Formação em enfermagem: interface entre as diretrizes curriculares e os
conteúdos de atenção básica
INTRODUÇÃO
No Brasil, o Movimento da Reforma Sanitária, iniciado no final da década de 70,
culminou com a VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em Brasília,
em 1986. Os temas dessa conferência foram: "Saúde para todos e dever do Estado"
e "Reorganização do Sistema e Financiamento". Esta se configurou como um marco
importante para a saúde no Brasil, que passou a ser entendida como um direito
do cidadão e um dever do Estado. Em 1988, foi promulgada a Nova Constituição
Brasileira, dela originando-se o Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentado
pela Lei Orgânica da Saúde nº. 8.080, de 19 de setembro de 1990(1).
O SUS é norteado pelos princípios doutrinários de universalidade, equidade e
integralidade. Com isso, tornaram-se necessárias novas formas de organização
dos serviços de saúde, dentre as quais se acham a descentralização das
decisões, a implementação da regionalização e hierarquização da rede de
serviços, assim como a resolutividade dos problemas de saúde que demandam a
procura de atendimento no sistema formal de saúde, atitudes que exigem
profissionais aptos para operacionalizá-lo(2).
O processo de implantação do SUS trouxe modificações para a organização das
práticas de atenção e de gestão do sistema de saúde, mediante a formulação e
ampliação de propostas de novos modelos assistenciais, envolvendo a
diversificação dos serviços de saúde, os novos processos de qualificação dos
trabalhadores e a natureza do trabalho em saúde. Assim, novos paradigmas devem
nortear a formação dos trabalhadores da área(3).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, configurou-
se em um novo paradigma para a formação. Na Enfermagem, mais especificamente,
tem-se as Diretrizes Curriculares Nacionais para a graduação em enfermagem
(DCN/ENF), cujo ideal básico é a flexibilização curricular, com vistas a
possibilitar uma sólida formação de acordo com o estágio do conhecimento
desenvolvido em cada área, permitindo ao graduado enfrentar as rápidas mudanças
na área da saúde e seus reflexos no mundo do trabalho (4).
Nesse contexto, deve-se considerar o perfil do enfermeiro definido nas DCN/ENF
como um indivíduo com formação profissional generalista, técnica, científica e
humanista, com capacidade crítica e reflexiva, preparado para atuar em
diferentes níveis de atenção do processo saúde-doença, pautando-se em
princípios éticos(4).
É importante considerar que as DCN/ENF, aprovadas em 2001, desencadearam um
movimento de reestruturação dos currículos, buscando adequá-los às novas
exigências profissionais. A reforma curricular dos cursos de graduação em
enfermagem, ora ocorrendo em todo Brasil sob as referidas orientações, deixa
clara a preocupação com a solidariedade e a cidadania, com o saber conviver,
com o aprender a ser e o aprender a viver com o outro, elementos que constituem
a essência do humanismo e da ética como mola mestra do comportamento humano(5).
Como expressão disso, destaca-se o movimento das instituições de ensino, onde
significativas mudanças também estão em curso na busca da articular ensino,
serviço e movimentos organizados da população, na perspectiva de contribuir
para a formação do profissional da saúde, especialmente do enfermeiro. Nesse
sentido, o Projeto UNI (Nova Iniciativa na Formação dos Profissionais de
Saúde), o VERSUS (Vivência Estágio na Realidade do Sistema Único de Saúde), o
Pró-Saúde (Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em
Saúde), o Aprender-SUS (O SUS e os cursos de graduação na área da saúde), bem
como propostas em via de implantação, como o PET-Saúde (Programa de Educação
pelo Trabalho para a Saúde), são exemplos expressivos da tentativa de
aproximação entre ensino, serviço e comunidade, mediante a consecução de
avanços nos projetos pedagógicos articulados com práticas de saúde e princípios
do SUS.
No que diz respeito à formação profissional em saúde, o SUS assume, então, o
papel de interlocutor, orientando a formulação de projetos políticos
pedagógicos e não somente a função de campo de prática (estágio/aprendizagem),
pressupondo a necessidade de intervenção estatal via articulação ministerial
nas áreas da saúde, educação, trabalho, seguridade, meio ambiente, dentre
outras, para o desenvolvimento de recursos humanos do setor(3).
