Processo de trabalho de auxiliares e técnicos de enfermagem na atenção básica à
saúde
INTRODUÇÃO
O Movimento da Reforma Sanitária Brasileira resultou na aprovação na
Constituição Federal da saúde como direito de todos e dever do Estado. Com
isso, instituiu-se, em 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) regido pelos
princípios da universalidade, integralidade e equidade da atenção,
descentralização da gestão dos serviços, regionalização e hierarquização das
unidades prestadoras de atendimento e participação da população no controle
social(1,2).
Para assegurar os direitos constitucionais em meio à complexidade conjuntural,
avançar na consolidação do SUS e materializar suas diretrizes, mudanças foram
necessárias, sendo que estas foram decisivas para a implantação de práticas da
Atenção Básica à Saúde (ABS), nas políticas de saúde do Estado brasileiro. Com
isso, ocorreu a incorporação de diversas categorias profissionais, bem como a
ampliação de outras, na rede de assistência à saúde, incluindo os trabalhadores
de enfermagem de nível médio.
Desde então, diversas estratégias vêm sendo adotadas, e muitos progressos já
foram alcançados nas instâncias políticas, assistenciais e educacionais para a
construção de uma prática de atenção à saúde voltada para a integralidade. No
entanto, ainda existem muitos desafios a serem enfrentados, inclusive no que se
refere à formação e ao processo de trabalho dos profissionais auxiliares de
enfermagem (AEs) e técnicos de enfermagem (TEs) na ABS.
Os AEs e TEs constituem um contingente significativo de trabalhadores nos
serviços de saúde, e, na enfermagem, os AEs representam a maior força de
trabalho(3). No entanto, pouco se investiga como a prática desses trabalhadores
tem se processado frente às perspectivas de mudanças no modelo de produção em
saúde.
Essa situação provocou o desenvolvimento deste estudo, pois a prática desses
trabalhadores pode se constituir em uma estratégia para facilitar as
transformações indispensáveis para obtermos um sistema de saúde voltado para as
necessidades da população(4).
Neste estudo consideramos a enfermagem não apenas como uma profissão com
competência técnico-científica, mas como uma prática social, como trabalho,
pois ela estabelece relações com as dimensões econômicas, culturais e sociais
de uma sociedade e com outros trabalhos, participando da conformação das
práticas de saúde e sendo conformada de acordo com o contexto em que se insere,
sofrendo transformações no decorrer da história(5,6).
Como quadro teórico deste estudo, recorremos à fundamentação do processo de
trabalho, com ênfase no processo de trabalho em saúde(5-7), a fim de buscarmos
compreender o processo de produção das ações em saúde.
Trabalho humano são atividades que transformam algo que havia antes em algo que
corresponde à satisfação de uma necessidade, sendo esta transformação
intencional, ou seja, o homem concebe e planeja o que vai produzir(7).
Ao conceber e planejar as ações em saúde, os trabalhadores partem do que
identificam como necessidade de saúde que deverá ser satisfeita, e a produção
dessas ações engloba os elementos constitutivos do processo de trabalho:
objeto, instrumentos, produto e finalidade que, por sua vez, encontram-se
articulados e estão sustentados em uma concepção de homem e do processo saúde-
doença.
O objeto de trabalho é a matéria-prima do trabalho, algo reconhecido como
passível de transformações para se obter o produto. Ao reconhecer neste algo
potencialidades para atender a uma dada necessidade, os trabalhadores operam
com instrumentos, recursos para a transformação e obtenção do produto, e ao
operar tais instrumentos transformam também a compreensão sobre seu trabalho,
assim como as subjetividades produzidas, e seus desejos conformam os modos de
agir desses trabalhadores.
O reconhecimento das necessidades de saúde e sua íntima relação com a
finalidade do trabalho e com os demais elementos constitutivos do processo de
trabalho quando operam são atravessados pela concepção de homem e de processo
saúde-doença e, também, são conformados por processos históricos e sociais que
determinam a organização das práticas de saúde.
Nessa perspectiva, apreender o desenvolvimento do processo de trabalho dos AEs
e TEs na ABS permitiu-nos perceber como o princípio da integralidade tem
entremeado as práticas desses trabalhadores.
