Embora a sinédoque faça parte do corpo de conhecimentos retóricos da linguagem
e tenha funções originalmente trópicas, substituindo termos que possuem a mesma
significação, aqui ela não somente assume essa função, como também realiza
transferências, gerando novos sentidos à realidade. Por exemplo, quando o
usuário é conhecido inicialmente como "pessoas", num apontamento
coletivo para resgatar indivíduos singulares por existência, este mesmo sujeito
acaba perdendo suas características mais intersubjetivas para fazer parte de
novas concepções, desta vez inanimadas, no decorrer do processo de sua
adequação às normas e rotinas institucionais (um diagnóstico). Um diagnóstico
que não está dito, mas é dito, revelando o potencial do serviço em adequar-se à
clínica tradicional, onde há redução dos sujeitos em "problemas", que
devem ser manejados e tratados na sua organicidade ("várias
patologias").
O fato de haver uma fragmentação ideológica do sujeito no interior do serviço
em diferentes partes faz parte do que se pode chamar de uma característica
"convencional" das formas simbólicas. Isso quer dizer que a produção,
construção ou emprego de quaisquer formas simbólicas, bem como a sua
interpretação pelos diferentes atores na interação, são processos que envolvem
a aplicação de regras, códigos ou convenções. Essas regras, códigos ou
convenções, por sua vez, seguem rotinas gramaticais, figurativas, sintáticas ou
semânticas, aplicadas a uma situação prática para a qual não necessariamente os
atores precisam estar conscientes. Elas fazem parte de um conhecimento tácito
que os indivíduos memorizam no curso de suas vidas, criando novas expressões e
recriando sentidos daquelas já manifestadas por outros(12).
A loucura não existe na história da humanidade como conceito isolado, em seu
estado selvagem. Ela existe porque faz parte de uma determinada sociedade, ela
não existe fora das normas da sensibilidade que a isolam, nem das formas de
repulsa que a capturam ou a excluem. Isso quer dizer que o conhecimento humano
sobre a loucura nasceu a partir dos movimentos rudimentares da experiência, que
a captura como saber. Mas essa mesma experiência ainda não é a loucura em si, é
apenas uma divisão desta, a qual foi convencionada pelo homem para servir-lhe
como seu objeto de estudo(13).
Mesmo que pareça haver (e não pareça haver ao mesmo tempo) certo
"consenso" sobre os conceitos de loucura e de louco, apoiados na
clínica tradicional psiquiátrica (o diagnóstico, a patologia, a crise, o surto,
o paciente), parece natural que os trabalhadores reproduzam, na prática, o
conhecimento compartimentalizado da teoria. Caracterizada como falta e erro,
como desvio e excesso e como experiência limitante, aos poucos a clínica vai
conformando a proposta política, a política vai conformando o serviço, o
serviço vai conformando a prática dos trabalhadores e estes vão conformando o
atendimento à clientela:
Investigador Me explica um pouquinho, então, o que que tu consideras
como normalidade, né? Que...
Trabalhador Não há um termo muito correto eu acho assim entendeu,
né? Foi o que me veio na mente agora. Cada um... não é o que é dentro
da normalidade, mas o que aquele/aquele ser consegue fazer, entendeu?
Dentro da sua capacidade, né? Dos seus limites, da tua, né? Que
normal acho que é uma coisa que...depois que entrei aqui eu não tenho
mais esse conceito do que é normal e de que não é normal, né? Mas
dentro do que aquela pessoa consegue desenvolver, né? Dos limites,
né? Da sua capacidade... então que aquela pessoa, né? Tu trabalha a
capacidade pra que ela consiga ter uma autonomia um dia, ter uma vida
mais livre assim, né? Não tão dependente das pessoas, dos outros, né?
Parece não ser fácil para os trabalhadores descrever o que é normal e
patológico em saúde mental. Por ser um evento complexo e por situar-se
totalmente no terreno da abstração, o sujeito se utiliza de uma ferramenta
lingüística chamada de metadiscurso, a qual revela as dificuldades de
explicação de determinados eventos. Um metadiscurso não se trata de um recurso
estilístico da linguagem, pois ele está imerso nos contextos sociais como
mecanismo fundamental para desvendar as interações sociais e seus efeitos de
sentido. Entretanto, um metadiscurso só adquire um significado quando
incorporado a um contexto específico, em que leitor e escritor (ou
entrevistador e entrevistado no caso de discursos orais como este) constroem,
juntos, a materialidade ideológica da linguagem(14).
