A vivência clínica na formação do enfermeiro
INTRODUÇÃO
Há algum tempo vários estudos têm sido realizados no âmbito da Enfermagem no
sentido de identificar ou analisar, sob várias óticas, a produção do
conhecimento, desde aspectos mais gerais, pertinentes a essa produção, a temas
específicos(1-2-3). Tais estudos têm gerado um corpo de conhecimentos que nos
possibilitam a apreensão do que é produzido e divulgado sob distintos
referenciais e perspectivas(4).
De um enfoque inicialmente quantitativo, novos textos foram sendo divulgados
envolvendo estudos de natureza qualitativa, considerando o avanço que essa
modalidade de investigação vem conquistando em áreas que lidam, cotidianamente,
com o humano e as singularidades a ele inerentes(4).
De forma particular, a produção do conhecimento gerado a partir de dissertações
e teses em nível de Pós-Graduação tem sido objeto de análise. Assim, no
contexto temático dessas investigações, é frequente a busca dos autores por
identificar, na produção gerada pelos cursos de Pós-Graduação, artigos
referentes a investigações que eles próprios realizam, o que lhes possibilita
visualizar a produção já construída bem como possíveis lacunas que sinalizem
para a necessidade de incentivar novos estudos sobre um determinado tema.
Nesse sentido, as informações divulgadas pelos Catálogos do Centro de Estudos e
Pesquisas em Enfermagem (CEPEn) (5), da Associação Brasileira de Enfermagem
(ABEn), têm sido muito utilizadas pelos profissionais de Enfermagem e, de forma
particular, pelos pós-graduandos dessa área, para realização de suas teses e
dissertações.
Cabe mencionar que a iniciativa do CEPEn no sentido de elaborar esses catálogos
iniciou-se em 1979, quando foi publicado seu primeiro volume. Ressalte-se que,
nessa época, o CEPEn tinha como Diretora a Prof. Anayde Corrêa de Carvalho(6).
A esse volume, muitos outros se seguiram e o Centro consolidou-se como
referência para a produção científica dos enfermeiros no que se refere ao
conhecimento gerado pelos cursos de Pós-Graduação. Atualmente, o CEPEn possui o
maior banco de teses e dissertações na área, com cerca de quatro mil estudos
registrados em seu acervo.
Como docentes na área da Saúde, particularmente de Enfermagem, temos dirigido
nossa preocupação para a importância da vivência clínica enquanto estratégia
pedagógica essencial para capacitar o discente ao exercício profissional.
Acreditamos que esse vivenciar durante os estágios curriculares seja relevante
para a construção do conhecimento dos educandos. Assim, consideramos pertinente
a realização de um estudo que evidenciasse a produção de conhecimento sobre
esse tema de forma a subsidiar o desenvolvimento de novas pesquisas sobre a
vivência clínica na formação dos enfermeiros, além de identificar possíveis
facetas relacionadas ao processo ensino-aprendizagem nessa área.
Ao pensarmos em tal vivência clínica, emerge uma questão importante, se
consideramos que o processo de trabalho em enfermagem inclui atividades de
natureza propedêutica e terapêutica específicas, durante as quais o enfermeiro,
em sua trajetória profissional, é estimulado a exercitar e vivenciar nas
situações de estágio, aprimorando seu julgamento clínico e buscando tomar
decisões eficientes, eficazes e humanizadas.
Estudos ressaltam a importância dos estágios na formação pessoal e profissional
dos enfermeiros com vista ao desenvolvimento de posturas, habilidades,
competências, interação com equipes multidisciplinares, familiares e pacientes,
voltadas para abertura de possibilidades de analisar, crítica e reflexivamente,
as interfaces do conhecimento teórico e prático(6 7).
O julgamento clínico consiste em um processo mental, norteado pelos princípios
da ciência e determinado pelo conhecimento, experiência, percepção e intuição
do enfermeiro que procura fazer julgamentos com base em evidências, os quais o
levam ao diagnóstico de enfermagem, aproximando-se do conceito de competência
clínica(8).