Neste estudo, optamos por abordar o princípio da integralidade da atenção por
considerarmos que todos os princípios do SUS têm interface e apresentam
interdependência e complementaridade, de tal modo que o comprometimento de
qualquer um dos demais princípios interfere diretamente no da integralidade(2).
A opção também se respalda por ser este princípio o que menos avançou na
implementação do SUS, sendo um desafio a ser enfrentado.
Tomaremos a integralidade referindo-nos ao ser humano e ao sistema de saúde,
reconhecendo que cada qual se constitui numa totalidade, não
compartimentalizando as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde,
sendo que as unidades constitutivas do sistema também se configuram em um todo
indivisível, capaz de prestar assistência integral(8).
Foram objetivos deste estudo: caracterizar o processo de trabalho dos AEs e TEs
de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) do município de Ribeirão Preto-SP, na
perspectiva da integralidade da atenção; analisar a concepção dos AEs e TEs
sobre os elementos constitutivos do processo de trabalho na ABS; e identificar
e analisar os aspectos dificultadores e facilitadores para desenvolver o
processo de trabalho, na perspectiva da integralidade.
PERCURSO METODOLÓGICO
Estudo de natureza descritiva e abordagem qualitativa, realizado em uma UBS do
município de Ribeirão Preto-SP, para o qual foram convidados a participar todos
os trabalhadores de nível médio de enfermagem que atuavam nesta UBS, 11 AEs e 3
TEs. Compuseram a amostra 12 trabalhadores que concordaram em participar do
estudo, sendo 9 AEs e 3 TEs.
Para a coleta de dados, optamos pela observação participante e a entrevista
semiestruturada sendo utilizados, nas duas técnicas, roteiros com a finalidade
de nortear e qualificar os dados obtidos.
As observações participantes foram realizadas durante as jornadas de trabalho
dos AEs e TEs na UBS, sendo que a pesquisadora permaneceu aproximadamente 2
horas e 30 minutos em cada setor ou atividade de trabalho, nos diferentes
períodos de funcionamento da UBS (manhã, tarde e vespertino), totalizando
aproximadamente 38 horas de observações que ocorreram no período de 17 de
agosto a 2 de setembro de 2009.
Os setores e atividades observados em que os AEs e TEs atuam neste serviço de
saúde foram as salas de vacina, curativo, medicação, pré-consulta e pós-
consulta, visita domiciliar e a coleta de materiais para exames laboratoriais.
Os trabalhadores também atuam no atendimento de ginecologia e obstetrícia, no
entanto, a observação desta atividade não foi permitida devido à preocupação do
médico com a privacidade das usuárias.
As entrevistas semiestruturadas foram gravadas e, posteriormente, transcritas,
tiveram duração média de 1 hora e foram realizadas no período de 7 de janeiro a
23 de fevereiro de 2010. Para a análise dos dados obtidos, utilizou-se a
análise temática(9).
As questões éticas desta pesquisa estão baseadas na Resolução 196/1996, sendo
que este estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo em 6 de maio de 2008,
sob o Protocolo nº 0880/2008. Aos profissionais que concordaram em participar
do estudo foi oferecido o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS
A análise temática permitiu identificar duas distintas composições no processo
de trabalho dos AEs e TEs. De modo predominante, encontramos a organização do
processo de trabalho para atender pessoas com necessidade de enfrentar doenças/
problemas de saúde. Entretanto, a conformação das unidades temáticas
encontradas revelou potencialidades para o desenvolvimento do processo de
trabalho na direção da integralidade da atenção, como podemos visualizar no
Quadro_1.
É importante sinalizar que optamos por dividir os elementos constitutivos do
processo de trabalho para a análise e discussão dos dados para facilitar a
compreensão, porém, como já discutido anteriormente, esses elementos estão
intimamente articulados e constituem um mesmo processo de trabalho.
Necessidades de saúde
De modo predominante encontramos, nos depoimentos dos AEs e TEs, que as
necessidades de saúde são interpretadas como sendo pessoas com necessidade de
enfrentar doenças, conforme mostra o depoimento a seguir: A necessidade são as
doenças, né? Enfrentá-las, seria isso, né? (...) No caso meu, ali, da vacina, a
prevenção, né? Das doenças (A01).
