Saúde mental na Estratégia Saúde da Família: a avaliação de apoio matricial
INTRODUÇÃO
O modelo tradicional de assistência à saúde priorizava as consultas médicas
individuais, com enfoque na doença e na cura. Com a criação do Sistema Único de
Saúde, em 1988, cuja diretriz mais ambiciosa pauta-se na integralidade da
atenção, tornou-se imprescindível a busca de uma nova forma de organização dos
processos de trabalho em saúde que valorizasse o espaço da coletividade
enquanto espaço de cuidado.
Assim, o governo brasileiro priorizou a saúde no âmbito da atenção básica,
implantando a Estratégia Saúde da Família (ESF) com o objetivo de reorganizar a
prática assistencial substituindo o modelo tradicional de cuidado, que se
baseia na cura da doença e na hospitalização(1-2). O foco da atenção das
equipes de saúde da família é a unidade familiar, e para isso tem o território,
ou seja, a comunidade, como ponto estratégico de sua assistência.
As diretrizes da ESF colocam em pauta conceitos como vínculo, acolhimento e
cuidado no contexto de uma atenção humanizada (2), e ainda remetem à construção
de uma gestão compartilhada do cuidado que implica a existência de uma rede de
compromissos e responsabilidades que devem ser assumidas pelos gestores, pelos
profissionais, pelos usuários do sistema de saúde e pela comunidade em geral.
No campo da saúde mental e da psiquiatria, seguindo a mesma lógica de
transformação do modelo assistencial, teve início, no final da década de 1970,
o movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, pautado no cuidado ao usuário e
em sua existência-sofrimento, em seu território de vida e em sua circulação.
A Reforma Psiquiátrica caracteriza-se como um movimento político, social e
ideológico em que os diversos atores acreditam ser possível outra forma de
tratamento da doença mental que não somente o hospital psiquiátrico, a
medicalização e a exclusão. A reforma aparece como um movimento que tem entre
seus propósitos a desinstitucionalização e a reabilitação psicossocial,
possibilitando a convivência com o louco nos diferentes espaços da cidade, sem
a necessidade de afastá-lo. Ela busca, ainda, promover novas relações com a
loucura, questionando ações intervencionistas, limitantes e estigmatizantes(3).
A reabilitação psicossocial, no contexto da reforma psiquiátrica, define-se
como um saber fazer, considerando o transtorno psíquico como um dado da
história de vida do usuário, ou seja, um indivíduo que vive em um território,
que mantém relações sociais e afetivas, que faz parte de determinada família e
que apresenta um transtorno mental com diferentes repercussões em sua vida(4).
O indivíduo em sofrimento psíquico é considerado um sujeito de direitos e
deveres, e o cuidado em saúde mental deve ser desenvolvido de acordo com esse
entendimento: o usuário é participante ativo do seu tratamento.
A reabilitação também é entendida como um conjunto de ações que visam a
aumentar as habilidades da pessoa, diminuindo o dano causado pelo transtorno
mental e envolvendo todos aqueles que fazem parte do processo de saúde-doença,
ou seja, usuários, familiares, profissionais e comunidade em geral. Consiste,
portanto, em um processo de reconstrução da cidadania do sujeito, devendo
contemplar os três vértices da vida humana: casa, trabalho e lazer(5-7).
A proposta é reforçar as potencialidades do sujeito para que ele se insira na
sociedade a partir daquilo que ele tem de melhor, ou seja, focar a pessoa que,
a despeito de sua patologia, não deve ser excluída por sofrer psiquicamente com
uma doença mental.
A ESF e a saúde mental apresentam características que as aproximam enquanto
áreas de saber, de prática assistencial e de cuidado, culminando em sua
parceria para atingir a proposta de reabilitação psicossocial e de atenção
integral. Destacamos que ambas as áreas preconizam a atenção integral, ou seja,
o acompanhamento do usuário ao longo de sua existência, pautando-se no
acolhimento e no vínculo como estratégias de intervenção na saúde,
desenvolvendo ações coletivas na comunidade, no território social onde as
pessoas se encontram, além de compreenderem o cuidado ao núcleo familiar como
foco de sua atenção.
A parceria entre a ESF e a saúde mental possibilita a reabilitação psicossocial
a partir do território, de modo a reduzir internações psiquiátricas
desnecessárias e facilitar o atendimento integral na família, modificando as
relações de cuidado e as práticas em saúde(8-9).