Competência clínica pode ser entendida como a capacidade de realizar,
aceitavelmente, aqueles deveres diretamente relacionados ao cuidado para com o
paciente; é a capacidade de agir eficazmente em uma determinada situação, com
base em conhecimentos, mas sem a eles se ater, de forma a mobilizar o todo ou
parte de seus recursos cognitivos e afetivos para interagir em situações
complexas. Nesse sentido, os recursos devem ser mobilizados e aplicados por
meio da ação profissional, em circunstâncias reais do mundo do trabalho e
durante a atuação profissional(9).
O ato de cuidar precisa ser aprendido pelo contato direto do enfermeiro com o
paciente e sua família; assim, diferentes cenários de aprendizagem possibilitam
o exercício do julgamento clínico na sua formação por interligar ensino e
serviço, de forma a estabelecer relações nos diversos contextos da prática
assistencial(10).
Dos estudos mencionados, percebemos a importância da vivência clínica na
formação do enfermeiro, o que justifica uma análise da construção do corpo de
conhecimento sobre esse tema e, nesse sentido, julgamos ser pertinente a
realização do presente estudo com a proposta de verificar uma parcela desse
conhecimento, gerado pela Pós-Graduação, utilizando catálogos do CEPEn.
Assim, objetivou-se, com este estudo, identificar a produção científica gerada
a partir de dissertações e teses na área da Enfermagem, abordando a vivência
clínica para a formação do enfermeiro nos cenários de cursos de graduação e
pós-graduação, modalidade residência, em um período determinado; e caracterizar
essa produção quanto aos seus autores, metodologia adotada, ano de publicação,
estado e região de sua procedência.
METODOLOGIA
Trata-se de pesquisa bibliográfica, descritiva e quantitativa, tendo como fonte
de dados todos os volumes do Catálogo de Dissertações e Teses do CEPEn, ABEn,
produzidos no período de 2001 a 2006.
Para a busca bibliográfica, foram adotados os seguintes descritores: internato
ou residência, educação em enfermagem, competência clínica. Os resumos dos
estudos publicados nos Catálogos foram lidos e, posteriormente, classificados,
agrupados e sistematizados, segundo os aspectos: temática abordada, origem da
publicação, metodologia adotada, ano, Estado em que houve a defesa dos estudos.
Os resultados e sua apresentação são evidenciados em tabelas e figuras e sua
análise baseia-se em números percentuais e absolutos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir da consulta aos Catálogos mencionados, foram encontrados um total de
132 resumos relacionados ao tema vivência clínica. Destes, 124 (94%) estudos
utilizaram o descritor educação em enfermagem; 05 (4%), competência clínica e
03 (2%), a residência ou internato e sua articulação com o ensino em
enfermagem. A Figura_1 retrata essa distribuição, com mínima produção de
estudos envolvendo o tema competência clínica e residência.
![](/img/revistas/reben/v64n3/a21fig01.jpg)
Esses dados expressam o que se pode observar da literatura. O tema educação em
enfermagem permite o envolvimento de uma grande amplitude de sub-temas,
relacionados às preocupações dos primeiros congressos de enfermagem,
enfatizando a necessidade de estudos referentes à educação ou direcionados a
diferentes estratégias pedagógicas.
O que se observa, efetivamente, é que a preocupação com a educação vem
permeando a produção científica dos enfermeiros desde seus primerios passos em
direção aos rumos da investigação. Por outro lado, o conceito de competência
clínica é mais recente, carecendo ainda de maior número de estudos um vez que
vem se consolidando no cenário de uma enfermagem mais articulada às políticas
de saúde, ao contexto de saúde em geral e ao mercado de trabalho. Todos esses
fatores requerem que essa tema seja mais contemplado nas investigações.
No que se refere a residência, é uma modalidade que tem crescido face a
inúmeras circunstâncias, em virtude da sua recente proposição como modalidade
de ensino, interagindo comunidade, pesquisa e ensino. Vem contribuindo para a
qualificação dos profissionais do SUS, especialmente em relação à Atenção
Primária à Saúde, o que inclui a necessidade do desenvolvimento das
competências.