Assim, defende-se que os trabalhadores de saúde sejam sujeitos importantes do
processo histórico de implementação de novos paradigmas no Sistema Único de
Saúde brasileiro e reconhece-se o importante papel que os profissionais de
enfermagem tiveram e têm na construção do SUS. Ao enfermeiro compete novas
atribuições e competências dentro desse sistema, onde o profissional de
enfermagem é um dos grandes alicerces para implementação das políticas em
saúde. Desde já, está a importância de uma formação de qualidade em sintonia
com as Diretrizes Curriculares Nacionais e as políticas públicas de atenção à
saúde, que proporcionem uma perspectiva de inserção das competências e
habilidades previstas para os profissionais da enfermagem.
Nesse contexto, é imprescindível a necessidade de acompanhar como as diretrizes
em questão vêm sendo compreendidas e implementadas na proposta pedagógica das
instituições que formam os enfermeiros, a fim de garantir a assistência
humanizada à saúde, pretendida pelo SUS no atual momento.
No momento em que o SUS completa 20 anos de implementação, busca-se saber em
que medida os trabalhadores da saúde encontram-se capacitados para exercerem
atividades nesse sistema. Em outras palavras, deseja-se conhecer que conteúdos
na área da Atenção Básica são estudados nos cursos de graduação em saúde, tendo
como referencial norteador as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos
de Graduação em Enfermagem. Emerge daí a relevância deste trabalho que intenta
responder tais questionamentos apoiando-se na análise dos atuais Projetos
Pedagógicos de três dos mais antigos cursos de graduação em enfermagem do
Estado do Ceará.
Com o estudo, espera-se suscitar reflexões quanto ao compromisso assumido por
instituições de ensino superior quanto à formação de trabalhadores capazes de
responder adequadamente à complexidade dos problemas de saúde encontrados na
realidade dos serviços e de cada região, considerando um perfil quantitativo e
qualitativo de profissionais para a consolidação do SUS.
MÉTODO
Para análise dos PPPs optou-se por desenvolver uma pesquisa documental, na qual
se utiliza materiais que não receberam tratamento analítico, como os documentos
conservados em órgãos públicos e instituições privadas.
A coleta de dados se deu no período de janeiro a maio de 2009, por meio da
análise das matrizes curriculares dos cursos superiores de formação em
Enfermagem do Ceará. Salienta-se que foi solicitada autorização prévia às
Coordenações de cada curso para proceder à análise dos referidos documentos,
por meio de Termos de Consentimentos.
Atitude igualmente ética corresponde à atribuição de nomes fictícios às
Instituições de Ensino Superior, no intuito de preservar-lhes o anonimato.
Destarte, deu-se-lhes os nomes Alfa, Beta e Gama para identificar os cursos
estudados.
Para o processo de análise do material coletado foi utilizada a análise
temática, que estabelece três passos básicos para a investigação: a ordenação
dos dados, que engloba o conteúdo das observações realizadas, bem como o
levantamento documental e bibliográfico referente ao tema; a classificação dos
dados, que é obtida através do questionamento teórico dirigido ao campo de
investigação com base numa fundamentação teórica, realizada através de leituras
exaustivas e repetidas dos materiais selecionados, buscando estabelecer uma
relação com do ponto de vista dialético; e a análise final, que transita entre
o concreto e o abstrato, o particular e o geral das informações recolhidas no
campo de pesquisa, voltando-se à especificidade obtida na descrição dos cursos
através da análise documental(7).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise dos Projetos Pedagógicos dos cursos permitiu realizar um breve
histórico da cada curso de enfermagem; identificar a consonância entre este e o
perfil do egresso, as competências e habilidades gerais e específicas, bem como
as áreas do conhecimento contempladas. Identificou-se ainda a interface entre
os conteúdos presentes nos referidos PPP dos cursos e a área da Atenção Básica.
Contando as histórias dos cursos de enfermagem
A história do Curso de Enfermagem da Universidade Alfa
Origina-se em Cursos de Emergência de Voluntários Socorristas e de Defesa
Passiva Anti-Aérea, realizados de outubro de 1942 a 1943. Os referidos cursos
se destinavam às esposas de oficiais do Exército, Marinha e Aeronáutica.