A proposta de inclusão das ações de saúde mental na atenção básica foi
discutida, em âmbito nacional, no ano de 2001, na Oficina de Trabalho para a
Discussão do Plano Nacional de Inclusão das Ações de Saúde Mental na Atenção
Básica(10). Como eixo organizador dessa inclusão, o Ministério da Saúde
incorporou o conceito de apoio matricial, que foi desenvolvido na perspectiva
da mudança de modelos assistenciais em saúde; tal conceito pauta-se no vínculo
terapêutico, e é entendido como um arranjo organizacional para desenvolver o
trabalho em saúde(11). Desse modo, o apoio matricial vai valorizar a prática
terapêutica no âmbito do território, enfatizando a singularidade do sujeito sem
fragmentar o cuidado, considerando ainda as dimensões familiares,
socioculturais, econômicas e biopsicossociais que envolvem o cotidiano das
ações para a promoção da saúde mental.
O apoio matricial constitui-se ainda como uma metodologia de trabalho
complementar ao sistema hierarquizado de referência e contrarreferência,
pretendendo oferecer retaguarda assistencial e suporte técnico-pedagógico às
equipes de referência(12) e às equipes de saúde da família, no caso da saúde
mental na atenção básica. Isso implica priorizar as ações de promoção da saúde,
possibilitando estratégias de atendimento das necessidades de saúde dos
usuários no âmbito da ESF, o que requer compromisso e corresponsabilidade de
todos os que participam do processo de cuidado: profissionais da equipe de
referência e da equipe matricial, o usuário e sua família, bem como a
comunidade.
Um aspecto relevante e que altera a tradicional noção de referência e
contrarreferência vigente nos serviços de saúde é que, quando o usuário utiliza
um serviço de apoio matricial, ele não deixará de ser usuário de sua equipe de
referência, ou seja, a responsabilidade principal, mas não única, pela condução
do caso continua a ser da equipe de referência; não há encaminhamentos, mas
projetos terapêuticos a serem executados conjuntamente(11). A diferença do
apoio matricial em relação ao tradicional sistema de referência e
contrarreferência é que permite uma cogestão na atenção à saúde, valorizando as
ações realizadas conjuntamente pelos profissionais da ESF com os apoiadores
especializados. O modelo de referência e contrarreferência quase não permitia
que os profissionais envolvidos no caso estabelecessem um diálogo sobre suas
condutas e ações, pois cada profissional atendia o usuário no seu espaço
particular de cuidado, sem, necessariamente, haver interlocução entre os
distintos serviços de saúde. Com isso, a responsabilidade pelo caso é, ao mesmo
tempo, de todos e de ninguém.
Na lógica do apoio matricial nas ações de saúde mental, a responsabilidade é de
todos: dos profissionais da equipe de referência e da equipe matricial; dos
usuários e da família, pois estão imbricados no processo de promoção da saúde;
e, também, de cada um, pois cada sujeito tem uma competência singular na tomada
de decisão para a realização do cuidado, tendo na integralidade da saúde o
direcionamento para as ações de saúde mental.
A responsabilização compartilhada torna possível distinguir situações
individuais e sociais que podem ser acolhidas pela equipe de referência e pelos
recursos sociais do entorno, evitando a psiquiatrização e a medicalização do
sofrimento, promovendo equidade e acesso e garantindo o cuidado de acordo com a
vulnerabilidade e a potencialidade do usuário(13).
Nesse sentido, o apoio matricial busca personalizar os sistemas de referência e
contrarreferência, estimulando e facilitando o contato direto entre as duas
equipes envolvidas nesse processo(12). Há uma mudança na lógica do sistema; ao
invés de simplesmente encaminhar o usuário com a guia de encaminhamento ao
setor especializado, aguardando um possível retorno desse atendimento por meio
da guia de contrarreferência, os profissionais da equipe de referência
compartilham a responsabilidade do cuidado com a equipe matricial. Com isso, o
profissional da equipe matricial pode atender o usuário no seu espaço de
cuidado e território, tendo conhecimento prévio da situação durante os momentos
de diálogo com a equipe de referência, o que possibilita o direcionamento do
atendimento.
