Sentimentos de familiares sobre o futuro de um ser esquizofrênico: perspectivas
para o cuidado de enfermagem
INTRODUÇÃO
A esquizofrenia é uma doença heterogênea no que se refere a sua etiologia,
sintomatologia, gravidade, duração, curso e resposta ao tratamento(1). Seus
sintomas mais comuns, apesar das diferenças dos padrões de personalidade
prévia, caracterizam-se principalmente pela mania de perseguição e por
alucinações visuais e auditivas(2), o que a caracteriza como um distúrbio grave
e persistente que resulta em comportamento psicótico, deterioração do
pensamento concreto e dificuldades no processamento das informações, nos
relacionamentos interpessoais e na resolução de problemas(3).
Um dos fatores que tornam a esquizofrenia uma doença de alto impacto sobre o
indivíduo é seu aparecimento precoce, sendo as manifestações clínicas mais
frequentes na adolescência e início da vida adulta(1). Ademais, na grande
maioria dos indivíduos, após a primeira vez a crise se apresenta pelo resto da
vida, o que demanda um inegável envolvimento familiar em todo o processo de
cuidado(3). Assim, a principal rede de suporte natural do indivíduo portador de
esquizofrenia é a família, sendo comum que muitos doentes vivam com pelo menos
um familiar(4), o que leva a que as sobrecargas geradas pelo adoecimento se
concentrem nos familiares, especialmente no que se refere ao comportamento do
paciente.
Um estudo realizado com familiares de pacientes esquizofrênicos(5) identificou
que o cuidador imediato sofre as sobrecargas de doença física e emocional, em
decorrência dos desgastes provocados pelo comportamento dos seus doentes e de
terem que executar o cuidado e vigiá-los diuturnamente, o que torna
extremamente difícil a convivência domiciliar, sendo até mesmo mais prejudicial
do que a sobrecarga financeira, que também está presente na realidade de várias
famílias.
Ao descobrir a esquizofrenia em seu lar, os familiares adentram em uma nova
realidade que desperta uma série de sentimentos. O impacto gerado na família em
razão do adoecimento suscita situações de estresse, cansaço e desesperança,
pois ela muitas vezes não compreende o que está realmente ocorrendo com o seu
familiar(6).
Conviver com um ente portador de esquizofrenia pode ser uma experiência
angustiante, na medida em que emergem sentimentos de incerteza quanto ao
presente e ao futuro de seu familiar, que envolvem as suas próprias
perspectivas de vida. Nesses momentos, muitos questionamentos são suscitados no
seio familiar: "Algum dia ele voltará a ser como antes? Existe chance de cura?
Como ele se comportará diante de uma nova situação? E se ele piorar?"
Acreditamos que as expectativas dos familiares em relação ao futuro desse ente
possam refletir a sua experiência em relação ao cuidado para com esse
indivíduo, bem como sua compreensão sobre a doença, uma vez que as experiências
emocionais positivas dos familiares estão intimamente relacionadas com a sua
expectativa em relação à pessoa doente(6).
Assim, objetivamos com este estudo compreender as expectativas dos familiares
em relação ao futuro de seu ente portador de esquizofrenia, considerando que na
atualidade constitui-se um desafio compreender as famílias em suas
especificidades, principalmente na vivência de uma doença mental, no que tange
ao cuidar destes seres.
O CAMINHO METODOLÓGICO
Para contemplar a proposta do estudo, optamos por uma pesquisa qualitativa numa
abordagem fenomenológica, pois, aplicado ao problema do ser, o método
fenomenológico coloca como ponto de partida a reflexão do ser que se dá a
conhecer imediatamente, ou seja, o próprio homem, colocando-o dentro de uma
dimensão ontológica.
Assim, a investigação fenomenológica não vai partir de um problema, mas de uma
interrogação. Quando o pesquisador interroga, ele terá uma trajetória e estará
caminhando em direção ao fenômeno, naquilo que se manifesta por si, por meio do
sujeito que experiencia a situação. Destarte, para saber algo que nos leve à
compreensão das expectativas dos familiares devemos interrogá-los em sua
mundaneidade do mundo, ou seja, em seu próprio mundo humano (7).
