Plano de Cuidados Compartilhado: convergência da proposta educativa
problematizadora com a teoria do cuidado cultural de enfermagem
INTRODUÇÃO
A enfermeira, na condição precípua de educadora em saúde, exerce esta atividade
profissional realizada com diferentes clientelas e contextos, o que exige
conhecimento da realidade sócio-econômica, política e cultural na qual se situa
o cliente, devendo resgatar esse sujeito como cidadão ativo, participante do
seu processo de cuidado. Nessa diretiva, necessita posicionar-se de forma ética
e embasada numa pedagogia que transcende à tradicional, embutida, ainda, na
concepção e prática hegemônica de cuidado hierarquizante dos dias atuais.
Aproximando-se as situações de cuidado com as considerações pedagógicas de
Freire0 ', tal evento educativo problematizador se torna possível por meio do
diálogo transformador que comunica, possibilitando a transição de uma
consciência "ingênua", caracterizada pela passividade, para uma consciência
crítica e reflexiva, capaz de fazer com que o cliente se coloque em posição
questionadora, participativa e ativa. Isto significa assumir a posição de
sujeito e não objeto da ação profissional.
Assim agindo, pode optar por aderir ou não à mudança de hábitos, atitudes e
modos de pensar a vida e a saúde. Os possíveis caminhos e as repercussões das
escolhas são refletidos e traçados de forma conjunta na relação dialógica de
cuidado, podendo o cliente ou escolher a mudança, que ocorre no sentido da
verdadeira humanização do homem, ou ficar a favor da permanência, chegando ao
ápice da antimudança.
Essa mudança de perspectiva na relação do cuidado entre a enfermeira e o
cliente é capaz de promover uma autêntica comunicação entre pessoas que têm
sentimentos, desejos, sonhos, dentre outros atributos humanos. Implica co-
construção de saberes e a possibilidade de transformação da realidade,
culminando dessa forma, numa interação mútua, verdadeira, horizontal e
humanizada, voltada à libertação dos oprimidos por meio da ruptura da cultura
do silêncio, revelando a importância da enfermeira nestes momentos. Esta ação
política acontece em comunhão com os oprimidos na busca de sua libertação,
resultando em desvelamento e, logo, inserção crítica na realidade(2).
Ao acessar os saberes e práticas de clientes acerca das demandas de cuidado de
si, é possível se pensar em um cuidado compartilhado no qual se considere o
universo de saberes técnico-científicos e populares. A prática do cuidado
compartilhado está amparada nos pressupostos filosóficos do construcionismo
social, ou seja, a construção do conhecimento dar-se-á a partir da experiência
do sujeito num processo de significação. "Nesse sentido, ao pensarmos que o
produto da ação de cuidar (o cuidado) pode ser compartilhado, temos aí,
necessariamente, um processo dialógico permeando tal construção no encontro dos
saberes - do senso comum e reificado - que, por sua vez, abarca o encontro de
culturas de conhecimento e prática"(3).
Nessa perspectiva, a abordagem dialética freiriana entra em sinergia compondo o
cenário de uma praxis radicalmente compromissada com as transformações sociais,
abolindo eticamente a opressão e a injustiça. Isso porque essa proposta
educativa dialógica e problematizadora, que assinala uma mudança de perspectiva
na relação de cuidado de enfermagem, se reveste da compreensão do cliente como
potencialmente ativo, inserido sócio-culturalmente em uma realidade que lhe é
singular, cujas experiências se acumulam, se refazem e se modificam ao longo de
sua trajetória existencial(4). Afinal, a prática do cuidado de si implica que o
sujeito se constitua em face de si próprio não como um simples indivíduo
imperfeito, ignorante e que tem necessidade de ser corrigido, formado e
instruído, mas sim como indivíduo que sofre de certos males e que deve deles
cuidar, seja por si mesmo, ou por alguém que para isso tem competência(5).