Depois de inúmeras discussões em torno da necessidade de formação de
enfermeiras no Estado do Ceará, ocorreu a idéia da criação da Escola Associação
São Vicente de Paulo, associação essa que se tornaria a entidade mantenedora da
instituição. Então, a nova escola iniciou seu curso regular, tornando-se a
primeira escola de enfermagem no Nordeste. Em 1975, essa escola encampada pelo
Governo do Estado com toda sua Estrutura e Organização, passou a denominar-se
Curso de Enfermagem da Universidade Alfa, permanecendo fundamentada no
currículo vigente na época, no qual predominava o modelo clínico de assistência
médica individual, curativa e hospitalar, enfocando os aspectos biológicos, em
detrimento do ensino das Ciências Humanas e Sociais.
O Curso de Enfermagem da Universidade Alfa não passou por nenhuma reforma no
período de 1982 a 1984. Em 1988, não foram promovidas alterações estruturais em
sua matriz curricular, apenas introduziram-se disciplinas referentes à
Licenciatura que, à época, era realizado concomitantemente com o bacharelado.
No primeiro semestre de 1997, para atender a uma resolução do MEC, foi iniciada
a revisão do currículo vigente e a elaboração de um PPP.
O PPP do Curso de Enfermagem desta Universidade foi elaborado tomando por base
a Lei de Diretrizes e Bases Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em
Enfermagem (Parecer CNE/CES 1.133/2001). Isso culminou em seu desenho
curricular atual organizado por disciplinas, sendo 4.230h obrigatórias e 120h
optativas, distribuídas em nove semestres. Este desenho participa do Programa
de Reorientação para a Formação em Enfermagem PRÓ-SAÚDE II, o que revela uma
preocupação com a formação do enfermeiro.
A História do Curso de Enfermagem da Universidade Beta
O curso nasce, na década de 1970, na esteira da meta de extensão de cobertura
da Organização Mundial de Saúde para países do então terceiro mundo, sendo a
Enfermagem colocada como estratégica para tal fim, de acordo com
pronunciamentos de organismos internacionais. O funcionamento do curso baseia-
se no Documento sobre Desenvolvimento do Ensino Superior de Enfermagem no
Brasil, do MEC.
O funcionamento do referido curso iniciou-se em 1° de março de 1976, com o
processo formativo de sua primeira turma. Em dezembro de 1978, o currículo
pleno do curso é aprovado, sendo encaminhado para o Conselho Federal de
Educação, sob forma do processo nº 7.727/78, de 8 de dezembro de 1978. O
reconhecimento do curso pelo MEC se dá através da Portaria nº 1069, de 29 de
outubro de 1979, publicada no Diário da União de 30/10/79.
Na atualidade, os conteúdos do currículo estão organizados de forma
integralizada, perfazendo uma carga horária total de 4.320h, sendo 3.963 de
disciplinas teóricas e 384 horas de atividades complementares, distribuídas em
nove semestres e guardando uma especificidade de organização por ciclos de
vida. Esta universidade participa do PRÓ-SAÚDE I e II, e encontra-se em
processo de reforma curricular.
A História do Curso de Enfermagem da Universidade Gama
O Curso de Enfermagem desta IES foi fundado no ano de 1973, reconhecido
posteriormente pelo Decreto-lei nº 79.018/76. Achava-se vinculado ao Centro de
Ciências da Saúde com uma oferta inicial de 30 vagas. Trata-se do segundo curso
a ser criado no estado do Ceará.
Desde o ano de sua instalação, em 1973, o Curso de Enfermagem tem passado por
efetivas alterações curriculares, incluindo novas disciplinas e modificando a
carga horária de algumas. Em 1995, foi implantado o novo currículo, conforme
Parecer CFE nº 314/94 e Portaria Ministerial nº 1721/94, visando adequar o
ensino às demandas sociais e políticas. A organização do atual currículo tem
como base a Resolução CNE/CES Nº 3, de 07 de novembro de 2001, que estabelece
um currículo de enfermagem formado por 3 (três) grandes áreas temáticas:
Ciências Biológicas e da Saúde, Ciências Humanas e Sociais, Ciências da
Enfermagem.