Neste caminhar, voltamo-nos à família, para tentar desvelar suas concepções em
relação ao porvir do seu ente portador de esquizofrenia. A aproximação com os
familiares ocorreu por meio do projeto de pesquisa intitulado "Saúde mental na
atenção básica: perspectivas e intervenção", do Departamento de Enfermagem da
Universidade Estadual de Maringá (UEM), desenvolvido na área de abrangência da
unidade básica de saúde Mandacaru, do município de Maringá-PR. Neste perímetro
identificamos seis famílias que tinham um membro portador de esquizofrenia, as
quais fizeram parte deste estudo.
O primeiro contato com as famílias se deu via telefone, sendo solicitado
consentimento para visitarmos seu domicílio. Com permissão dos cuidadores,
iniciamos a entrevista, a qual foi realizada no domicílio de cada família em
maio e junho de 2008, sendo respondentes uma cunhada, quatro irmãs e duas mães.
Para as entrevistas, utilizamos gravador e a observação. Os familiares foram
inquiridos com a seguinte questão norteadora: "Fale-nos de suas expectativas em
relação ao futuro de seu familiar esquizofrênico".
Para captar a plenitude expressa pelos sujeitos em suas linguagens, optamos
pela análise individual de cada discurso. Assim, a priori, realizamos leituras
atentas de cada depoimento, separando os trechos ou unidades de sentidos (US)
que, para nós, se mostraram como estruturas fundamentais da existência. A
posteriori, passamos a analisar as unidades de sentidos de cada depoimento,
realizando seleção fenomenológica da linguagem de cada sujeito, pois uma
unidade de sentidos, em geral, compreende sentimentos que são revelados pelos
depoentes e contemplam a interrogação ontológica(8).
Por se tratar de uma pesquisa que envolve seres humanos, observamos os aspectos
éticos disciplinados pela Resolução nº 196/1996 do CNS-MS. A proposta de
intenção para realização do estudo foi apreciada e aprovada pelo Comitê
Permanente de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual de
Maringá, Parecer nº 110/2007(9). A solicitação de participação no estudo se fez
acompanhar de duas vias do "Termo de Consentimento Livre e Esclarecido". Nesta
solicitação, notificamos as famílias sobre as finalidades da pesquisa, o tipo
de participação desejado e o tempo provável de duração da entrevista.
Asseguramos também aos partícipes a desvinculação entre a pesquisa e o
atendimento prestado pelos serviços de saúde, o livre consentimento e a
liberdade de desistir do estudo se em qualquer momento o viessem a desejá-lo, e
ainda sigilo quanto às informações prestadas e anonimato sempre que os
resultados viessem a ser divulgados, e neste estudo, para manter o anonimato
dos depoentes, referenciamo-los com nomes de flores.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Pela análise dos discursos dos depoentes constatamos que os seus sentimentos se
entrelaçam em constituições ontológicas temporais. Assim, vislumbramos uma
temática central, A temporalidade de estar-com um ente esquizofrênico, da qual
se destacaram três subtemas - Preocupando-se com o abandono, Experienciando a
desesperança e a incerteza, e Vivenciando a esperança de cura - os quais foram
interpretados à luz de algumas ideias da analítica heideggeriana, articuladas
com o pensar de pesquisadoras da enfermagem que vivenciam a temática em seus
cotidianos.
A temporalidade de estar-com um ente esquizofrênico
Em o Ser-aí e temporalidade encontramos a interpretação do homem autenticamente
existente, isto é, o ser-no-mundo em sua temporalidade.
Na decisão antecipativa, ou seja, na forma originária e autêntica do cuidar, o
homem desvela todo o seu poder-ser, sendo que esse poder-ser manifesta-se em
uma constituição temporal. É uma temporalidade primitiva que se temporaliza
conforme três ek-stases ou etapas; o porvir (futuro), o vigor de ter sido
(passado) e a atualidade (presente). "A temporalidade desentranha-se como o
sentido da cura propriamente dito"(7).