Esses metadiscursos funcionam como estruturas de linguagem que procuram
amenizar, intensificar, eliminar ou corrigir questionamentos ou reações
surgidas pelos sujeitos em interação. É dizer que o metadiscurso avalia-se a si
mesmo, corrige-se, intensifica determinados enunciados, deixando que estes se
expressem por si mesmos para revelar o potencial dialógico da interação. No
contexto estudado, o sujeito tenta "ser compreendido", ao ser
estimulado a falar de eventos normalmente "incompreensíveis". Como se
fosse necessário provocar uma nova busca pelo sentido da mensagem, ficando
claro o quanto o falante procura interagir com o receptor para compartilhar
essas mensagens.
No fragmento destacado, o sujeito começa com o metadiscurso como elemento
fundamental, para depois introduzir suas reflexões. Esses metadiscursos
produzem variações semânticas ao longo do discurso analisado. Quando
questionado sobre o significado da normalidade em saúde mental, procura
antecipar um possível erro de interpretação(15), dizendo: "eu acho assim,
entendeu, né?". Nessa situação destacada, ao dizer que "acha
assim", o sujeito está tentando repassar um significado singular para um
conhecimento abstrato de difícil significação (o normal e o patológico). Ou
seja, nesse momento, o importante não é a avaliação do interlocutor no processo
de interação, mas mostrar que o trabalhador possui uma opinião própria sobre o
assunto e pode discuti-la, apesar de sua complexidade.
O trabalhador também pretende mencionar que, estando equivocado ou não,
concluiu um raciocínio ao qual foi estimulado a refletir, utilizando-se de
outro metadiscurso desta vez para reafirmar seu propósito ("foi o que me
veio na mente agora"). Vale lembrar que os elementos metadiscursivos
citados estão deslocados na oração para a esquerda, antes do significado a ser
reparado (o fenômeno da topicalização da linguagem). Isso significa que há uma
necessidade de prender a atenção do interlocutor, para justificar-se antes de
explicitar própria justificativa.
Inicialmente, como se pode notar, os metadiscursos prenunciam um determinado
acontecimento lingüístico (a reflexão do trabalhador sobre o conceito de
normalidade). À medida que o assunto vai adquirindo consistência, as dúvidas
sobre o significado do tema também começam a aparecer. Essas dúvidas se
materializam tanto nos fenômenos metalingüísticos como no contexto social. É
dizer que as incertezas sobre a complexidade dos conceitos rondam o discurso
por meio de elementos metalinguageiros e repercutem na prática, às vezes, de
maneira equivocada, limitada e enviesada.
Os metadiscursos posteriores confirmam a necessidade de autocorreção do
conteúdo enunciativo para evitar equívocos na relação comunicacional. O
trabalhador pretende lembrar por meio de metadiscursos que, dentro do campo do
normal e do patológico, existem questões importantes, porém que merecem
diferenciação. Se antes ele se referia ao conceito, agora ele pretende discutir
o estado de normalidade. Como se o conceito fosse discutido no plano da
abstração e o estado no terreno da prática.
Existe uma dificuldade lógica da psiquiatria em compreender o incompreensível e
encarar as interrogações da humanidade. Ela desenvolveu, durante séculos, um
corpo de conhecimentos racionalizantes que pudessem descrever eventos
complexos, mesmo que fragmentassem os sentidos da experiência humana. Trata-se
de exercer a dominação sobre algo indomável, exercer poder sobre algo para o
qual o sucesso virou fracasso. Sem dúvida, ainda é natural que os profissionais
recorram ao arsenal de uma clínica que procura realizar diagnósticos
impecáveis, mesmo que objetualizem o sujeito e esquadrinhem a vida. No entanto,
quando esse diagnóstico se depara com situações que fogem da nossa realidade
mais corriqueira, para o qual a racionalidade não tem explicações, surgem as
incertezas. Nesse sentido, em que medida a clínica pode atenuá-las quando,
junto com as dores, elas retiram do sujeito sua personalidade, sua livre
responsabilidade sobre a vida e a morte?(16).
Importa, numa relação com a loucura, a forma como seus atores desenvolvem
estratégias para compreendê-la. Ainda que o campo da saúde mental respeite
definições tradicionais, o fato de o trabalhador compreender que se deve
trabalhar naquilo que o sujeito pode fazer, para que ele desenvolva o mínimo de
autonomia, já é um avanço importante quando falamos em reabilitação
psicossocial(17). Sabemos que a loucura impõe limitações psicossociais ao
sujeito, mas é possível tirar proveito dessas limitações a partir de um
processo de trabalho que capte as potencialidades do sujeito. Isso quer dizer
que podemos trabalhar com o estado de normalidade, tão precioso para a clínica
tradicional, sem, contudo, esquecer de que podemos produzir vidas e trocas nos
espaços sociais de atendimento.