Na contramão de interações hierarquizantes e autoritárias, assume-se um
compromisso na construção de relações horizontais através de práticas de
cuidado que possibilitem a conscientização em saúde decorrente do ato reflexivo
expresso no encadeamento ação-reflexão-ação, viabilizado pelo diálogo
transformador. Nessa perspectiva, o sujeito atua como partícipe do cuidado,
decide, opta e escolhe o melhor para si; condição que vai além de mero receptor
de conhecimentos, gerando significativa autonomia nesse processo, de modo a
reunir condições de implementar o cuidado nos seus espaços de vida comum.
Tendo em vista os posicionamentos abordados, este estudo objetiva refletir
sobre o Plano de Cuidados Compartilhado -PCC - como uma proposta educativa-
cuidativa, na convergência entre os teóricos Paulo Freire e Leininger, no que
tange à pedagogia problematizadora e ao cuidado cultural de enfermagem. Essa
proposta emerge a partir da finalização e dos resultados de uma pesquisa de
Mestrado em Enfermagem, sendo apresentada em três momentos no decorrer desse
artigo: Momento 1 "A Pedagogia Freiriana"; Momento 2 "Teoria do Cuidado
Cultural de Enfermagem" e Momento 3 "Reflexões Sobre a Utilização do Plano de
Cuidados Compartilhado -PCC - na Prática de Enfermagem".
A PEDAGOGIA FREIRIANA
De acordo com Freire, "O homem deve ser o sujeito de sua própria educação. Não
pode ser o objeto dela. Por isso, ninguém educa ninguém"(1). Decorrem deste
pensamento indícios claros de que o homem não pode ser "coisificado" e oprimido
na ação educativa. Como sujeito cognoscente, imerso no mundo e com o mundo, ele
deve ser reconhecido e ouvido por meio de um processo de educação estabelecido
numa relação horizontal e recíproca por meio do diálogo que comunica. A partir
deste método participativo, dialogal e ativo, que permite a comunicação, ambos
se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo.
O diálogo, portanto, é a essência da educação. É caracterizado como uma relação
horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade. Nutre-se
do amor, da humildade, da esperança, da fé e da confiança. Por isso, só o
diálogo comunica. Então, no momento em que os dois polos do diálogo se ligam,
com amor, com esperança, humildade, fé e confiança, há a construção de sujeitos
críticos pela relação empática instalada entre ambos, procedendo, de fato, a
comunicação, conforme representação esquemática a seguir:
Figura_1
É por meio da dialogicidade que os sujeitos alcançam a comunicação. O diálogo é
mediatizado por uma interação horizontal e mútua, indo de encontro à educação
depositária, na qual o opressor deposita, nos outros, o conhecimento de forma
verticalizada, unidirecional por meio de um discurso monológico. A prática
dialógica permite o compartilhamento de saberes e práticas entre os sujeitos
envolvidos por meio das palavras. Neste momento é que se leva em consideração o
saber do outro, valorizando sua cultura, suas crenças, seu contexto social,
político e econômico.
A conscientização é um ato reflexivo, e, portanto, produto da prática
dialógica. É nesse compartilhar de saberes e práticas que há a revelação de uma
ação já praticada por um ou ambos do processo, culminando numa reflexão crítica
acerca do ato para a construção de um novo saber, o compartilhado. É neste
ínterim que há a transitividade de consciência, da ingênua, revelada pela
passividade, para uma consciência crítica e reflexiva, caracterizada por ser
ativa e questionadora, outorgando autonomia ao sujeito cognoscente(7).
Neste processo de conscientização, há a ruptura da cultura do silêncio,
libertando os oprimidos frutos da educação tradicional. A partir disso,
lançamos os caminhos para que os sujeitos possam agir novamente, desta vez,
conscientes da situação ora posta. Esta nova ação pode ser modificada ou não
pelo sujeito consciente, porque a partir dos caminhos lançados, ele opta pelo
que é melhor para si, aderindo ou não a mudança de hábitos, vivenciando a
autonomia alcançada. Se optar pela mudança, no sentido da verdadeira
humanização do homem, transformará a realidade inicialmente apresentada.
Figura_2
É importante mencionar que essa mudança de comportamento geralmente não é
imediata, e só será percebida quando o sujeito der marcas da transformação de
seu saber. Há um tempo variável entre a ação, a reflexão sobre esta ação e a
geração de uma nova ação pela tomada de consciência(4).