Estudos realizados no ano 2000 já alertavam para um movimento dos órgãos
dirigentes da Enfermagem, no Brasil, no sentido de instituir, efetivamente,
essa modalidade de pós-graduação(11). Assim, acreditamos que, por estar em
processo de expansão nos últimos dois anos, tal modalidade ainda não está sendo
suficientemente contemplada pelos enfermerios na realização de suas
investigações.
Quanto à origem das produções, houve pequeno predomínio de dissertações de
mestrado em Enfermagem (68 - 52%), comparado a teses de doutorado (64 - 48%).
Esse resultado não pareceu inesperado, considerando que, em geral, os pós-
graduandos são estimulados, a partir do mestrado, a prosseguirem seus estudos
em direção ao doutorado e, assim, essa similaridade condiz com o que vem
ocorrendo. Acresce-se que as universidades públicas passaram a exigir o título
de doutor para admissão de docentes. Ainda podemos considerar que o pós-
graduando tende a prosseguir investigando, no doutorado, o tema relacionado ao
mestrado o que, de certa forma, reafirma a análise quanto à distribuição da
produção do conhecimento.
A maior concentração desses estudos ocorreu em três estados brasileiros, a
saber: São Paulo (SP), com 76 trabalhos (58%), Rio de Janeiro (RJ), com 18
(14%) e Santa Catarina (SC), com 15 (11%); a esses se seguiram estados com
menor evidência em relação à produção sobre o tema, como Minas Gerais (MG), com
05 trabalhos (4%), Ceará (CE) 04 (3%), Paraíba (PB) 04 (3%), Goiás (GO), 03
(2%). Os estados do Paraná (RN) (1%), Bahia (BA) (1%) e Rio Grande do Norte
(RGN) apresentaram 02 (2%) trabalhos, respectivamente, e o estado do Rio Grande
do Sul (RGS), 01 (1%) trabalho. É possível observar que a grande maioria da
produção científica provém da Região Sudeste, sendo a menor produção referente
ao Nordeste, com ausência na Região Norte.
Esses dados vão ao encontro dos apresentados pela CAPES e Ministério da
Educação, divulgados no 10º SENADEn (Seminário Nacional de Diretrizes para a
Educação em Enfermagem), em 2006. A maior concentração de programas de pós-
graduação (mestrado e doutorado) está na Região Sudeste e Sul, principalmente
no estado de São Paulo(12). Cabe mencionar que esforços têm sido realizados
pelos órgãos federais e estaduais para alterar esse cenário acadêmico. Para
tanto, estratégias têm sido criadas por tais órgãos, tais como, a política de
Editais, Projetos Temáticos, incentivo ao intercâmbio internacional, de forma a
melhor distribuir os recursos de fomento à pesquisa.
Outra variável analisada neste estudo foi o ano de publicação dos trabalhos
cujos resultados são apresentados na Tabela_1, evidenciando um crescente avanço
nas produções, sendo que a maior frequência ocorreu no ano de 2003. Durante o
ano de 2001, houve o menor número de trabalhos, totalizando 15 produções. Vale
ressaltar que em 2005 observa-se a ocorrência de 24 produções científicas. A
tabela_1 evidencia esses resultados:
No que se refere à abordagem metodológica adotada para realização dos 132
estudos, observa-se que 109, ou seja, (83 %) referem-se a pesquisas realizadas
segundo abordagem qualitativa, sendo que apenas 23, ou seja, (17 %) adotaram
abordagens quantitativas.
O número de investigações que adotam a modalidade qualitativa vem crescendo
desde a década de 1980, quando surgiram pesquisas norteadas por fundamentações
teóricas distintas do positivismo e, assim, alguns pesquisadores enfermeiros
produziram as primeiras teses de doutorado e dissertações de mestrado adotando
outras modalidades de investigação, tais como o materialismo histórico e
dialético e a fenomenologia(4).