Perfil dos egressos dos cursos de enfermagem
Foi analisado nos PPP dos Cursos o texto que define o perfil dos egressos. Para
fins de análise, criou-se categorias analíticas denominadas: "Contempla
Totalmente", "Contempla Parcialmente" e "Não Contempla", para dizer em que
medida estão contemplando os aspectos destacados nas Diretrizes Curriculares
Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem, que diz:
Art. 3º O Curso de Graduação em Enfermagem tem como perfil do formando egresso/
profissional:
I - Enfermeiro, com formação generalista, humanista, crítica e
reflexiva. Profissional qualificado para o exercício de Enfermagem,
com base no rigor científico e intelectual e pautado em princípios
éticos. Capaz de conhecer e intervir sobre os problemas/situações de
saúde-doença mais prevalentes no perfil epidemiológico nacional, com
ênfase na sua região de atuação, identificando as dimensões bio-
psico-sociais dos seus determinantes. Capacitado a atuar, com senso
de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como
promotor da saúde integral do ser humano; e
II - Enfermeiro com Licenciatura em Enfermagem capacitado para atuar
na Educação Básica e na Educação Profissional em Enfermagem.
Tendo como base a definição do perfil do egresso, viu-se que todos os PPPs das
três Universidades em estudo a contemplam. Ao referir-se ao perfil do
enfermeiro com formação generalista, humanista, crítica, reflexiva, o Artigo 3º
deixa a impressão de aludir a uma pessoa aberta, com uma objetividade reflexiva
voltada para o sentido humano, uma pessoa para o mundo(3).
Na análise de cada trecho referente ao perfil dos egressos, pode-se constatar
que a Universidade Gama fez uma abordagem que "Contemplou Totalmente" as DCN/
ENF em relação ao perfil do egresso. Abordou em tópicos, mais detalhadamente,
elementos como a questão ética, a formação generalista, crítica e reflexiva; o
processo saúde-doença, a educação permanente, a promoção, proteção e
recuperação da saúde. Já as Universidades Beta e Gama "Contemplaram
parcialmente", uma vez que, em seus respectivos Projetos está posta apenas uma
breve descrição sobre o perfil do egresso.
O profissional generalista é aquele que tem uma visão mais global e menos
específica da Enfermagem, incorporando saberes epidemiológicos, de educação em
saúde, de trabalho em grupo e de gestão, de forma a ajudá-lo nas intervenções
individual e coletiva(8). Na formação humanista, a enfermagem deve congregar a
pesquisa, o ensino, a extensão e a assistência, resgatando o respeito pela
vida, em especial, humana.
A formação crítica do profissional o estimula a desenvolver atividades com
objetividade, preparando-o para decisões competentes, baseadas em atitudes
questionadoras. Já a formação reflexiva pode se apresentar por meio da postura
ética, não considerando só a normatização de deveres e direitos ou regras de
comportamento profissional.
O egresso do curso de enfermagem precisa ser promotor da saúde integral do ser
humano tendo sempre como base o rigor científico; sua atuação deve estar
pautada em princípios éticos e os campos de práticas e estágios se mostram
ricos em situações concretas. Além da necessidade de ser conhecedor e
interventor do perfil epidemiológico nacional/regional e local onde a
"diversificação de cenários de prática, ampliação dos tempos de prática e
aproximação ao SUS, além da orientação do perfil ético e humanístico dos
profissionais e à multiprofissionalidade, em especial com o caráter
interdisciplinar, direcionarão o futuro enfermeiro a não só conhecer o perfil
epidemiológico, mas tornar-se um interventor desse perfil, contribuindo para a
melhoria da qualidade de vida dos cidadãos"(8).
Competências e habilidades gerais e específicas do enfermeiro
As diretrizes curriculares podem ser definidas como diretrizes gerais que
orientam o planejamento acadêmico do curso de graduação para formação
profissional. No campo da enfermagem, as DCN preconizam ao profissional uma
formação generalista, crítica e reflexiva, capaz de possibilitar-lhe conhecer e
intervir sobre os problemas/situações de saúde-doença mais prevalentes no
perfil epidemiológico nacional, com ênfase na sua região de atuação,
identificando as dimensões biopsicossociais de suas determinantes(9).
Competência é a capacidade para aplicar adequadamente conhecimentos e
habilidades para alcançar um determinado resultado em um contexto concreto.
Desenvolver competências para o pleno exercício de um ofício requer interagir
no âmbito ou contexto em que se realiza esse ofício, aferindo a progressiva
qualificação do aprendiz para o desempenho desse mesmo ofício(10).
Há dois fortes obstáculos à implementação das diretrizes curriculares na forma
almejada pela lei: a dicotomia entre teoria e prática e a dificuldade de
avaliação de competências profissionais para efeito de certificação
educacional. A efetiva integração entre os processos de ensino-aprendizagem e
de produção de serviços é, ademais, requisito indispensável para o
desenvolvimento de competências profissionais, meio de cultura insubstituível
para germinação de práticas adequadas de avaliação dessas mesmas competências
(10).