Para que a proposta de apoio matricial se efetive na inclusão das ações de
saúde mental na ESF, é importante existir uma rede de cuidados em saúde mental
que seja articulada e comprometida com a transformação do modelo assistencial,
que tem no espaço do território um meio terapêutico, e que fornece, de modo
contínuo, atendimento das necessidades de saúde dos indivíduos na comunidade e
possibilita uma compreensão mais positiva, menos excludente e estigmatizada da
doença mental.
Entendemos que a inclusão das ações de saúde mental na ESF está ocorrendo de
maneira lenta e gradual, embora prejudicada, em alguns contextos, por aspectos
relacionados à insuficiência de serviços de saúde mental tanto em quantidade
como em qualidade. Outros aspectos que a prejudicam são relacionados à
desarticulação da rede de serviços de saúde mental, à falta de comunicação
entre os próprios serviços de saúde e entre os diferentes setores e ao
desconhecimento da proposta de inclusão da saúde mental no território a partir
da ESF como estratégia potencial para a reabilitação psicossocial.
Por outro lado, experiências de matriciamento em saúde mental a partir da
atenção básica têm demonstrado a viabilidade dessa proposta e os resultados
positivos que são alcançados com essa metodologia de trabalho, tanto para o
usuário, os familiares e os trabalhadores quanto para o próprio sistema de
saúde, que reduz gastos com atendimentos especializados e internações desneces-
sárias(14-17). É fundamental, porém, considerar os aspectos particulares de
cada realidade, ao invés de buscar generalizações ou de afirmar que o modelo de
apoio matricial é o único que trará efetividade ao cuidado em saúde mental.
Neste artigo, temos o objetivo de avaliar o apoio matricial na perspectiva das
equipes da ESF. Os resultados aqui apresentados originam-se da pesquisa
realizada com equipes de saúde da família no município de Porto Alegre/RS, no
que se refere à inclusão de ações de saúde mental na ESF(18).
MÉTODO
Tratou-se de um estudo avaliativo qualitativo, desenvolvido por meio dos
pressupostos da Avaliação de Quarta Geração, que se caracteriza por ser uma
avaliação construtivista responsiva em que as demandas dos grupos de interesse
são o foco da avaliação, construídas em conjunto, num processo hermenêutico-
dialético no paradigma construtivista(19).
O termo "grupo de interesse" designa organizações, grupos ou indivíduos
potencialmente vítimas ou beneficiários do processo avaliativo, formados por
pessoas com características comuns, que estão de alguma maneira envolvidas ou
potencialmente afetadas pelo serviço e pelas eventuais consequências do
processo avaliativo(19).
Assim, no estudo, o grupo de interesse escolhido era composto pelos 14
profissionais das duas equipes da ESF situada na zona leste do município de
Porto Alegre/RS. Foram incluídos todos os profissionais que trabalhavam na
unidade há pelo menos seis meses, pois entendemos que, nesse tempo, o
profissional já esteja inserido no contexto do serviço estudado. Participaram
do processo avaliativo dois médicos, dois enfermeiros, quatro técnicos de
enfermagem e seis agentes comunitários de saúde (ACS).
Para a coleta de dados, utilizamos a observação, totalizando 226 horas, e
entrevistas individuais com os profissionais da ESF, as quais foram gravadas e
transcritas na íntegra e identificadas pela letra P (profissional).
Para os procedimentos práticos da coleta de dados, utilizamos os seguintes
passos(20) a) contato com o campo; b) organização da avaliação, momento em que
o pesquisador ganha o direito de entrada no campo e realiza observação livre,
sem ainda estar engajado nas atividades de avaliação, com o objetivo de
conhecer o contexto; c) identificação dos grupos de interesse; d)
desenvolvimento das construções conjuntas, em que são realizadas as entrevistas
a partir do círculo hermenêutico-dialético; e) ampliação das construções
conjuntas quando são introduzidas, no círculo, outras informações e materiais
que podem elevar o nível de sofisticação das construções; f) preparação da
agenda para a negociação, que envolve a organização das informações coletadas
para decidir o que elas significarão no processo avaliativo e g) execução da
negociação, momento de discussão, debate e esclarecimento sobre as construções
conjuntas dos grupos de interesse, propondo uma nova construção comum alcançada
pelo consenso possível, tendo presente que construções competitivas podem
permanecer.