Este modelo educativo inovador, de transformação da realidade, baseada na
crítica e reflexão, vem sendo adotado no campo da educação em saúde,
particularmente da Enfermagem. Isto porque, o modelo tradicional que utiliza
práticas verticalizadas de educação centradas na soberania do saber acadêmico-
científico sobre os demais saberes não vem dando conta da complexidade inerente
à saúde das pessoas, em que pese seus diferentes modos de viver e de cuidar de
si.
O pensamento de Freire ainda é contemporâneo e inspira a teoria e a prática da
educação, contribuindo e enriquecendo de forma significativa a prática
educativa em Enfermagem, resultando em um cuidado diferenciado, pautado na
problematização das situações advindas da realidade concreta dos sujeitos
envolvidos em situação de cuidado. A pedagogia problematizadora subsidia os
encontros entre enfermeira e clientes visando, pelo diálogo e compartilhamento
de idéias e posições, acessar seus saberes e práticas sobre as demandas de
cuidado de si, e, por um processo de crítica e reflexão, contribuir com a
promoção de mudanças que se fizerem pertinentes e necessárias.
Ao abordar os saberes e práticas de clientes sobre as demandas de cuidado de
si, numa perspectiva educativa, considerare sobremaneira o arcabouço cultural
em que o cliente está envolvido por meio do compartilhamento de saberes e
práticas de cuidado entre a enfermeira e o cliente, levando-se em conta as
diferenças entre a cultura dos envolvidos no cuidado: a profissional, advinda
do saber técnico-científico; e a pessoal, cunhado ao saber leigo dos clientes,
revelando-se aí uma possível articulação das idéias freirianas com a Teoria
Cultural do Cuidado de Enfermagem, do que tratamos a seguir.
TEORIA DO CUIDADO CULTURAL DE ENFERMAGEM
A Teoria da Diversidade e Universalidade do Cuidado Cultural de Leininger
objetiva "Identificar os meios para proporcionar um cuidado de enfermagem
culturalmente congruente aos fatores que influenciam a saúde, o bem-estar, a
doença e a morte das pessoas de culturas diversas e semelhantes"(8). Foi
desenvolvida a partir da Antropologia; porém, reformulada para a Enfermagem
Transcultural com perspectivas de cuidado humanizado(9-10).
A Universalidade do cuidado revela a natureza comum da humanidade e dos seres
humanos, já a Diversidade do cuidado revela a variabilidade e seleção das
características originais dos seres humanos(11).
Leininger cunhou o termo enfermagem transcultural, que considera ser diferente
da antropologia médica e disciplinas afins, por estar focada em culturas
diferentes, no cuidado cultural, nos fenômenos da saúde e da enfermagem. Ela
também cunhou o termo cuidado culturalmente congruente (nos idos de 1960) para
embasar o principal objetivo de sua teoria(8).
Os conceitos de Cultura, Valor Cultural, Cuidado de Enfermagem Culturalmente
Diverso, Etnocentrismo, Generalização, Estereótipo, Congruência Cultural,
Etnoenfermagem e Enfermagem Transcultural fundamentam a Teoria da Diversidade e
Universalidade do Cuidado Cultural(8).
Para a autora da teoria, cultura são "os valores, crenças, normas e modos de
vida de um determinado grupo, aprendidos, compartilhados e transmitidos e que
orientam seu pensamento, suas decisões e suas ações de maneira padronizada"(9).
A teoria se baseia na afirmativa de que "em todas as culturas o cuidado é uma
necessidade humana essencial para o total desenvolvimento e manutenção da saúde
e sobrevivência dos seres humanos"(12). As ações do cuidado cultural são
congruentes com as crenças, valores e costumes do cliente, ajudando-o de modo
significativo e pacífico no decorrer de sua trajetória existencial até a sua
morte.
O cuidado cultural permite a construção de um plano de cuidados único e
congruente ao contexto cultural do cliente, havendo, de certa forma, o alcance
sobre a forma como o mesmo deseja participar do cuidado, qualificando-o. Este
tipo de cuidado, em linhas gerais, mediatiza o cuidado integral em enfermagem.