As necessidades são detectadas a partir daquilo que é explicitado verbalmente
pelos usuários, sem buscar identificar necessidades implícitas, o que não
favorece a integralidade da atenção, na medida em que não abre brechas para que
se revelem necessidades que vão além das queixas relacionadas às doenças, aos
problemas de saúde ou aos sintomas trazidos pelos usuários. Com isso a
organização do trabalho e as ações em saúde ficam pautadas na recuperação de
corpos doentes.
Refletir e discutir sobre produção de saúde, a partir das necessidades de
saúde, não é inerente ao cotidiano e tampouco fundamenta o processo de trabalho
no dia a dia desses trabalhadores, em decorrência do modo fragmentado como este
se organiza. Entretanto, uma prática orientada pelas necessidades de saúde
poderia subsidiar ações que melhor correspondessem às necessidades de saúde da
população pela qual esta UBS é responsável.
Os AEs e TEs também identificaram como necessidade de saúde pessoas que
precisam conversar, relatando que os usuários procuravam o serviço de saúde e
buscavam pela equipe de enfermagem com essa finalidade. No entanto, ainda que
acolhessem esta demanda, os próprios trabalhadores não consideravam essa
conversa como parte do trabalho na saúde. A organização do trabalho não
favorece esse acolhimento dos usuários, inclusive por não dispor de espaço
físico que proporcione privacidade no encontro do trabalhador de saúde com o
usuário.
Atender os usuários que carregam suas histórias de vida, conflitos, angústias e
sofrimentos, problemas e dificuldades faz com que os trabalhadores de nível
médio de enfermagem concebam também como necessidade dessas pessoas que
procuram o serviço de saúde desabafar, chorar, conversar, como mostra o
depoimento a seguir.
...tem umas pessoas que vêm na unidade, que às vezes elas precisam de
uma conversa, duma força, elas chegam, tá passando por alguma
dificuldade em casa, alguma coisa dentro de casa, aí, tudo que elas
tão sentindo, aí, elas ficam desesperadas, aí atrapalha no serviço,
elas faltam do serviço, né? (...) Muitas vezes, ela nem tá precisando
daqui, né? Tá precisando de a gente dar um tempo, conversar (A06).
Ao identificar a conversa como necessidade de saúde, esses trabalhadores
sinalizam potencialidade para uma atenção à saúde na perspectiva da
integralidade, na medida em que abrem espaço para identificar e buscar recursos
e estratégias que atendam às necessidades que não se encontram no âmbito
biológico.
Objeto de trabalho em saúde
O objeto de trabalho em saúde foi predominantemente reconhecido pelos AEs e TEs
como a doença ou o doente.
Seria, a doença, o doente, é mais ou menos isso, né? (...) Aqui na
unidade de saúde, geralmente é o doente (A11).
Tomar como objeto de trabalho o doente, como pode ser observado, com foco em
sua queixa, mais uma vez desenha uma prática conformada em ações que visam a
recuperar o corpo e fragmentam o homem, focalizando seus aspectos biológicos e
a doença. Encontramos, também, o estar doente como condição para procurar o
serviço de saúde. Desse modo, as ações dos AEs e TEs se tornam auxiliares do
trabalho médico, a quem cabe o diagnóstico, a prescrição do tratamento ou
encaminhamentos.
Houve o reconhecimento de recursos técnicos como objeto de trabalho: verificar
a pressão, repassar conhecimento, medicação, paciência, seringa, agulha, entre
outros. Esse reconhecimento pode ser fruto da intensa fragmentação da
assistência que afasta os trabalhadores da possibilidade de enxergar o ser
humano que atendem. A fragmentação da assistência e a redução das ações dos AEs
e TEs a subsidiárias do trabalho médico resultam da divisão técnica e social do
trabalho que desapropria os trabalhadores de nível médio de enfermagem dos
resultados do processo de trabalho.
Os AEs e TEs reconheceram, também, o bem-estar e a assistência como objeto de
trabalho e outros se mostraram incertos sobre o que seria o objeto de trabalho
na ABS. Os embaraços e as incertezas podem propiciar a abertura de discussões e
reflexões acerca do objeto de trabalho em saúde.