Nesta perspectiva, o futuro não representa um conjunto de eventualidades que
ainda não ocorreram, mas sim, o movimento pelo qual o Ser-aí, ao preceder-se a
si mesmo, toma consciência de estar à mercê do tempo, pois tudo ao seu redor
aloja-se no futuro. Apreende-se, assim, tratar-se de um ente abandonado-no-
mundo e vivenciando as facticidades de sua existência. O movimento pelo qual
ele faz o retorno ao seu estar-lançado constitui o passado(7).
A última ek-stase da temporalidade é o presente. Não representa o momento atual
da temporalidade coloquial, mas como um existenciário, indica o movimento pelo
qual o Ser-aí, projetando-se para o seu poder-ser mais próprio e assumindo seu
existir-no-mundo, descobre um mundo que é seu, isto é, sua própria situação. A
presentificação do presente autêntico pelo homem denomina-se is-stante
(Augenblick), o momento em que ele se torna livre para vivenciar seu mundo e
descobrir suas possibilidades de enfrentar a situação(7).
Preocupando-se com o abandono
Na elucidação heideggeriana o temor caracteriza-se como uma disposição
imprópria, pois encontra seu ensejo nos entes que vêm ao seu encontro
descortinando um "malum futurum". O significado existencial e temporal do temor
constitui-se de um esquecimento de si mesmo. O temor proporciona o afastamento
do Ser-aí do seu poder-ser mais próprio e, nesse esquecimento, ele não se
reconhece mais em seu mundo circundante e não visualiza as várias
possibilidades ao seu redor, pois no temor o homem perturba-se diante do mundo,
tornando-se aflito e conturbado(7).
Um estudo com mães de pacientes psiquiátricos aponta o descompasso temporal
como categoria principal da pesquisa, por retratar o desânimo e a desesperança
ante as possibilidades de reabilitação dessa doença, uma vez que as "coisas
mundanas" parecem paralisar-se no tempo quando se trata de uma perspectiva de
futuro para o doente mental, e nesse ínterim o ambiente familiar fica mais
suscetível e vulnerável e capaz de gerar constantes conflitos(4).
Nesse sentido, na fala de Camélia, distinguimos que ela desvela ter consciência
das condições existenciais de seu familiar causadas pela doença e exprime seu
temor ante a possibilidade que no porvir ele ser abandonado pelos seus entes
próximos.
Ela tem os três filhos homens, né? Poxa! Deus o livre um dia ela
ficá... Ela tem os três filhos homens e vai ter três noras também que
eu não sei se vão querer cuidar dela. Por que hoje em dia é tão
difícil você achar uma nora que vai querer cuidar da sogra? Nossa,
vai ser muito difícil. Eu falo muito com eles, eu converso com eles.
(Camélia)
O ser humano, como Ser-lançado-no-mundo, vive uma situação ambígua, isto é,
sente-se abandonado e ao mesmo tempo tem o poder de escolher seu próprio
destino, isto é, viver de uma forma autêntica ou inautêntica perante as
vicissitudes da vida. Na existência inautêntica, o Ser-no-mundo vive uma
abertura que não lhe pertence como algo de que possa dispor, e nessas condições
ele fecha-se em si mesmo, alienando-se totalmente de sua principal missão, que
seria tornar-se ele mesmo, escondendo-se em sua dimensão mais profunda e não
vislumbrando as possibilidades de superar sua própria angústia(7).
Eu não tenho a natureza dela... Se eu fosse viúva eu casava de
imediato. Ela pensa que está velha, feia que não pode arrumar
ninguém. Ela não pensa nisso. Se ela colocar isso na cabeça ela vai
ficar sozinha o resto da vida. Sozinha, por que os filhos cada um é
cada um. Eu falo muito para ela se soltar, esquecer o que já foi. A
vida dela não parou por causa do problema dela. Ela tem que arrumar
uma pessoa que ame ela, que zele por ela, para começar a vida dela,
não parar. (Azaléia)
Nesse pensar, notamos na linguagem de Azaleia a preocupação com a probabilidade
de uma vida solitária para seu ente querido, e ao expressar "eu falo muito para
ela se soltar, esquecer o que já foi", transmite a necessidade de ela não se
prender ao seu vigor de ter sido (passado), isto é, não permanecer enredada ao
tempo em que podia sonhar, ser feliz, viver livremente, e, principalmente,
transcender esse ik-stante (presente) e buscar razões para encontrar sentido
para sua existência mesmo sendo portador de esquizofrenia, manifestando assim
seu poder de transcendência sobre si mesmo e sobre o mundo. Acerca desta
questão destacamos que, "quando o ser-ai descobre o mundo em seu próprio modo e
o aproxima, quando desvela para si mesmo seu próprio autêntico ser, essa
descoberta do 'mundo' e esse desvelamento do 'ser ai' são consumados como um
libertar-se das ocultações e das eclipses, como um rompimento dos disfarces com
os quais o 'ser ai' mesmo obstrui seu próprio modo, chegando assim a ser
propriamente ele mesmo, ou seja, si mesmo"(10).