A intenção é o reconhecimento singular dos respectivos saberes e práticas de
cuidado, aplicados às demandas de cuidado de si, valorizando a totalidade da
vida de cada um, tudo que o cerca, numa perspectiva holística da vida humana.
Leininger, em sua teoria, valoriza os aspectos culturais como forma de
expressão dos sujeitos envolvidos no processo de cuidado, indo ao encontro das
idéias de Freire, que também valoriza os aspectos culturais como forma de
expressão dos sujeitos, todavia no processo educativo. Porém, há que considerar
as diferenças teórico-filosóficas entre os dois autores.
Enquanto Freire trabalha com a perspectiva da consciência crítico-reflexiva,
pelo diálogo, Leininger trabalha com as categorias de adaptação e acomodação.
Na visão de Leininger, o cliente não propriamente transforma ou muda a sua
concepção de saúde e doença pela crítica e reflexão, mas ajusta-se às condições
que lhes são apresentadas.
Para Freire "a educação deve estimular a opção e afirmar o homem como homem.
Adaptar é acomodar, não transformar. O homem integra-se e não se acomoda.
Existe, contudo, uma adaptação ativa"(1). Além disso, enquanto para Leininger
(9) o diálogo caracteriza-se como forma de atenuar os conflitos na relação do
cuidado pela troca de informações, para Freire o diálogo não exclui o conflito,
sob pena de ser um diálogo ingênuo. Isso porque Freire visualiza o diálogo como
uma forma de os oprimidos superarem sua condição de oprimidos; afinal, vivemos
numa sociedade de classes. Esclarece, ainda, que "esse diálogo supõe e se
completa, ao mesmo tempo, na organização da classe, na luta comum contra o
opressor, portanto no conflito"(1).
Não obstante as diferenças pontuais entre as concepções teóricas, ambas
contribuem de maneira significativa com a construção do cuidado compartilhado,
uma vez que tanto Freire quanto Leininger concebem a cultura como parte
essencial, integrante do processo de educar e cuidar, respectivamente.
Considerando os aspectos culturais dos clientes envolvidos na relação de
cuidado para a providência de um cuidado congruente a sua realidade, por meio
do compartilhar de saberes e práticas, Leininger desenvolveu sua teoria baseada
na convicção de que: as pessoas de diferentes culturas podem oferecer
informações e orientar os profissionais sobre a forma como desejam receber os
cuidados. A cultura determina os padrões e estilos de vida, e tem influência
nas decisões das pessoas. Tal teoria ajuda a enfermeira a descobrir e
documentar o mundo do cliente e utiliza seus pontos de vista, conhecimentos e
práticas juntamente com o seu conhecimento profissional, como base para adotar
ações e decisões profissionais coerentes com a cultura(13:27).
O cuidado cultural leva em consideração a totalidade da vida humana, havendo o
respeito e a consideração do contexto cultural do sujeito. O conhecimento
acerca desse cuidado cultural favorece as práticas de cuidado da enfermeira,
tornando-as mais legítimas, à medida em que há o reconhecimento do saber
cultural do cliente, propondo cuidados de Enfermagem culturalmente congruentes
(13). Assim, a apreciação e lapidação dos cuidados realizados pelos clientes,
advindos do senso comum, compartilhados com o saber da enfermeira, representa a
vivência em ato desse cuidado culturalmente congruente. Destaca-se a seguir o
Plano de Cuidados Compartilhado - PCC.
REFLEXÕES SOBRE A UTILIZAÇÃO DO PLANO DE CUIDADOS COMPARTILHADO NA PRÁTICA DE
ENFERMAGEM
Em linhas gerais, o plano de cuidados compartilhado, construído em conjunto com
cada cliente e em cada abordagem situacional de cuidado, procura enfatizar os
cuidados considerados anacrônicos ao contexto do sujeito em questão, podendo
trazer, em curto, médio ou longo prazo, prejuízos ao mesmo. Ainda pontua-se, no
âmbito da relação de cuidado, a manutenção de práticas consideradas pertinentes
pela enfermeira e cliente, a partir de uma análise lógica conjunta dos
elementos fundamentais usados para o cuidado de si e suas possíveis
repercussões na saúde do indivíduo em foco. Como a orientação dialogada tem o
intuito de contemplar a individualidade de cada sujeito, suas necessidades e
desejos, o plano não se centra em cuidados generalizados ou pré-pontuados, ou
seja; à medida que a "conversa" flui, o plano de cuidados vai sendo co-
construído na singularidade do cliente.