As entrevistas são conduzidas pela aplicação do círculo hermenêutico-dialético,
no qual o primeiro respondente (R1) participa de uma entrevista aberta para
determinar uma construção inicial em relação ao foco da pesquisa, sendo
convidado a descrevê-lo e comentá-lo em termos pessoais. Os aspectos centrais
propostos por R1 são analisados pelo pesquisador, que formula uma primeira
construção (C1) e inicia a análise dos dados concomitante à sua coleta. O
segundo respondente (R2) é entrevistado e, caso as questões abordadas por R1
não tenham sido contempladas por R2, ele é convidado a comentá-las. Como
resultado, a entrevista de R2 produz informações não apenas de R2, mas também a
crítica dos dados e construção de R1. O pesquisador completa a segunda análise,
resultando na C2, uma construção mais sofisticada e informada, e assim ocorre
até chegar ao último entrevistado(19). Nesse estudo, a questão norteadora do
processo avaliativo foi "Fale sobre as dificuldades e facilidades para realizar
o atendimento em saúde mental nesta unidade de saúde da família".
A proposta da avaliação de quarta geração, na medida em que proporciona a
negociação dos resultados com todos os interessados na pesquisa, vai ao
encontro da ação social organizada na saúde mental, objetivando a mudança e
propondo o diálogo entre sujeitos de direito(20-21).
A análise de dados foi realizada por meio do Método Comparativo Constante(22),
que utiliza duas etapas: a identificação das unidades de informação e a
categorização. As unidades de informação são sentenças ou parágrafos obtidos no
material empírico, registrados de modo compreensível a qualquer leitor que não
somente o pesquisador. A categorização tem o objetivo de unificar, em
categorias provisórias, todas as unidades de informação relacionadas ao mesmo
conteúdo, buscando a consistência interna das categorias para, posteriormente,
a partir da negociação, construir as categorias definitivas.
A categoria definitiva "ações de saúde mental" compreende os temas "tecnologia
em saúde, inclusão de ações de saúde mental na ESF e saúde mental do
trabalhador". Neste artigo, discutimos sobre o apoio matricial que, no processo
avaliativo, foi abordado no tema "inclusão de ações de saúde mental na ESF".
Os aspectos éticos foram respeitados conforme a Resolução nº196/1996(23) do
Conselho Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde, sendo o projeto aprovado
pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Porto Alegre sob o
nº238 e tendo todos os participantes assinado o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido.
Local do Estudo
O município de Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul, tem
população de 1.420.667 habitantes. Apresenta 519 estabelecimentos de saúde,
sendo 188 com atendimento pelo Sistema Único de Saúde(24).
O município é dividido em oito gerências distritais com coordenação local,
constituídas pelos diversos serviços da rede de saúde, a qual é composta por 45
unidades básicas de saúde, 72 unidades de saúde da família, seis centros de
saúde, dois hospitais, quatro pronto-atendimentos, oito núcleos de atenção à
saúde da criança e do adolescente, uma casa de apoio às mulheres e crianças
vítimas de violência doméstica, nove centros de atenção psicossocial (CAPS),
sete equipes de saúde mental por gerência distrital, uma pensão protegida, uma
oficina de geração de renda e trabalho para usuários de saúde mental, nove
farmácias distritais, além dos serviços conveniados(25).
Com relação à saúde mental, a rede conta com quatro CAPSII, dois CAPSad, três
CAPSi, uma oficina de geração de renda e trabalho, dois serviços residenciais
terapêuticos, uma pensão protegida, um programa de redução de danos, uma
comunidade terapêutica, um plantão de emergência em saúde mental, sete
ambulatórios e equipes de saúde mental, leitos psiquiátricos em dois hospitais
gerais. Conta ainda com serviços conveniados para internação hospitalar:
Hospital Psiquiátrico São Pedro, Hospital Espírita de Porto Alegre, Clínica São
José, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Hospital São Lucas da PUC e
Hospital Petrópolis(25).
Podemos inferir, considerando a população do município, que essa rede de
cuidados em saúde mental é insuficiente, em quantidade, pelo número reduzido de
serviços que deveriam constituí-la, o que tem acarretado dificuldades no
atendimento das demandas de saúde mental e interferido, também, na qualidade do
cuidado oferecido nesses locais, bem como na comunicação e na articulação entre
os serviços existentes.