Na análise dos PPPs das Universidades Alfa, Beta e Gama, foram quantificadas as
competências e habilidades gerais e específicas listadas nos documentos
oficiais. Além disso, foi analisada a sua similaridade aos princípios
contemplados nas Diretrizes Curriculares Nacionais (Quadro_1).
![](/img/revistas/reben/v64n2/a15qd01.jpg)
Na leitura do quantitativo de competências gerais pontuadas pelos PPPs em foco,
apenas a Universidade Gama pontuou as competências e habilidades gerais
conforme o artigo 4º da resolução CNE/CES Nº3, de 7 de novembro de 2001. As
universidades Alfa e Beta não contemplaram nenhuma das competências e
habilidades gerais.
No que se refere à análise das competências e habilidades específicas, notou-se
que na Universidade Alfa foram pontuadas 15 competências e habilidades
específicas, então "Contemplou parcialmente"; enquanto a Universidade Beta
"Contemplou totalmente", indicando em seu Projeto 60 competências e habilidades
específicas.
A Universidade Gama "Não Contemplou" nenhuma das competências e habilidades
específicas, ou seja, não está pontuado quais seriam as competências e
habilidades específicas para o enfermeiro que se forma nessa Universidade.
Apesar de, durante a análise dos documentos, muitas dessas competências estarem
subentendidas em alguns trechos dos textos, não houve nenhuma Universidade que
"Contemplasse Totalmente" todas as competências e habilidades gerais e
específicas em seus Projetos Pedagógicos, ou seja, nenhuma delas resgatou os
aspectos tal como estão descritos nas DCN/ENF.
As Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem
trazem, entre outros, três grandes artigos referentes às competências e
habilidades gerais, específicas e conteúdos essenciais para a formação do
enfermeiro (artigos 4º, 5º e 6º, respectivamente) onde se percebe um
delineamento centrado no humanismo-existencialista (5).
Em relação às competências e habilidades gerais requeridas para o exercício
profissional, o Artigo 4º faz referência, embora que de forma implícita nos
quatro primeiros incisos, ao aprendizado que valorize questões ético-
humanistas: atenção à saúde (prática integrada e contínua no nível individual e
coletivo); tomada de decisões (uso apropriado, eficácia e custo-efetividade dos
materiais, instrumentos e da força de trabalho); comunicação (interação com
outros profissionais e com o público geral, além do domínio de tecnologias de
comunicação e informação); liderança (responsabi-lidade, empatia e habilidade
para tomar decisões). As competências de ordem técnica e que demandam a
apreensão das anteriores são abordadas mais especificamente nos incisos V e VI,
relacionados, respectivamente, com a administração e gerenciamento (aptidão
para o gerenciamento e administração da força de trabalho e dos recursos
físicos e materiais); educação permanente (capacidade de aprender continuamente
e de formar redes de cooperação) dos profissionais(5).
Essas orientações gerais se configuram como propostas de referência para uma
formação profissional abrangente, embasada por uma concepção ampla de saúde,
que enfatiza a integralidade pela superação da dicotomia entre a abordagem
epidemiológica e a clínica, o estabelecimento de boas práticas relacionais
entre os sujeitos (profissionais e usuários), o uso adequado e eficiente dos
recursos, o interesse em atualização contínua e a responsabilidade com a
educação dos demais profissionais de saúde. Correspondem a um leque de
exigências e padrões definidos como elementos indispensáveis ao perfil de um
novo profissional, capacitado e responsável por uma atenção à saúde mais justa,
igualitária e de melhor qualidade para todos(3).
Áreas de conhecimento contempladas nos currículos e sua interface com a área da
Atenção Básica
Os PPPs em questão têm em comum a forma de organização curricular, todos
contemplam os conteúdos distribuídos em disciplinas. O currículo integrado está
expresso no Curso de Enfermagem da Universidade Beta, contemplando uma
estrutura que atende às Diretrizes Nacionais de Enfermagem, relacionando o
pedagógico e o corpo científico da enfermagem.