As pesquisas qualitativas possibilitaram evidenciar que os campos da saúde e da
educação encontram-se, cotidianamente, envolvidos com o humano e, nesse
sentido, a perspectiva pela qual concebemos o homem imprime um sentido, uma
direção para o nosso pensar e fazer, o que se reflete nas políticas formuladas,
nas organizações do trabalho e na construção de relações sociais e
interpessoais. Ao se proporem a trabalhar com o homem em suas relações sociais,
esses campos envolvem questões complexas, nem sempre contempladas pela lógica
tradicional do pensamento, requerendo o resgate da subjetividade. É desse homem
complexo e singular que cuidamos. No campo da saúde, acompanhado o processo
saúde-doença como manifestação histórica, construção social e objetiva; no
campo da educação, possibilitando novos horizontes em seu vir a ser,
contemplando sua inserção no mundo como sujeito crítico, sensível, em
permanente construção.
Vale relembrar que a preocupação com a educação em enfermagem no Brasil data
desde a criação da ABEn, por meio das discussões realizadas nos congressos,
encontros, oficinas, comissões e das publicações de artigos pela Revista
Brasileira de Enfermagem. Essa preocupação, associada às transformações no
campo ideológico, político e econômico do país, contribuiu para que essa
entidade consolidasse esse compromisso com a educação em enfermagem, seja na
graduação, pós-graduação e ensino médio(12).
Tal compromisso tornou-se ainda mais expressivo com a concretização do
Seminário Nacional de Diretrizes para a Educação em Enfermagem (SENADEn), em
1994, o qual constitui-se no fórum de representação da Enfermagem brasileira
para discussões de assuntos direcionados ao ensino, à saúde, à educação e à
formação de profissionais de enfermagem. Assim, acreditamos que os dados
apresentados na Tabela_1, os quais nos mostram um crescimento na produção
científica dos enfermeiros, a partir de 2001, no que se refere à educação em
enfermagem e à competência clínica, podem ser atribuídos a essa importante
contribuição da ABEn na participação de movimentos que contemplem o currículo e
educação em enfermagem(13).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A vivência clínica é considerada essencial para a formação do enfermeiro, pois
possibilita o desenvolvimento da competência /julgamento clínico, com base em
princípio ampliado de competência como a capacidade de mobilização dos
atributos necessários para atuar em face de uma determinada situação,
articulando-se de forma pertinente, eficiente e humanizada. Dessa maneira,
competência implica em transcender a simples aplicação de recursos; requer a
mobilização de atributos diante de uma determinada concepção filosófica e uma
dada situação prática profissional, considerando-se o grau de autonomia e o
domínio do estudante no momento de sua formação. Nesse sentido, o estudo alerta
para que a postura do professor se revista de importância ímpar, possibilitando
que o processo ensino-aprendizagem ocorra de forma adequada, favorecendo a boa
interação. Lembramos que vivenciar situações de estágio requer que o professor
esteja atento para que tais situações se constituam em fonte primordial de
aquisição de conhecimentos, competências e posturas éticas.
Cabe salientar que a experiência do educando, relacionada aos primeiros
contatos com a profissão, imprime valores e atitudes ao ensino prático; nosso
século está a exigir que a complexidade do homem seja contemplada, em todas as
suas dimensões, havendo, assim, a necessidade de viabilização de recursos para
a formação de professores competentes que saibam lidar com os grandes desafios
do século XXI. Às escolas formadoras, cabe o compromisso de formar esses
profissionais com vistas à capacitação para demandas locais e regionais,
compromissadas socialmente.
Dos dados obtidos no presente estudo, observamos uma lacuna na produção
científica sobre esta temática, considerando a relação existente entre vivência
clínica e a formação do enfermeiro, o que evidencia a necessidade de realização
de maior número de estudos abordando essa temática de forma a fortalecer nosso
cotidiano enquanto educadores,seja no cenário da graduação e/ou pós-graduação,
exercendo, de maneira significativa, o ato de educar.