Potencialidades para uma prática de atenção à saúde mais ampliada e quiçá na
perspectiva da integralidade podem ser antevistas quando os trabalhadores
identificam as pessoas que procuram atendimento na UBS como objeto de trabalho,
conforme o excerto abaixo, pois há possibilidades de considerarem o homem em
sua complexidade como sujeito social.
Olha, importante é a pessoa que vem aqui procurar a gente, é a mais
importante, porque se não vier não tem como, o que a gente vai, vai
trabalhar, vai ganhar, né? Mas eu acho assim, o cliente é o principal
papel, o papel principal, que vem e procura (A06).
Assim, estamos diante do limite dessa leitura que se restringe às pessoas que
buscam atendimento na UBS, reforçando uma atenção à saúde individual e pontual
em que planejamentos e ações de cunho coletivo são restritos e limitados, sendo
que quase não foram observados neste estudo. Um ponto a ser considerado é a
grande população da área de abrangência atendida pela UBS, sendo que os
trabalhadores conhecem os usuários que procuram atendimento na UBS e aqueles
para os quais realizam visitas domiciliares. Entretanto, dificilmente podemos
dizer que os trabalhadores conhecem a população pela qual são responsáveis.
Recursos/instrumentos de trabalho em saúde
Os recursos/instrumentos do processo de trabalho em saúde serão abordados de
acordo com a (re)conceituação de Merhy(10) que classifica as tecnologias em
saúde como duras, leve-duras e leves. As tecnologias duras englobam
instrumentais complexos, equipamentos para tratamentos, exames e a organização
de informações, as tecnologias leve-duras abrangem os saberes profissionais
estruturados como a clínica, a epidemiologia e os saberes de outros
profissionais que compõem a equipe de saúde, enquanto as tecnologias leves são
produzidas no trabalho vivo, em ato, em um processo de relações que resultam do
encontro entre trabalhadores e usuários dos serviços de saúde.
Dentro das tecnologias duras, os trabalhadores relataram ser necessário ter
materiais para realizar curativos, atendimentos ginecológicos e obstétricos,
medicação, aferir a pressão arterial e temperatura, glicosimetria, demais
exames realizados pelos usuários e equipamentos de proteção individual.
Os AEs e TEs mencionaram, ainda, a necessidade de ter disponível
eletrocardiograma e balança eletrônica, o que mostra preocupação e desejo de
melhorar a qualidade da assistência prestada na UBS para se alcançar maior
resolubilidade e evitar encaminhamentos. No entanto, não foram observadas
discussões em equipe acerca dos recursos/instrumentos necessários ou reflexões
a respeito de conceitos, normas, políticas e diretrizes da ABS.
Um fator apontado pelos AEs e TEs como gerador de sofrimentos, medos e
conflitos é o acolhimento dos usuários que procuram a UBS sem agendamento
prévio e apresentam queixas ou problemas, pois esses usuários acabam
conformando uma demanda que não será atendida. As decisões relacionadas aos
encaminhamentos, como dispensar o usuário sem atendimento médico, orientá-los a
retornar em outro horário ou dia à UBS ou procurar outro serviço de saúde, são
comunicadas pelos AEs e TEs.
Nesse momento do processo de trabalho há dificuldades para realizar ações na
perspectiva da integralidade, na medida em que esses trabalhadores sentem-se
despreparados para atuar, pois essa situação em que se conforma uma demanda que
não será atendida, não foi abordada em seus cursos de formação. Isso sugere um
distanciamento da formação dos AEs e TEs com a realidade dos serviços de ABS,
na medida em que a formação está predominantemente voltada para o trabalho nos
hospitais que exige e dispõe de um conjunto de tecnologias diferentes da ABS.
Há ainda a recusa do médico em realizar atendimentos além do estipulado, e a
demanda trazida pelos AEs e TEs como prioridade não é acolhida por esse
trabalhador.
Nesta unidade de saúde parece não haver discussões sobre a regulamentação do
exercício da enfermagem no que diz respeito à competência dos AEs e TEs para
atuar no acolhimento dos usuários que procuram o serviço de saúde sem
agendamentos prévios com queixas ou problemas de saúde.