Na analítica heideggeriana, o ser humano é um ser-no-mundo que existe sempre em
relação com algo ou alguém, e neste estado compreende as suas experiências e
estabelece significado próprio aos objetos e seres em seu mundo e dá sentido à
sua existência. Neste prisma, os utensílios ou objetos não são uma realidade
simplesmente subsistente, mas está fundamentalmente disponível para um uso
determinado. O utensílio é essencialmente alguma coisa de que o homem dispõe
para viver no mundo(7).
Assim, na unidade de sentidos a seguir o familiar enfatizou seu desassossego
com a estabilidade econômica e social de seu familiar esquizofrênico,
lamentando não poder assegurar-lhe um futuro estável, pois, em seu pensar, uma
renda fixa seria um utensílio importante para o seu porvir, uma vez que ele tem
dificuldade em modificar seus hábitos diários, como também em aceitar a doença.
Se eu pudesse mesmo queria aposentar ela, por que com a aposentadoria
ela se sustentava, né? Se ela se equilibra para se sustentar, por que
do jeito que ela come toda hora, ela não tem hora certa para comer
[...] Se ela tomasse os remédios direitinho ela melhorava. Acredito
que ela melhorava. (Violeta)
Ao se descobrir como ser-no-mundo, o homem sempre se descobre como ser-com (Mit
Sein), sendo o outro (Mit Dasein) também um ser-no-mundo, ou seja, um ser para
os outros, um companheiro. E é nesse ser-com-o-outro que o homem visualiza a
possibilidade de situar-se com alguém, não apenas na forma de objeto de
cuidado, mas de uma forma envolvente e significante(11).
Não obstante, o homem, em seu existir-no-mundo, geralmente não questiona sua
existência. Como ele subsiste num estado de queda, em que a afetividade revela-
se como mera curiosidade, sua compreensão é enleada pelas ambiguidades e seu
discurso é limitado a palavras vazias, ou seja, o ser-no-mundo vive uma
existência inautêntica; mas quando alguma vicissitude vem ao seu encontro e,
entendendo sua condição de ser abandonado no mundo, o homem transcende essa
inautenticidade, existindo de uma forma autêntica. Nesses momentos desvela-se
como um autêntico Ser de cura. Nesta perspectiva pontuamos a seguinte fala;
O tratamento enquanto eu viver e tiver forças, e depois uma casa-lar,
bem paga pela família, onde elas vão ter um tratamento quase igual o
que tinha comigo, não digo totalmente, porque o futuro delas eu não
vou deixar assim, como a minha mãe deixou [...] Para mim o futuro
delas é esse, uma casa-lar, todas as duas, que eu sei que lá elas
pagam, são bem tratadas. Se eu morrer hoje e elas ficarem assim o que
será delas. Então eu já estou arrumando tudo, já paguei os advogados,
para deixar elas em uma casa lar mesmo [...]. Então o futuro quem tem
que fazer é quem está cuidando. (Jasmim)
Na linguagem de Jasmim notamos sua preocupação em não apenas estar-com seu
familiar esquizofrênico nesse is-stante de sua vida, mas também em assegurar-
lhe abrigo seguro para seu porvir. Observamos ainda que esse desejo suscita-lhe
sentimentos que o fortalecem para enfrentar sua fatalidade existencial,
enfatizando no final da unidade de sentidos a importância de o cuidador
informal implementar medidas que garantam um futuro com qualidade de vida para
seu familiar esquizofrênico. O envolvimento afetivo característico dos liames
familiares de alguma forma orienta as tentativas de entendimento e as buscas de
solução para muitas questões pertinentes ao convívio com um familiar doente
(12).