A Política de Saúde Mental do município privilegia três eixos de
direcionamento: qualificação da atenção básica, ampliação da rede de serviços
especializados, promoção e desenvolvimento da intersetorialidade. Uma das
formas de contemplar esses eixos é a ampliação das ações de saúde mental na
atenção básica(25).
A Estratégia Saúde da Família estudada pertence à gerência distrital Partenon/
Lomba do Pinheiro, juntamente com outras seis unidades de saúde da família e
cinco unidades básicas de saúde. A ESF está localizada na zona leste do
município e deu início às suas atividades na comunidade em 2002, já com duas
equipes de saúde da família. O horário de funcionamento da unidade é das 8 às
12h e das 13 às 17h, estando a coordenação a cargo de uma enfermeira.
As duas equipes de saúde da família atendem 1.719 famílias, distribuídas em
oito micro-áreas. Cada equipe, composta por um médico, um enfermeiro, dois
técnicos de enfermagem e quatro agentes comunitários de saúde, responsabiliza-
se por quatro micro-áreas.
O acolhimento ocorre nos dois turnos de trabalho em qualquer horário, sendo
que, das 8 às 10h, essa atividade é a única exercida na ESF estudada. Os
usuários acolhidos que necessitam de atendimento com profissional médico ou
enfermeiro passam em consulta do dia, conforme é denominado. A partir das 10h,
os profissionais médicos e enfermeiros atendem as consultas agendadas, que
contemplam os programas preconizados na ESF. Destacamos que, na organização do
processo de trabalho dessa unidade, a área médica estruturou uma tarde,
quinzenalmente, para atender as demandas de saúde mental.
A ESF estudada é, também, espaço de ensino-aprendizagem de alunos do curso de
graduação de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na área
de saúde mental, e dos residentes do Programa de Residência Integrada em Saúde,
ênfase em Saúde Mental Coletiva, da Escola de Saúde Pública do Estado do Rio
Grande do Sul.
A ESF estudada realiza reuniões de equipe semanalmente às quintas-feiras, no
horário das 13 às 15h, em que são discutidas questões administrativas da
organização e planejamento do trabalho, casos de usuários e famílias com maior
necessidade de atenção, entre outros assuntos. Todos os profissionais de saúde
participam desse momento, bem como os alunos de graduação, sua professora e os
residentes.
A ESF estudada conta com quatro consultórios, um banheiro para funcionários e
outro para usuários, uma sala de vacinas/medicamentos, uma sala de nebulização,
sala de espera, recepção, cozinha e dispensa. A área física da unidade é
pequena, não havendo espaços adequados para realização de reuniões de equipe,
que ocorrem na sala de espera; a orientação de profissionais e alunos muitas
vezes ocorre na cozinha; e o desenvolvimento de grupos de saúde é realizado na
escola municipal da comunidade.
Os profissionais da ESF estudada buscam a obtenção de resultados satisfatórios
tanto para os usuários quanto para as equipes e serviço de saúde, demonstrando
o seu comprometimento com a proposta de trabalho da ESF.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Avaliação do apoio matricial na perspectiva das equipes da ESF
Considerando a Reforma Psiquiátrica Brasileira em que a desinstitucionalização
tem como propósito as relações do cuidado em saúde mental, propondo novas
alternativas de atenção com foco no sujeito em seu território a inclusão das
ações de saúde mental na atenção básica, a partir da ESF, pode favorecer a
consolidação da rede de cuidados em saúde mental, bem como a reinserção social
do indivíduo em sofrimento psíquico.
Essas ações exigem dos profissionais de saúde um trabalho terapêutico voltado à
pessoa, tendo presente que saúde mental significa apropriar-se ativamente da
vida e da cidadania.
Referente à inclusão de ações de saúde mental na ESF, para a qual há uma
orientação de implantação do apoio matricial, os profissionais avaliaram a
necessidade de acompanhamento por uma equipe de saúde mental para os casos
identificados na ESF estudada.
Os profissionais entrevistados não conheciam a proposta de inclusão das ações
de saúde mental na atenção básica que consta no documento ministerial
intitulado "Saúde mental e atenção básica: o vínculo e o diálogo necessários"
(26).
No processo avaliativo, foi identificada a necessidade de retaguarda
assistencial e de orientações técnicas das equipes especializadas para a
realização das ações de saúde mental no âmbito do território.