Muitos recursos e estratégias têm sido adotados para fortalecer a ABS como a
Política de Humanização que incentiva e qualifica a prática do acolhimento nos
serviços de saúde(11) e, neste sentido, a elaboração e adoção de fluxogramas, a
classificação de riscos e vulnerabilidade, assim como a escuta ampliada das
necessidades dos usuários podem ser estratégias muito efetivas, pois habilitam
os trabalhadores a identificar as necessidades dos usuários e a buscar recursos
na própria UBS, em outros níveis de atenção ou ainda em equipamentos sociais de
outros setores ou na própria comunidade para a resolução desses problemas.
Observamos, ainda, o envolvimento dos trabalhadores da UBS em situações
apresentadas pelos usuários como dificuldades financeiras, por exemplo. No
entanto, os recursos utilizados foram de natureza assistencialista e
caritativa, com a disponibilização de recursos próprios diante de demandas
sociais.
Outra questão geradora de conflitos e inseguranças no processo de trabalho é o
atendimento de urgências e emergências. Quando o usuário apresenta sua queixa
ou problema, esses trabalhadores têm dificuldade em identificar se é uma
situação de urgência ou emergência. Sabemos que a formação é insuficiente e que
é essencial para a ABS que os trabalhadores sejam qualificados, se quisermos
imprimir efetividade em suas ações(12).
Dentro das tecnologias leve-duras, os trabalhadores AEs e TEs reconheceram a
necessidade de ter formação para trabalhar na saúde bem como de conhecimentos
técnico-científicos. Apontaram, ainda, a necessidade de realizar cursos e
atualizações. Consideramos importante sinalizar que, ao falarem da formação e
de cursos, referem-se ao conhecimento relacionado ao corpo, às doenças e aos
procedimentos, como no fragmento seguinte, o que converge com os demais
elementos constitutivos do processo de trabalho demarcado predominantemente
pelo conhecimento biológico.
A gente não, assim, e tem, tem que ter o conhecimento, né? Pelo
menos, assim, das doenças que tem uma, as doenças sexualmente
transmissível, a hipertensão, a diabetes, todas as doenças que você
trabalha, tem que ter o conhecimento, sabe, saber alguma coisa, pra
você poder orientar, né? E ter a técnica, saber como você vai
preparar tal medicação, como cê vai fazer aquilo, aquele curativo,
como, tudo cê tem que ter técnica. Tem que ter formação... (A06).
Também foram mencionados como recursos no trabalho os trabalhadores médicos e
enfermeiras da UBS, o amparo da vigilância sanitária e a equipe do Serviço de
Assistência Domiciliar da Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão Preto. As
duas últimas indicações podem evidenciar que esses trabalhadores estão
ampliando a rede de instrumentos que operam na atenção à saúde, ao citarem
recursos externos à UBS. Esta ação é favorável à atenção à saúde na perspectiva
da integralidade, pois amplia as ofertas para atender às necessidades da
população.
No entanto, é preciso criar espaços para discutir e refletir sobre a inserção
de outros instrumentos, pois a assistência social, os centros comunitários e as
Organizações não Governamentais foram citados pelos AEs e TEs, porém não foram
reconhecidos como tecnologias do processo de trabalho na ABS. Na produção do
cuidado, acionar esses recursos não pode ficar na dependência dos trabalhadores
lembrarem ocasionalmente, é necessário incorporá-los ao processo de trabalho no
cotidiano dos serviços de saúde.
As tecnologias leves foram referidas como recursos do trabalho na ABS. A
conversa foi tomada como um meio utilizado para conhecer melhor o usuário,
reconhecer suas particularidades, individualidades e necessidades.
...às vezes a pessoa chega a gente tem que, às vezes numa conversa
que a gente tem com a pessoa a gente consegue descobrir muita coisa
que a pessoa tá necessitando, tá buscando no posto, pra gente poder
produzir, passá aquilo que a pessoa tá passando mesmo (A04).
Considerar o escutar, ouvir, falar e conversar como recursos da ABS indica
potencialidade para produzir cuidado na perspectiva da integralidade da
atenção, pois para produzir cuidado integral é necessário articular o conjunto
das tecnologias duras, leve-duras e leves, sendo que as tecnologias leves
operam em todos os momentos da assistência.