Experienciando a desesperança e incerteza
Na meditação heideggeriana, a decadência constitui um aspecto do cotidiano que
revela a existência inautêntica do ser-no-mundo, pois significa o desvio de
cada indivíduo de seu projeto essencial em favor das preocupações cotidianas,
que o distraem e perturbam, confundindo-o com a massa coletiva e ausentando-se
de estar-com-o-outro. Não obstante, para o pensador, nem todo retirar-se é
necessariamente uma fuga, ao contrário, "o desvio da decadência funda-se na
angústia que, por sua vez, torna possível o medo"(7).
Nesta perspectiva, notamos na interlocução que esse sentimento de medo advém da
desesperança causada pela angústia enredada nesse is-stante de sua vida, a qual
resulta da impossibilidade ou possibilidade de seu familiar esquizofrênico
voltar a ter uma vida normal. "A doença, nessas condições, propicia o estar-com
o vazio, no nada, no silêncio, como forma de preocupação e angústia, que se
constitui como parte integrante da existência"(13).
Para o futuro não penso nada diferente do que é agora, nada
diferente. Não vejo mudança, a não ser a possibilidade de uma
cirurgia ou de outro medicamento ou tratamento que altere tudo isso.
Do contrário, não vejo nada, nada, nada de melhora. (Orquídea)
É comum o encontro com familiares pessimistas quanto à possibilidade de melhora
do familiar doente mental, pois são tantos os fracassos, recaídas, abandonos de
tratamento, que com o passar do tempo essas complicações e conflitos trazem a
desmotivação, resistência e temores em relação a qualquer proposta de mudança
(14). Assim o processo de vivenciar a doença mental no lar tem também a
característica de despertar nos membros familiares a vivência de um processo
compulsório de reorganização de suas dinâmicas(4), sobrando apenas o encontro
de novas estratégias para um melhor convívio diário com o paciente
psiquiátrico, como refere Gérbera:
Com o conhecimento atual não tenho muita esperança (o futuro), vai
continuar o que está acontecendo agora e que sempre aconteceu. Hoje
eu acho que não é ele que está melhor, nós é que aprendemos a
conviver e a aceitar aquela situação e saber lidar com ela, porque se
você não souber lidar sua vida se torna um inferno, desestrutura
muito, muito mesmo. (Gérbera)
Entretanto, na analítica heideggeriana a transcendência está intimamente ligada
à facticidade, isto é, não há transcendência sem facticidade e o ser humano
somente supera a si próprio quando algum acontecimento não planejado nem
esperado vem ao seu encontro, avivando-lhe necessidades de orientações e
conforto. Nesse pensar, acreditamos ser importante que o enfermeiro desperte
para o fato de que talvez o mais importante não seja a doença, mas sim, seus
significados e o que estes podem provocar no seio familiar(15). Para isto se
faz necessário adotar medidas destinadas a encontrar caminhos que levem à
almejada reforma nas ações e nos serviços de saúde mental / psiquiatria(16). Ao
interagir de uma forma autêntica com o doente mental e sua família, o
enfermeiro "favorece a busca e o encontro do sentido da vida e do sofrimento
dos seus pacientes e ao realizar tal tarefa ele próprio encontra o sentido de
sua vida, por autotranscender-se e insistentemente maximizar sua função
terapêutica por ir ao encontro da parte inatingível do ser, o seu espírito"
(17).
Uma vez que a desorganização no seio familiar é vivenciada em decorrência da
doença mental, esta traz consequências sociais diversas e irreparáveis para
algumas famílias, colocando-as em uma posição de não conciliação com os ciclos
naturais de passado, presente e futuro(4). Nesses momentos cabe à família
promover o contato entre o doente e os serviços de saúde existentes e lidar com
as situações de crise, decidindo quando é possível o manejo em casa e quando
buscar ajuda emergencial e, junto com o profissional de saúde envolvido,
fornecer informações que contribuam para uma convivência menos dolorosa(12).