"... como nós não temos um CAPS na região, nós contamos com dois
médicos clínicos apenas no posto, eu acho que uma das portas seria a
visita mais assídua de um médico especialista. Como o Melaine Klein
(Hospital Psiquiátrico São Pedro) é conveniado com a gente, eu acho
que se o hospital dispor (sic) de um médico, pelo menos de 15 em 15
dias para atender a demanda aqui, já seria um grande passo em saúde
mental." (P8)
"Eu acho que tinha que ter um fluxo mesmo, fazer um trabalho
vinculado... não precisar esperar para encaminhar. Um fluxo que todo
mundo falasse a mesma língua: é lá que tu tens que ser atendido, vais
chegar lá e vais ser atendido, tem que ser internado, não tem (que
ser internado), tu vais voltar para casa e a equipe (especializada)
vai estar sempre nos informando o que é que a gente tem que fazer de
melhor. A gente poder ter um acompanhamento deles (equipe
especializada)." (P6)
"... tem que ter um vínculo aberto para tu poderes discutir um caso,
saber o que está acontecendo e uma referência. Tu tens a base aqui,
não deu certo, não está legal, tem que tratar de outra forma. A gente
teria essa referência, mas nesse momento a gente não tem. Tem que ser
encaminhado para uma rede, ele tem que ter um especialista, pelo
menos uma avaliação e volta para a gente. Ele sempre vai ficar aqui,
o paciente sempre vai ser atendido nessa unidade, ele vai e volta."
(P12)
Os profissionais da ESF estudada avaliam a importância da troca de informações
e da comunicação entre a unidade e uma equipe de saúde mental, identificando
que o apoio ocorrerá como suporte e orientação para as intervenções de saúde
mental desenvolvidas no território. Esses profissionais apontam, também, para a
urgência de se organizar o fluxo da rede de cuidados em saúde mental, que
deverá ser ampliada, oferecendo novos equipamentos que propiciem o cuidado
integral ao sujeito.
Existe, nos profissionais da ESF estudada, a certeza de que o usuário deve ser
mantido no território, com acompanhamento profissional. Isso demonstra um
entendimento acerca das diretrizes de atenção à saúde na Estratégia Saúde da
Família, ou seja, o cuidado é ampliado e deve acontecer no espaço social do
indivíduo. Considerando os propósitos da atenção psicossocial que têm entre
seus pressupostos a atenção integral e a reabilitação psicossocial, avalia-se
que as ações de saúde mental realizadas na ESF estudada devem ser organizadas
conjuntamente com profissionais especializados que orientem, discutam e
proponham intervenções para a manutenção desse cuidado junto às equipes de
referência, o que é característico de uma proposta de apoio matricial.
Os profissionais da ESF avaliam, ainda, que a orientação do apoio matricial
poderá facilitar e instrumentalizar o acompanhamento medicamentoso, a avaliação
clínica, a discussão das necessidades do usuário, entre outras atividades,
considerando o espaço territorial e social do sujeito, ou seja, sua rede de
apoio e as condições socioculturais e econômicas para a elaboração do seu
projeto terapêutico.
Na reunião de negociação, foi discutido o tema do apoio matricial, buscando o
caráter formativo do processo avaliativo, no qual objetivamos um processo mútuo
de educação dos pesquisadores e dos profissionais da ESF estudada. Assim, a
cada participante foi requerido confrontar e dar conta das demandas vindas dos
outros entrevistados, implicando a identificação e a descoberta das diversas
opiniões e julgamentos sobre a inclusão das ações de saúde mental na ESF. Por
meio da discussão, o grupo de interesse repensou suas construções; desse modo,
ocorreu um aprendizado, e as informações puderam ser revisadas e sofisticadas.
Nesse sentido, foram apresentados os objetivos do apoio matricial, seu arranjo
organizacional e sua metodologia de desenvolvimento, e, após esclarecimentos e
discussão, os profissionais da ESF estudada avaliaram esse tema como um modo de
acompanhamento e orientação que facilitaria a realização das ações de saúde
mental no território, contemplando a promoção da saúde.
O apoio matricial aparece como uma possibilidade de ampliar a clínica, pois
aumenta a capacidade de acolhimento da dimensão da subjetividade pelas equipes
de referência e, também, diversifica as propostas terapêuticas da saúde mental,
extrapolando os atendimentos individuais em consultórios(13).