O trabalhador parece tensionar, no cotidiano de sua prática de atendimento ao
usuário, conceitos importantes no campo da saúde mental, como limite e
capacidade. Se entendermos o limite como algo imposto pela realidade ou pela
condição do sofrimento, mas que pode ser transformado por não ser totalizante
da vida, estaremos contribuindo para a promoção e recuperação do indivíduo,
assim como preconiza a reforma psiquiátrica. Ao contrário, quando a limitação
adquire sua centralidade no projeto terapêutico e nas práticas dos
trabalhadores, estaremos correndo o risco de desenvolver estratégias que não
prejudicam, mas também que pouco contribuem para a libertação. Isso porque, ao
invés de promover autonomia, autogestão e cidadania, a intervenção passa a ser
pautada no compadecimento, na comoção e na benevolência.
No discurso anterior, por exemplo, o entrevistado fala da necessidade de
estimular a capacidade do indivíduo para a vida cotidiana, referindo-se à
questão da autonomia. No entanto, esse trabalho parece voltado para o
desenvolvimento de certa "capacidade adaptativa" para a vida social,
para que o usuário consiga conviver com o mínimo de dificuldades na comunidade.
Ao enxergar mais a limitação do que a potencialidade, o serviço de novo deixa
de re-politizar o sujeito para adequá-lo aos padrões socialmente aceitos e
estabelecidos como norma.
Há um conector contra-argumentativo que confirma esse posicionamento
("mas"). No momento em que o trabalhador diz que é importante
trabalhar com as diferentes possibilidades do usuário, ele mesmo, logo adiante,
estabelece graus de importância para sua própria fala. Desloca-se, portanto, o
sentido de o serviço estimular o sujeito para o fato de o mesmo serviço
trabalhar "dentro do que aquela pessoa consegue desenvolver". Ou
seja, a prática parece estar voltada para a independência do indivíduo em
relação à comunidade, mas contraditoriamente vem estimulando sua dependência em
relação ao serviço.
O próximo fragmento do discurso confirma essa tendência de centralização na
docilização de corpos e pouco trabalho visando à libertação de sujeitos:
Investigador Que tipo de clientela vocês atendem?
Trabalhador Ah, sim, a nossa clientela o que que é? É transtorno
mental, é esquizofrênico, bipolar e... ah qual é o outro? Como é que
é? Eu não sei direito assim, só sei que é... mais o que que eu posso
falar pra ti? Ah, tem casos também que a gente leva o paciente em
casa, ta? Então é assim, o familiar não/não tem, ah, condições de
trazer, tirando que eles, né? Tem que ser o paciente mesmo, se ele
não tem condições de sair de casa até o nosso serviço, que eles ficam
inseguros, né? Que eles não conseguem chegar nem no ponto de ônibus,
aí a gente vai buscar em casa, aí a gente busca assim, um bom tempo,
aí a gente tira e faz o treinamento também, muitos casos a gente já
fez treinamento pra eles irem sozinhos e voltarem sozinhos, né? Com
o, aí nesse caso assim também tem um grupo que a gente tenta
socializar, porque muitos a, o familiar não tira eles, né? Não levam
eles pra, como é que eu posso explicar? A/a gente ensina eles o que é
banco, a gente leva eles no banco, a gente leva o mais comum, banco/
banco, a lotérica, os museus, a gente leva em mercado, a gente leva
eles no shopping pra eles terem aquela socialização, e muitas vezes
pra eles poderem lidar sozinhos porque o familiar tem muito medo de,
ah, mandar ele até numa panificadora, entendeu? São muito, eles
protegem demais, né? E não é por aí, por aí a gente faz esse trabalho
pra eles poderem se desligarem um pouquinho e ter uma vida, né? Como
é que a gente diz assim? Com mais autonomia, né? É isso aí.
Geralmente existe um conflito de posições entre os trabalhadores de saúde
mental no que tange ao diagnóstico e às concepções do objeto de cuidado na
área. Muitos profissionais fazem uma distinção entre o que seria de domínio da
psicopatologia e da ordem do social. Parece haver dificuldades em sistematizar
conhecimentos e práticas que possibilite interpretar sintomas como
manifestações comportamentais e inscritas num contexto sociocultural. Chega-se
a pensar que um sintoma pode ser uma resposta da desordem social, mas pouco se
trabalha visando identificar esses determinantes, como avaliar a família ou a
comunidade nesse contexto. Isso, por sua vez, reduz o potencial de intervenção
terapêutica do serviço como um todo(18).