Vivenciando a esperança de cura
Na analítica heideggeriana a angústia é uma possibilidade ontológica que revela
o horizonte ôntico do homem como ente. Não obstante, esse mostrar-se do Ser-aí
advém de sua abertura ao mundo com disposição e compreensão, pois a angústia
surge do próprio homem, à medida que este se percebe um ser-lançado-para-a-
morte. O filósofo observa ainda que a angústia não desentranha um ser aflito e
conturbado com o temor, ao contrário, libera o Ser-aí de suas possibilidades
nulas, tornando-o livre para assumir as possibilidades concretas de seu existir
(7).
Assim, é na angústia que se revela o abandono do homem a si mesmo, ao encontrar
face a face com sua terrível liberdade de ser ou não ser, de permanecer na
inautenticidade ou lutar pela posse de si mesmo, pois, o ser humano é antes de
tudo um ser-no-mundo temporal, e, sem a perspectiva de um futuro melhor, ele
viveria existencialmente aniquilado.
Nesse pensar, notamos no discurso de Jasmim que, apesar dos sofrimentos que
foram impostos ela tem esperança de que surja alguma solução para o problema de
seu ente familiar, uma vez que da esperança - ao contrário da desesperança -
nasce a possibilidade de uma vida melhor no porvir.
Se ela melhora mesmo, que fica bem, que ela pode voltar para casa
dela. Cuidar dos filhos dela, os filhos dela vão ter filhos, ela vai
ter netos. Eu sinto assim que Deus ainda vai abençoar muito que ela
vai voltar para casa dela, que ela ainda vai poder cuidar da casa
dela. Ou às vezes vir morar para cá, não sei. Por que ela ainda esta
nova, né? Ainda tem muita vida pela frente. (Jasmim)
Todavia, no discurso existencial heideggeriano, se por um lado o homem
relaciona o temor a um "malum futurum", por outro ele visualiza na esperança o
desenvolver-se de um "bonum futurum", pois a esperança traz ao Ser-aí a força
necessária para emergir de sua angústia e vislumbrar novas possibilidades.
"Aquele que tem esperança se carrega, por assim dizer, a si mesmo para dentro
da esperança, contrapondo-se ao que é esperado"(7).
O caminho da esperança foi expresso pelos depoentes através da fé, pois nestas
falas observamos que os sujeitos trazem em si a crença de que alguém está
olhando por eles, o que caracteriza a esperança como uma possibilidade própria
de cada um. As manifestações a seguir ilustram esta interpretação.
Estou esperando em Deus, porque vou esperar de quem? A gente é pobre
[...] Eu sinto tristeza, dó por que ele sofre muito com essa coisa,
porque ele queria ajudar o pai dele, ter o trabalho dele. Isso é
normal, porque eu tenho meus netos são novos ainda mais já trabalham,
já dirigem, tem seu carro. Todos têm seu trabalho, todos têm seu
dever, e ele parou. Então, dói lá dentro e eu não tenho o que fazer,
não sei o que fazer mais, mando ele em qualquer médico. (Lírio)
A fé é uma fonte de apoio no enfrentamento de doenças, bem como de força para
suportar os desafios impostos por elas, ou até confortar-se diante da
impossibilidade de cura. A fé dá esperança e conforta a alma. O ser humano que
acredita vai além da compreensão das impossibilidades, buscando a cada dia um
sentido para as suas vicissitudes cotidianas(18).
Nesse prisma, percebemos que Lírio exprime em sua fala sentimentos de tristeza
e impotência ante uma doença, que não tem perspectivas de cura, negando ao
doente a possibilidade de voltar a sonhar, de conquistar com seu esforço uma
vida digna; mas apesar de todas as vicissitudes, ela busca na fé alento para
sua agonia.
Às vezes você consegue que ele comece a sentir uma esperança, então,
na realidade, é exatamente isso que controla o meu irmão, é a
esperança de alguma coisa. É isso o que eu sempre falo para o
neurologista dele: 'se ele perder a esperança, acabou o controle que
ele tem, acabou a forma da gente conseguir controlar ele e as crises
dele'. (Gérbera)
No pensar de Gérbera, somente a crença em algo maior pode proporcionar a paz e
tranquilidade que seu ente precisa para dar continuidade a sua existência. A
família que cuida de um doente mental apega-se às crenças religiosas como
consolo para suas angústias e como sustentação de suas forças para prosseguir
cuidando do portador de transtorno mental(19).