Defini-se currículo integrado como um plano pedagógico e sua correspondente
organização institucional que articula dinamicamente trabalho e ensino, prática
e teoria, ensino e comunidade. As relações entre trabalho e ensino, entre os
problemas e suas hipóteses de solução devem ter sempre, como pano de fundo, as
características sócio-culturais do meio em que este processo se desenvolve. A
proposta de currículo integrado parece mais apropriada para atender à
necessidade de integrar ensino e trabalho na formação de pessoal de níveis
médio e elementar, pelas instituições de saúde nas suas diversas categorias
(11).
Conforme o artigo 6º da Resolução CNE/CES N°3 (2001) "os conteúdos essenciais
para o currículo de graduação em Enfermagem devem estar relacionados com todo o
processo de saúde-doença do cidadão, da família e da comunidade..." devendo
contemplar:
I Ciências Biológicas e da Saúde inclui os conteúdos (teóricos e
práticos) de bases moleculares e celulares dos processos normais e
alterados da estrutura e da função do corpo humano, aplicados às
situações decorrentes do processo de saúde-doença.
II- Ciências Humanas e Sociais inclui os conteúdos necessários à
compreensão das relações do homem com a sociedade e os determinantes
sociais, culturais, econômicos, ético-legais, políticos do processo
de saúde-doença.
III- Ciências de Enfermagem:
1- Fundamentos de Enfermagem conteúdos técnicos e metodológicos e
instrumentos inerentes ao trabalho do enfermeiro a nível individual e
coletivo.
2- Assistência de Enfermagem conteúdos teóricos e práticos
necessários para a assistência de Enfermagem à criança, ao adulto, ao
adolescente, à mulher e ao idoso, estabelecendo intervenções de
cuidado de enfermagem. Levando em consideração os aspectos bio-psico-
sociais e o processo saúde-doença.
3- Administração de Enfermagem envolve os conteúdos teóricos e
práticos da administração de enfermagem e gerenciamento desenvolvidos
na rede de saúde.
4- Ensino de Enfermagem os conteúdos referentes à instrumentalização
do enfermeiro para exercer a prática educativa.
A análise dos PPPs permitiu perceber que as disciplinas dos cursos em foco
estão "divididas", considerando o Ciclo Básico, que compreende ao período
inicial do curso, com duração média de dois anos ou quatro semestres e o Ciclo
Profissionalizante, que introduz as disciplinas mais específicas da Enfermagem
com atuação nos campos de prática.
Viu-se que um dos problemas detectados nos currículos era sua fragmentação em
ciclo básico e ciclo profissionalizante, uma vez que seus estudos sobre saberes
e práticas curriculares em saúde, a divisão entre ambos os ciclos é um
resquício da reforma do Ensino Superior de 1968, que instituiu os departamentos
e criou a divisão dos ciclos para uma maior racionalização de recursos(12).
Essa análise foi feita a partir das ementas de cada disciplina correspondente,
fazendo uma interface com os pressupostos da Atenção Básica à Saúde proposta
pelo SUS, contemplando conteúdos referentes à promoção da saúde, à prevenção de
doenças e agravos, à assistência e ao tratamento e à reabilitação da saúde(2).
A participação do enfermeiro na Atenção Básica, por tratar-se de um
profissional historicamente marcado pelo compromisso com a saúde pública, tem
grande capilaridade e está presente na maioria das ações, especialmente no
atual contexto de transformações constantes, onde é o profissional mais
requisitado para assumir papeis estratégicos na implantação das políticas de
saúde(13).
Numa abordagem psico-pedagógica, o significado de currículo passa pela proposta
de um conteúdo lógico, seqüencial, contínuo, pautado por objetivos educacionais
previamente definidos, vivenciados através das experiências de aprendizagem
organizadas pelo professor. Esta modalidade de currículo se identifica com uma
visão conservadora onde prevalece o enfoque instrucional e metodológico. Na
perspectiva deste enfoque tecnicista, o currículo tem como pressuposto a
previsão, a pré-determinação e o planejamento, buscando atingir requisitos
científicos de rigor, exatidão objetividade(14).
Mais recentemente a teoria curricular e a educacional apontam a necessidade de
se compreender o currículo além de suas dimensões técnico-pedagógicas,
entendendo-o como um ato de renovação e compromisso social. Esta modalidade
incorpora a noção de um currículo-formação voltada para a consciência crítica,
emancipação e humanização do homem, assumindo questões de natureza ética,
política, social e não apenas as de ordem técnica-instrumental. Esta linha de
orientação teórica se opõe ao fato de considerar o currículo como um ato
isolado de um compromisso da escola para com seus alunos e a comunidade; coloca
a possibilidade de entendê-lo como um ato social, um compromisso para com uma
determinada comunidade ocupacional, conduzido por diferentes postulados,
prática e valores sociais que irão mediar a formação e desempenho profissional
(14).