Para alguns trabalhadores AEs e TEs ouvir, falar, conversar e escutar não são
ferramentas legítimas do processo de trabalho em saúde, sendo estas adjetivadas
como algo popular, fora do arcabouço próprio de um profissional da saúde.
O único recurso que a gente tem é a conversa, né? A papoterapia, e o
médico atrás da gente com medicação. Só isso (A02).
É necessário valorizar o uso dessas tecnologias como recurso do trabalho na
saúde por meio da qualificação da escuta e da oferta de estratégias e recursos
adequados para assistir a população pela qual a UBS é responsável. Com isso,
veremos o aumento da resolubilidade das ações, o incentivo à autonomia dos
trabalhadores e o estímulo à criatividade, o que pode consolidar a atenção na
perspectiva da integralidade, ao permitir que o trabalhador passe a se
apropriar do produto de seu trabalho, tornando-se também responsável por esta
produção.
Consideramos que o uso das tecnologias leves tem se apresentado como uma
estratégia diante do esgotamento dos recursos disponíveis na UBS que focam o
doente e a doença como a consulta médica, os medicamentos, as orientações de
dietas, os encaminhamentos e também diante do sentimento de impotência no ato
de cuidar frente à complexidade das necessidades trazidas pelos usuários.
O produto do trabalho em saúde
Os trabalhadores AEs e TEs apontaram como produto do trabalho na ABS o bem-
estar dos usuários, entendido como evitar adoecimentos, evidenciando uma
concepção de saúde como ausência de doenças.
Eu produzo assim, o bem-estar do paciente, um bom relacionamento, né?
A prestação de serviço, né? De acordo que eu tenho a disponibilidade,
né? Eu acho que é isso, proporciono assim, a saúde e o bem-estar
deles, né? Colocando que a prevenção é, melhor você preveni, né?
Antes, do que remediá, ficar doente, a importância da prevenção, do
cuidado, né? Eu vejo que seria isso... (A01).
Também foram reconhecidos como produtos os procedimentos técnicos, o que
converge com o objeto de trabalho focado na queixa do usuário.
Tirando esta parte de medicação que a gente faz, né? Tirando a parte
de vacina, assim, o serviço técnico de fazer medicação e tal...
(A03).
A tomada do bem-estar como ausência de doenças e dos procedimentos técnicos
como produtos do trabalho na ABS são coerentes com a identificação das
necessidades dos usuários como enfrentar doenças ou problemas de saúde. Essas
percepções remetem novamente à fragmentação do homem que necessita de cuidados
ora para alguma parte do corpo doente, ora para a mente que também se encontra
doente ou com problemas. Revela, também, a fragmentação do processo de
trabalho, condição desfavorável ao desenvolvimento da atenção à saúde na
perspectiva da integralidade.
O conforto mental dos usuários também foi relatado como produto do trabalho na
ABS, e esta produção é marcada como uma característica da enfermagem, ou seja,
os trabalhadores AEs e TEs se reconhecem como agentes capazes de produzir o
conforto mental do usuário.
Eu acredito que a gente seja, como o próprio nome diz, auxiliar, a
gente também auxilia o médico no conforto físico do paciente, às
vezes, até mental, porque, quando, muitos pacientes chegam aqui pra
falar com o auxiliar, ele não tem um problema físico, ele qué
conversar, ele qué chora, ele qué desabafa, aí é aonde a gente entra,
pra promover conforto, né (A02)?
Observamos, novamente, o uso e a valorização das tecnologias leves sendo que,
agora, estas tecnologias apresentam resultados na produção em saúde e, assim,
abrem espaços para a produção do cuidado, na perspectiva da integralidade da
atenção.
Finalidade do trabalho em saúde
A finalidade do trabalho em saúde foi predominantemente referida pelos AEs e
TEs como ligada à oferta de recursos que recuperem o corpo doente e previnam
doenças para evitar gastos por parte dos governos. Mesmo a promoção do bem-
estar é tomada como ausência de doenças.