Discutimos também, na reunião de negociação, sobre quem deveria constituir a
equipe de apoio matricial. Os profissionais avaliaram, unanimemente, que a
equipe deveria ser composta por profissionais com formação em saúde mental e de
caráter multidisciplinar, visando à integralidade da pessoa; não centralizando
o atendimento no aspecto biológico, mas considerando a experiência de vida da
pessoa em sofrimento psíquico e suas necessidades de cuidado.
Considerando o contexto da ESF estudada e do município de Porto Alegre,
cogitou-se que os residentes, que desenvolvem a interconsulta no local
estudado, poderiam constituir a equipe matricial. Mas, à medida que houve o
aprofundamento da discussão, ou seja, que ela foi sendo sofisticada(19), os
profissionais avaliaram que, pelo fato desse grupo ter tempo definido de
permanência na ESF estudada, sendo sua participação transitória, apenas
relacionada ao período da residência, o vínculo com a equipe e com os casos
apresentados seria prejudicado. Cada novo grupo que iniciasse suas atividades
ocasionaria um rompimento nas ações de saúde mental desenvolvidas na ESF
estudada, necessitando a retomada dos casos que estavam sendo orientados,
avaliados e acompanhados.
"A equipe identifica a equipe de residentes como sua equipe
matricial, porém é uma lógica que não funciona, porque eles não têm a
disponibilidade de atender as demandas do serviço, seu propósito é o
seu ensino e não as ações de saúde mental realizadas na ESF. A equipe
diz que necessita de apoio em saúde mental, quer discutir casos. Hoje
não há esse suporte. A equipe coloca que os residentes não deveriam
ser esse apoio matricial, pois mudam todo ano." (N)
O apoio dos profissionais da equipe matricial para a equipe de referência
requer disponibilidade e envolvimento para permitir a construção de um
atendimento mais singularizado, potencializando um trabalho terapêutico
inerente à ideia de estar próximo, de conhecimento dos diferentes profissionais
e projetos de saúde. O vínculo refere-se a uma relação de plena confiança,
permeada pela responsabilização e pelo compromisso, e se estabelece a partir do
momento em que o usuário encontra a ajuda concreta para sua necessidade na
equipe, que, por sua vez, acredita na possibilidade de um desfecho positivo(27-
28).
Nesse sentido, os profissionais da ESF estudada avaliaram que a equipe de apoio
matricial deve ter vínculo com a equipe de referência, o que facilitaria
acionar apoios. Logo, seriam criados mecanismos de aproximação e
comprometimento, promovendo um trabalho mais produtivo na construção de uma
prática assistencial mais ampliada, que considera o contexto e a incorporação
das dimensões subjetivas dos usuários e dos trabalhadores(11).
Assim, os profissionais da ESF avaliaram que uma equipe fixa para o apoio
matricial facilitaria a construção de ações mais terapêuticas por meio do
vínculo que seria construído ao longo do tempo, quando as pessoas envolvidas
iriam se conhecendo e confiando na ação do outro.
Após essa discussão, levando em consideração a responsabilidade a ser assumida
pela equipe matricial, os profissionais avaliaram a necessidade da coordenação
de saúde mental do município de oferecer apoio matricial às unidades básicas de
saúde e de saúde da família.
A equipe especializada de saúde mental existente na gerência distrital
Partenon/Lomba do Pinheiro não tem assumido o papel de apoio matricial para a
ESF estudada, pois, de acordo com a organização municipal, o Programa de
Residência Integrada em Saúde seria o equipamento que assumiria a
responsabilidade de atendimento das questões de saúde mental desse território.
"[...] A equipe de saúde mental que funciona dentro do nosso
Partenon, ela não nos pertence, ela é para atender a Lomba. Eu acho
que tinha que ter uma equipe de referência em saúde mental dentro do
distrito, próximo ao menos." (P2)
"A equipe de apoio matricial deveria ser a da gerência distrital."
(N)
Dessa forma, as equipes avaliaram que não contam com apoio matricial, mas
gostariam que a equipe especializada que existe na gerência distrital assumisse
a responsabilidade da atenção em saúde mental nesse território, caracterizando-
se como um local de suporte e orientação para as intervenções de saúde mental.