Assim, no final da unidade, quando Gérbera expressa; "se ele perder a
esperança, acabou o controle que ele tem, acabou a forma da gente conseguir
controlar ele e as crises dele", vislumbramos sua luta para manter acessa a
chama da esperança no viver de seu irmão, pois sente que a ausência deste
sentimento o fará sucumbir em si mesmo, vivendo em um mundo sem mundo, onde
todas as possibilidades tornam-se perdidas no tempo. Neste relato entendemos
também que "o sofrimento, portanto, evoca significados desde força e fraqueza,
medo e coragem, despertando emoções positivas ou negativas na pessoa em
sofrimento"(20).
Entendemos também que, por ser um Ser temporal e histórico, cada ser humano
vive sua temporalidade e sua historicidade a cada momento. Desta forma, cada
indivíduo vê a doença e o sofrimento e lhe atribui um sentido em conformidade
com a etapa em que se encontre no processo de desenvolvimento vital. Não
obstante, esta percepção depende de sua história de vida, de suas vivências,
aprendizagens e desejos. Em qualquer fase do desenvolvimento humano de uma
pessoa esquizofrênica a idéia da doença está presente e tem uma representação
característica, trazendo um entrelaçamento de todos os aspectos vivenciados em
seu cotidiano.
CONSIDERAÇÕES
Este estudo despertou-nos para a importância do tempo no universo do cuidado,
esse tempo, tantas vezes negligenciado por nós, profissionais da saúde, por não
apreendermos o sentido dessa temporalidade nas vivências dos seres de quem
cuidamos. Cuidamos em um tempo cronológico, no aqui-e-agora, assim não
vislumbramos o tempo como um fio condutor na humanização plena do cuidado.
Não obstante, pelos relatos dos sujeitos que participaram da pesquisa foi
possível apreender o tempo como algo que os torna seres angustiados, pois ao
transcender o presente vivido na condição de cuidador de um familiar com
transtorno mental em casa, eles demonstram trazer em seu âmago preocupações
relativas ao porvir de seu ente. Assim, compreendemos que as lembranças do
passado e o sofrimento do presente suscitam neles a incerteza quanto ao futuro.
Depreendemos que cuidamos na ausência deste tempo, pois atribuímos a este a
razão pela qual não compartilhamos plenamente as vivências com os familiares
que cuidam de pessoas esquizofrênicas; mas no caminhar deste estudo refletimos
sobre o tempo, cuja falta frequentemente é a desculpa do profissional de saúde
para esconder-se de seu próprio poder-ser, ou seja, um Ser de e para o cuidado:
o tempo para conversar, para tocar e principalmente, ouvir suas manifestações
cotidianas decorrentes de sua facticidade.
Sobretudo, este estudo despertou-nos para o fato de que o mesmo tempo que o
outro talvez necessite é o tempo de que o profissional precisa para libertar-se
de suas angústias ante a dominação de um sistema que absorve o Ser enfermeiro
com exigências burocráticas, como relatórios, que o afastam da execução
humanística da assistência.
Destarte, torna-se necessária a utilização de um processo de cuidar em que
essas famílias não sejam apenas seres esquecidos em suas facticidades, mas
sejam acompanhados nesse processo, estabeleçam metas e troquem experiências com
a equipe, para assim viver de forma menos dolorosa com a esquizofrenia em seu
lar.
Devemos ressaltar ainda que, de acordo com as mudanças nas políticas de saúde
mental, que têm como foco manter o doente mental em seu contexto familiar e
social, o profissional da saúde deve voltar-se para a prática exigida por essa
clientela, que envolve o cuidado no seu sentido mais amplo, ou seja, ser
executado de acordo com a necessidade estabelecida por eles, e não com a
determinada pela equipe de saúde. Torna-se notória a necessidade de o
profissional utilizar o tempo como uma ferramenta de escuta para melhorar a
qualidade da assistência, já que depreendemos neste estudo que a temporalidade
de cuidar de um ser esquizofrênico aviva sentimentos de angústia, provenientes
de não ter com quem nem como compartilhar os anseios que lhe causa a doença
mental, limitando assim sua qualidade de vida.