Deparamo-nos, também, com a finalidade do trabalho na ABS como o controle da
ocorrência de doenças para evitar a incapacidade para o trabalho e a
recuperação da força de trabalho para colocá-la de volta no processo de
trabalho.
Prá, prá diminuir o número de doenças, prá não dar tanto gasto para o
Estado, porque se você promove saúde, você elimina gastos. É, prá que
a pessoa tenha uma vida digna, né? Prá que ela tenha condições de
produzir, de se divertir, de ficar com a família, de cuidar da
própria vida. (...) Produzir trabalhando, né? Fora ou dentro de casa,
ou cuidando de uma pessoa mais velha, ou cuidando de criança, mas
promover, né (A02)?
Os trabalhadores AEs e TEs também identificaram como finalidade do trabalho na
ABS proporcionar melhores condições de vida aos usuários, garantir a saúde como
direito de todos e dever do Estado e assistir quem não pode pagar o sistema
privado.
Ah, eu acho que é uma obrigação porque existindo essa necessidade os
governantes têm a obrigação de promover isso pro cidadão porque da
mesma forma que investe em educação, investe em informação, ele
também tem que investir na saúde, porque é fundamental como é que uma
pessoa que não está bem fisicamente ou psicologicamente ele pode
produzir em alguma outra, é uma fase que ela não é produtiva em área
nenhuma, nem na escola, nem no trabalho, nem em lugar nenhum, é
fundamental que ela esteja se sentindo bem prá que ela seja uma boa
mãe, um bom funcionário, um bom médico, ser um bom professor, um bom
advogado, um bom lavrador, ela tem que tá com a saúde compensada,
equilibrada prá ela poder produzir em outras áreas (A09).
Evidencia-se um descompasso entre os discursos e as ações dos trabalhadores AEs
e TEs, pois o que foi verbalizado como finalidade, prevenir doenças e promover
bem-estar, foi pouco identificado em ações pontuais, circunscritas a
determinadas situações. Na prática desses trabalhadores, predominaram as ações
voltadas para a recuperação do corpo doente.
Deixamos aqui registrado que a emancipação dos sujeitos e o desenvolvimento da
cidadania são dimensões que ainda estão muito distantes da finalidade do
trabalho em saúde. Portanto, o processo de trabalho dos AEs e TEs desta UBS
também se encontra distante do projeto de saúde cuja finalidade tem como
ideário a integralidade, como é o caso do SUS.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo buscou caracterizar o processo de trabalho dos AEs e TEs de uma
UBS, analisar as concepções desses trabalhadores sobre os elementos
constitutivos do processo de trabalho na ABS, na perspectiva da integralidade
da atenção, e identificar e analisar os aspectos dificultadores e facilitadores
para desenvolver o processo de trabalho, na perspectiva da integralidade.
No processo de trabalho desses agentes, foi possível identificar duas
composições distintas, sendo que encontramos de modo predominante a organização
do processo de trabalho para atender pessoas com necessidade de enfrentar
doenças/problemas de saúde, mas também encontramos potencialidades para o
desenvolvimento do processo de trabalho na direção da integralidade da atenção.
Para que se continue avançando nessa direção, consideramos ser necessário
implementar a educação permanente no cotidiano do trabalho na ABS e, dentro
desta prática, qualificar a escuta dos trabalhadores que atuam nesses serviços.
Consideramos necessário, ainda, ampliar os fóruns de discussões e as ações,
incluindo como agentes as universidades, as instituições formadoras de AEs e
TEs, os órgãos representativos da enfermagem e as instâncias políticas nos
níveis nacional, estadual e municipal, para promover transformações estruturais
na formação dos trabalhadores de nível médio de enfermagem, de modo que estes
desenvolvam as competências necessárias para o trabalho na ABS, na perspectiva
da integralidade da atenção.
Acreditamos que a concepção de competência, articulada à sustentação teórica do
processo de trabalho em saúde, pode ser um dos caminhos para ampliar a
qualificação dos trabalhadores, em especial dos AEs e TEs que compõem parte
significativa do conjunto dos trabalhadores que produzem a atenção nos serviços
de saúde e estão diuturnamente na linha de frente dos serviços, construindo o
SUS e, sem dúvida, contribuindo com muita energia no fortalecimento de seus
princípios.