Como enfatizado anteriormente, essa reflexão emerge dos resultados considerados
positivos de uma dissertação de mestrado em enfermagem, suscitando um caminho
acerca de como, efetivamente, pode-se praticar uma abordagem de educação em
saúde democrática, em que gera frutos pertinentes que colaboram na restauração
da saúde e bem-estar do cliente.
A justificativa detalhada de cada cuidado sobre a sua pertinência, ou não, é
papel fundamental da enfermeira no manejo da confecção do plano de cuidados
compartilhado, colaborando para o entendimento do uso, ou não, de determinadas
práticas. Ao final da implementação do processo educativo dialógico, à medida
que o plano de cuidados vai sendo construído, os problemas observados vão
sendo, novamente, pontuados e seguidos das orientações dialogadas. O
conhecimento do cliente e da enfermeira acerca do cuidado vai sendo questionado
e revisitado.
O compartilhamento das informações entre enfermeira-cliente, pautado pela
pedagogia problematizadora, é pertinente, na medida em que facilita a
aprendizagem dos clientes. O cliente passa a refletir e a atentar para os
cuidados que lhes são essenciais. Durante a troca de saberes, a enfermeira
indaga sobre os detalhes do cuidado estabelecido em seu espaço de vida
cotidiana, ou seja, no domicílio; e é justamente aí que se revelam as
possibilidades de mudança de hábitos frente às dificuldades e problemas
encontrados. Isto porque, consciente de sua condição e das demandas de cuidado
necessárias, o cliente reúne melhores possibilidades de cuidar de si no
domicílio.
A prática dialógica traz para o contexto do cuidado a condição de crítica e de
reflexão do cliente que, por sua vez, permite a tomada de consciência sobre o
problema e a possibilidade de agir sobre ele de modo a transformá-lo. Uma vez
consciente, o cliente se torna mais ativo e partícipe do cuidado; sente-se mais
seguro para exercer sua autonomia neste processo, o que o habilita a avaliar os
cuidados prestados no domicílio.
O estímulo ao conhecimento do novo deve ser feito pela enfermeira,
considerando, no entanto, a pertinência de cada caso e sua realidade. O aumento
na qualidade de vida pelo alcance da autonomia planejada se torna real, e
assim, facilita os diversos cuidados executados, principalmente no contexto
domiciliar pelos clientes. Tais cuidados compartilhados são desafios para a
enfermagem, pois demandam uma série de atributos que dependem não só da postura
profissional da enfermeira, como também da dinâmica de atendimento da
instituição assistencial, a relação com a equipe interdisciplinar e sobretudo
com o entendimento dessa nova perspectiva política e amorosa, que supera a
pedagogia tradicional enraizada não só na culturalidade dos clientes, como
também no exercício dos profissionais de saúde e seus gestores.
DESAFIOS PARA A ENFERMAGEM
O compartihamento das informações proporciona a revisitação de saberes e
práticas não só pelos clientes, como também pela enfermeira. A crítica-reflexão
viabilizada pelo diálogo transformador e reconstrutor permite o aprimoramento
ou construção de novos saberes que não fazem parte do universo cultural
primeiro.
No entanto, no contexto atual, a atividade educativa estabelecida pelo
profissional de saúde ainda é feita, em grande parte, de forma hierarquizada e
autoritária, na qual não se permite a troca e não há a valorização do sujeito
como participante ativo do processo de cuidado, não tendo voz. Essa forma de
educar-cuidar, a despeito dos méritos por vezes alcançados, não avança no
sentido de valorizar o cliente como sujeito ativo, inserido em um contexto que
lhe é próprio, em que seus saberes e suas práticas têm valor e são respeitados.