A Política Municipal de Saúde Mental não prevê a implementação de equipes de
apoio matricial, tendo três eixos de direcionamento: qualificação da atenção
básica, ampliação da rede de serviços especializados e promoção e
desenvolvimento da interseto-rialidade(25).
Há um direcionamento para a constituição de equipes de saúde mental nas
gerências distritais, tendo a lógica da referência e contrarreferência e
interconsultas como dispositivos para as intervenções junto à atenção básica.
Esse modo de funcionamento contrapõe-se à idéia de matriciamento, pois não há,
por parte dos profissionais envolvidos, corresponsabilização dos casos, ou
seja, cada um faz a sua parte no seu local de ação e não se comunica nem
partilha o cuidado em saúde mental que deveria buscar uma ação de saúde mais
integral.
A transformação dessas equipes especializadas em equipes matriciais propiciaria
maior qualidade nas ações de saúde mental na ESF, uma vez que os profissionais
conheceriam e discutiriam os casos conjuntamente, trazendo as especificidades e
a subjetividade de cada intervenção.
Avaliamos que o apoio matricial é um arranjo organizacional importante na
construção de ações de saúde mental junto ao território, potencializando
mudanças e transformações na atenção aos indivíduos em sofrimento psíquico,
trazendo a loucura para o cotidiano da vida social e integrando profissionais
de saúde, usuários da saúde mental, seus familiares e comunidade, todos com sua
parcela de responsabilidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cuidado em saúde mental no território é resultado de um movimento social,
político, cultural, histórico, jurídico, construído por diferentes pessoas em
semelhantes circunstâncias. A loucura passou, desde então, a habitar o espaço
da cidade, fazendo parte do cotidiano social, onde se percebe a possibilidade
de convívio com o louco nos espaços sociais.
A inclusão das ações de saúde mental na atenção básica, enquanto estratégia de
desinstitucionalização, reabilitação psicossocial e atenção integral aos
indivíduos que sofrem psiquicamente surge tanto como potencializadora na
consolidação do modo psicossocial de atenção em saúde mental quanto como um
desafio.
O desafio está no fato de promover mudanças e discussões necessárias para a
promoção das ações de saúde junto ao território. O apoio matricial é uma
metodologia de trabalho que, incorporada pelos gestores, profissionais de
saúde, usuários, familiares e comunidade, possibilita o compartilhamento da
responsabilidade no processo de reabilitação psicossocial e a vivência da
loucura no espaço da cidade.
Avaliamos que a proposta de matriciamento é uma ferramenta que deve ser
pactuada como uma ação que requer participação dos sujeitos envolvidos na
atenção à saúde mental, estabelecendo sobre o que, para que e como intervir.
Por meio de um processo de discussão dos diferentes grupos de interesse
envolvidos no cuidado em saúde mental na atenção básica, as intervenções de
saúde poderão ser qualificadas, sendo estas mais um dos recursos para a
realização de uma clínica ampliada e integral.
O processo avaliativo possibilitou aos profissionais da ESF estudada, junto dos
pesquisadores, compartilhar os resultados e aumentar o compromisso com o
acompanhamento dos usuários na promoção da saúde mental.
A partir disso, nas discussões promovidas, avalia-se que o apoio matricial
seria uma possibilidade no alcance e no fortalecimento de ações de cuidado em
saúde mental no território. Essa estratégia é um dispositivo que poderia
qualificar os projetos terapêuticos que têm como objetivo a inserção social, a
reabilitação psicossocial e a atenção integral dos indivíduos com transtornos
mentais.
Avaliamos, também, que o processo avaliativo possibilitou a reflexão sobre a
inclusão das ações de saúde mental na atenção básica por meio do questionamento
do que é feito e do que é necessário para essas ações. Há um comprometimento
com o cuidado em saúde mental; para isso, as equipes da ESF estudada têm
utilizado vários espaços possíveis, criando e inventando a saúde e construindo
redes de cuidado que rompem com a ideia de que as ações de saúde restringem-se
à hospitalização e à medicalização. Ao invés disso, propõem uma prática que
considera a vida social.
O estudo demonstrou a necessidade de ampliar a discussão em torno da questão do
apoio matricial em saúde mental como uma possibilidade de fortalecer o cuidado
no território, considerando, assim, a realidade de cada localidade, e avaliando
se essa estratégia irá alcançar os objetivos a que se propõe.