A partir desses eixos as ementas foram analisadas. Cada ementa foi lida e
criteriosamente sistematizada nas categorias do Quadro_2.
[/img/revistas/reben/v64n2/a15qd02.jpg]
A Universidade Alfa totalizou dezessete disciplinas nas quais os aspectos da
Atenção Básica estavam sendo citados e/ou contemplados. Destas, um total de
oito disciplinas foram referentes ao período inicial do curso e nove no período
profissionalizante. A Universidade Beta totalizou vinte e uma disciplinas, onde
doze foram relacionadas ao ciclo básico e nove foram do ciclo
profissionalmente.
A Universidade Gama foi a que demonstrou o menor número de disciplinas que
problematizam a questão das novas diretrizes para formação de enfermeiros. É
necessária a utilização de estratégias que aproximem a formação do enfermeiro
para as necessidades locais/regionais e nacionais em saúde.
Os recursos humanos em saúde precisam estar pautados nos princípios que
norteiam a política de Saúde do SUS para a consolidação do mesmo. As novas
conformações para a formação do(a) enfermeiro(a) não se limitam às questões
técnicas, relativas a conteúdos de ensino, procedimentos didáticos e técnicas
pedagógicas pedagogia tecnicista. Elas pautam-se na adoção de referencial
teórico- pedagógico que sustente uma aprendizagem significativa, transformadora
e adequada às demandas sociais e profissionais que se apresentam na atualidade.
Essas análises mostram que, das Universidades em estudo, Alfa e Beta foram as
que tiveram seus currículos mais estruturados dentro dos preceitos da Atenção
Básica, de acordo com o que está explícito nas ementas das disciplinas. É
importante ressaltar que essa análise é apenas o reflexo dos documentos
estudados e, de maneira geral, isso reflete quem serão os profissionais que
estarão abastecendo os recursos humanos para a saúde no Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Construir essa análise sobre a interface dos PPPs dos cursos de Enfermagem de
Universidades cearenses com a Atenção Básica da Saúde no Brasil foi uma tarefa
desafiadora. A partir dela constatou-se que os PPPs em estudo tentam fazer uma
interface com a proposta das Diretrizes Curriculares Nacionais, o que
representa algum avanço na forma como docentes e discentes percebem as
políticas de saúde do país.
Há, também, uma preocupação em fazer essa aproximação com a Atenção Básica da
Saúde. Nas Universidades Alfa e Beta, esse dado reflete o nível de excelência
dessas instituições e sua credibilidade na formação dos profissionais de
enfermagem no estado do Ceará. Os resultados mostram que a Universidade Beta
está adiante nessa discussão quando propôs uma forma de estruturação do
currículo integrada.
Convém salientar a importância da construção de currículos majoritariamente
integrados, sem disciplinas isoladas, obtendo conteúdos organizados em módulos,
sem a precedência cronológica do ciclo básico. Os temas são abordados de modo
que as áreas básicas funcionem como efetiva base e referência para a busca dos
conhecimentos voltados à solução de problemas. O currículo deve representar a
visão de mundo percebida pela escola e seus professores.
Para finalizar, embora as Políticas de Atenção Básica tenham se consolidado
cada vez mais, ainda existe um grande desafio quanto à formação dos
profissionais que estarão atuando na Atenção Básica. Nesse sentido, os
currículos das Universidades são o reflexo da formação dos profissionais que
estarão atuando para a consolidação do Sistema Único de Saúde-SUS no Brasil.
Professores e estudantes devem estar comprometidos com as transformações que
são imprescindíveis para diminuir a dicotomia entre teoria e prática durante a
formação acadêmica, entre discurso e ação concreta na realidade. É necessário o
debate contínuo no interior do SUS, no interior da sociedade civil brasileira e
no interior das universidades para que se possa reconhecer minorar a
fragilidade do processo de construção social da saúde no Brasil.
É um grande desafio continuar-se avaliando e melhorando a qualidade dos
currículos dos cursos superiores para que a enfermagem seja atuante no processo
de transformação do cenário da saúde no Brasil, e que a formação transcenda as
questões técnicas e acadêmicas, mas que sirva como estratégia para a
transformação social.