Nesse sentido, os trabalhadores se encaixam em três grupos distintos de
assistência. No primeiro grupo, fazem parte os profissionais que trabalham num
"modelo psicossocial com ênfase na instituição". Trata-se de um grupo
centrado numa concepção psicossocial de cuidado, mas num fazer
institucionalizado, pouco orientado por práticas territoriais. Num segundo
grupo, inserem-se os trabalhadores orientados pelo modelo territorializado, que
valorizam as experiências subjetivas dos sujeitos e não os desvincula da
comunidade e da família, além de mostrarem-se preocupados com as esferas
jurídico-política do mesmo. E o terceiro grupo é formado pelos trabalhadores
orientados por um "modelo biomédico humanizado". Nesse modelo, há uma
ênfase na psicopatologia, com enfoque no cuidado assistencialista e muitas
vezes tutelar, com posturas pedagógicas muitas vezes verticalizadas, com
práticas voltadas para o reposicionamento de manifestações, para que sejam
compatíveis com a reinserção social. Nesse caso, os trabalhadores desenvolvem a
humanização do ponto de vista da esfera tutelar, com ações normalizadoras e
pouco críticas sobre a vida, as relações humanas e o próprio sentido do cuidado
(18).
Discutimos anteriormente o fato de o trabalhador levantar recursos lingüísticos
para realizar transferências semânticas (como a sinédoque), principalmente no
que tange ao conhecimento sobre a clientela do serviço. Nesse fragmento em
especial, a sinédoque também está presente, assim como algumas estruturas
metadiscursivas e alguns marcadores discursivos, especialmente os de
substituição.
No caso do metadiscurso, o trabalhador seguidamente faz referências ao fato de
que assume determinadas responsabilidades com o usuário que seriam, conforme
diz, da família. Por exemplo, afirma que o serviço acompanha o
"paciente" ao banco, ao ponto de ônibus, ao museu, busca em casa e
leva ao shopping. No entanto, ao mesmo tempo em que executa essas atividades,
ele mesmo não parece ter certeza da finalidade de seu próprio trabalho,
evocando elementos do tipo: "o que que eu posso falar pra ti?",
"como é que eu posso explicar?" e "como é que a gente diz
assim?".
Esses elementos lingüísticos aqui funcionam como tentativas de reformulação de
seu próprio enunciado, como se o sujeito estivesse buscando novos conhecimentos
para encaixá-los dentro de uma mesma seqüencialidade discursiva. Dito de outra
forma, demonstram o quanto o trabalho com a loucura ainda é incerto para ele,
principalmente nos aspectos relacionados à reabilitação psicossocial.
"Aquela socialização", por exemplo, para o trabalhador, diz respeito
à prática de acompanhar o usuário nos ambientes sociais, de ensiná-lo a
comportar-se nesses locais. Aqui, aparece o recurso da pronominalização, quando
há a substituição do pronome "nós" por "a gente" (típico do
contexto coloquial), remarcando a singularização da equipe como unidade num
evento marcado pela oralidade (a entrevista).
Compreendemos que, embora se deva considerar o fato de que o serviço esteja
preocupado com o processo de ressocialização do sujeito, não é levando o louco
para passear que estaremos promovendo socialização. "Aquela
socialização" entendida pelo profissional não é compatível com
"aquela socialização" que conhecemos e defendemos como princípio
ideológico da vida. Quando se leva ao indivíduo ao banco, à lotérica, ao museu,
tendo por base apenas um treinamento de suas habilidades sociais ou uma
convivência superficial com a sociedade, continua-se adestrando o indivíduo,
buscando sua docilização. Nesse caso, voltaremos aos tempos em que Pinel
desenvolveu as bases de seu tratamento moral como único e eficaz recurso
pedagógico responsável pela recuperação das habilidades sociais do louco.
Ensiná-lo a exercer as atividades fundamentais da vida cotidiana não quer dizer
que estamos promovendo autonomia. Ao contrário, poderá reforçar o imaginário
social com o compadecimento, a comoção e a pena, como sentimentos e práticas
que substituem a solidariedade, o compartilhamento, o respeito mútuo e a
necessidade de valorização dos potenciais humanos.