Mesmo com a evolução da ciência, do mundo em que vivemos, algumas atividades/
atitudes profissionais ainda continuam enraizadas e permanecem inalteradas ou
pouco alteradas ao longo do tempo. Assumir uma nova postura frente à nova
realidade reveste-se de condição ética perante a sociedade em transformação,
tendo em vista as repercussões da implementação da pedagogia freiriana em
pesquisas já publicadas e consagradas, especialmente, no âmbito da enfermagem.
É preciso, contudo, investir em estudos e na prática profissional que visem à
superação do modelo monológico, que não vem dando conta dos aspectos alusivos à
saúde e à singularidade do cliente. O processo dialógico não somente trabalha
no intento de dar voz aos sujeitos, como também, dar significado a esta voz,
imprimindo-lhe sentido. É preciso, deste modo, pensar a educação em saúde em
consonância com as modificações cotidianas do mundo em que vivemos, sendo o
cliente sujeito ativo integrante desse processo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na contemporaneidade, o Plano de Cuidados Compartilhado surge como resposta à
superação de uma pedagogia tradicional de educação em saúde bancária que não
vem dando conta dos interesses individuais dos clientes, suas necessidades e
desejos no que compete à sua identidade como ser único/insubstituível que
responde de forma característica às práticas de cuidado de si.
O Plano de Cuidados Compartilhado é fundamentado pelos princípios teóricos de
Paulo Freire e Leininger, no que tange à pedagogia problematizadora e ao
cuidado cultural de enfermagem. Ambos concebem a cultura como parte essencial,
integrante do processo de educar e cuidar, respectivamente.
No compartilhamento das informações, enfermeira e cliente refletem juntos e
analisam criticamente a pertinência, ou não, de determinada prática, e quando
consideradas inadequadas ao contexto do cliente, ambos se mobilizam para a
mudança. Faz-se necessária a articulação dos cuidados profissional e popular
com o cenário onde ele será efetivamente realizado. Para tanto, a participação
ativa do cliente é imprescindível na atividade desenvolvida, pois favorece o
processo de conscientização sobre as formas que ele pode se cuidar, abrindo
caminhos para favorecer sua saúde e bem-estar.
Sobre a valorização dos cuidados profissional e popular durante o processo
educativo-cuidativo, vale dizer que, além dos aspectos físicos, a enfermeira
deve atribuir sentido àqueles subjetivos, como a atenção necessária ao cliente:
seus valores, suas crenças, seus modos de viver, -de cuidar de si e o conjunto
de saberes e práticas presentes em suas ações de cuidado. Valorizar a
complementariedade desses aspectos significa pensar o cuidado de forma
compartilhada, permeada pela prática dialógica e sensível da enfermeira.
A aprendizagem conjunta acerca dos elementos considerados essenciais ao cuidado
permite o desvelamento de uma realidade peculiar e a inserção de possibilidades
para a transformação, por opção do sujeito, da realidade concreta revelada. Sua
condição de crítica e de reflexão é aguçada, exercendo com maior segurança e
autonomia as demandas cotidianas do cuidado de si, avaliando, modificando
hábitos e transformando a realidade.
A autonomia planejada se torna real, fazendo com que os clientes não mais
exerçam práticas fragmentadas, decorrentes da pedagogia tradicional. O cliente
autônomo alcança, contudo, a plenitude das ações. Quando chega à autonomia
desejada, se insere em um universo que lhe é peculiar; está no mundo e com o
mundo e com isso pode ser mais. Mesmo com as modificações sofridas no mundo,
consegue, ao mesmo tempo, inserir crítica e reflexão acerca do cuidado pensado,
avaliando e modificando hábitos, constantemente.
Contudo, devemos refletir sobre o quê e como orientamos, sendo necessária a
impressão de crítica e reflexão em cada situação de cuidado e em cada atividade
educativa, pois a orientação dialogada possibilita o compartilhamento de
saberes e práticas que perpassam os sistemas, popular e profissional,
garantindo a efetividade do nosso cuidado. Desta forma, alcançamos as
necessidades e desejos do cliente, nosso maior mobilizador da implementação de
práticas de cuidar eficazes.