Portanto, reside aqui uma das grandes dificuldades em construir as pontes entre
conhecimentos que se aproximam e se distanciam ao mesmo tempo. A fronteira
entre o que é normal e o que é patológico já é imprecisa por natureza para
indivíduos considerados simultaneamente, mas é perfeitamente precisa para um
único indivíduo e mesmo indivíduo considerado sucessivamente. Aquilo que é
posto como normal, mesmo que "normalizado", pode ser patológico em
outra ocasião, se permanecer inalterado. Isso porque o normal é o efeito obtido
pela norma manifestada no ato. Só que quem avalia essa condição é o próprio
indivíduo, porque é ele que sofre com a incapacidade e com a insuficiência do
momento. Portanto, é preciso entender que o fenômeno patológico transforma a
personalidade do doente, para não correr o risco de ignorá-lo(19).
A loucura e o louco, tensionados no contexto do processo saúde-doença e
institucionalizados na linguagem dos atores sociais, parecem suspendidos e
pouco repensados como eventos da existência material. Ao serem assumidos por
uma roupagem clínica que os absorvem como "diagnóstico", que os
transforma em limitação e incorpora, no plantel de suas práticas, a
benevolência, o compadecimento e a comoção como medidas tutelares, os
trabalhadores se distanciam do sujeito singularizado que busca, no serviço, um
sentido e uma possibilidade para problematizar a sua vida. Mais do que isso, ao
distanciar-se do sujeito, o trabalhador parece distanciar-se da possibilidade
de compartilhar o cuidado, ou seja, como um processo de relacionamento
constituído com o outro e não para ele, envolvendo contratualidade e negociação
coletiva.
O cuidado oferecido pelas instituições de saúde mental se torna pedagogicamente
potente quando promove a interação, o respeito, a renovação e a re-invenção
daquilo que muito tempo foi esquecido pela chancela do hospital psiquiátrico: o
humano. Isso porque aqueles serviços que agregam pouco valor às experiências
humanas e reduzem determinadas experiências subjetivas a um corpo de
conhecimentos inanimados tendem a reproduzir os inúmeros "jardins de
bonsais" japoneses, onde as plantas são supervisionadas e impedidas de
crescer além dos limites pré-estabelecidos pela ação humana sobre o ambiente
(20).
Nesse sentido, quando se trata de "desinstitucionalizar" a loucura, o
louco e a própria clínica, fala-se em promover a desfixação do aparato
institucional que movimenta a lógica normativa e prescritiva das instituições e
dos conhecimentos. Trata-se de desinstitucionalizar o corpo de saberes
produzidos por uma psiquiatria que dissociou a doença da existência,
valorizando mais o sintoma (sobre o qual se constrói a instituição e
determinadas práticas), a fragmentação e a compartimentalidade do que a
singularização. A verdadeira desinstitucionalização será conhecida como
processo teórico-prático-crítico quando reorientar instituições, serviços,
saberes, práticas e estratégias em torno do objeto "doença". Assim,
ao contrário de centralizar-se na cura, busca-se a emancipação; da reparação à
reprodução social de pessoas; do reducionismo à sociabilidade, às redes e à
complexidade da vida(21).
No seio da reforma psiquiátrica, discutimos a apropriação de certos conceitos
entendidos pelos trabalhadores e elementos lingüísticos usados no discurso
sobre o atendimento do usuário. Entendemos que a prática dos trabalhadores
parecem manifestações dos seus próprios discursos, os quais disseminam
potenciais ideológicos para romper e superar modelos tradicionais de
assistência, ao mesmo tempo em que ficam presos e pouco avançam em termos de
estimular a autonomia, a libertação e a contratualidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo procurou analisar o discurso de trabalhadores de saúde mental sobre
a clientela de atendimento (o usuário). Evidenciamos que muitas das práticas
com relação à loucura e ao louco são fruto de um contexto complexo em que a
internalização de conhecimentos novos ainda se mesclam com conceitos
tradicionais. Embora os trabalhadores procurem trabalhar com a tentativa de
romper com modelos tradicionais de atendimento, eles ainda estão sujeitos a
experienciar contradições que colocam em suspensão sua própria prática no
interior dos serviços substitutivos, como é o caso da benevolência.
Vivemos num contexto em que os conceitos e as práticas procuram destituir
conceitos excludentes e reposicionar sujeitos, assim como transformar práticas
centralizadoras em prol da horizontalidade e da negociação como premissas
fundamentais de tratamento humanizado. Mas o mais importante talvez seja a
ressignificação do imaginário social sobre a loucura, que depende do que e de
como se faz com a loucura no interior dos serviços de saúde mental. Um desafio
para o movimento da reforma psiquiátrica brasileira, bem como para os sujeitos
que fazem a saúde mental no cotidiano dos cuidados.
Esperamos que este estudo sirva de subsídios para novos estudos na área, de
modo a contribuir com a ressignificação de determinados conceitos ainda
enraizados em nosso contexto e, ao que parece, um desafio para serem superados
na prática.