Reinterpretação da potencialidade das Oficinas de Trabalho Crítico-
emancipatórias
INTRODUÇÃO
As oficinas de trabalho crítico-emancipatórias na enfermagem
A história da enfermagem mostra um caminho árduo rumo à sua consolidação como
profissão, marcada pelo fazer inerente à condição feminina de cuidar dos
corpos, inserindo-os ou reinserindo-os no processo de reprodução social, de
acordo com a ordem social vigente ou até mesmo, excepcionalmente, insurgindo-se
contra ela. No entanto, dada talvez a marca indelével da vontade de ajudar o
próximo, trazida desde a sua gênese como prática empírica até à enfermagem
moderna com Florence Nigthingale - e até nossos dias - temos buscado qualificar
e capacitar enfermeiras e demais trabalhadores para atuarem no conjunto das
práticas de saúde de forma a garantir o bem estar e a saúde da população. Isto
tem sido feito de várias formas, incluindo-se nelas as práticas participativas
como modalidade crítico-emancipatória visando ao reconhecimento do sujeito
social imbuído de possibilidade de transformar o mundo, na busca de melhores
condições de vida e saúde.
Entre tais práticas, merecem destaque as chamadas Oficinas de Trabalho,
surgidas no campo da educação, no movimento feminista, nos anos 1970, como
tentativa de oferecer às mulheres um espaço de reflexão sobre a matriz feminina
e as relações de gênero a partir de situações cotidianas vividas por elas
próprias. Este movimento visava contribuir para o crescimento individual das
mulheres e ao mesmo tempo trazer mudanças no âmbito coletivo. Foi uma
estratégia largamente utilizada pelo Programa de Atenção Integral à Saúde da
Mulher (PAISM) como carro-chefe das práticas educativas(1). De lá para cá tem
sido largamente utilizada para a população em geral e para a qualificação de
trabalhadores.
Disseminou-se por diversas áreas, tentando articular subjetividade,
racionalidade, experiência pessoal e conhecimento. Foi denominada grupo de
autoconsciência, grupo de reflexão, oficina de trabalho, dentre outros. No
Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da EEUSP, a prática de Oficinas de
Trabalho iniciou-se da década de 1990, como um espaço de reflexão, intervenção
e empoderamento, nos programas interventivos voltados para a qualificação da
força de trabalho (intervenção de enfermagem) e, logo após, para coleta de
dados de investigações. Inúmeras experiências foram desenvolvidas, reforçando a
contribuição desta prática para as duas vertentes do trabalho de enfermagem, ou
seja, a intervenção educativa em grupos e a investigação, com resultados
surpreendentes(2).
A Oficina de Trabalho Crítico-emancipatória (OTC) é um espaço de construção
coletiva grupal, cujo produto pode ser apropriado pelos participantes, posto
que retrata a contribuição de cada um no conteúdo e na qualidade da sua
participação. Caracteriza-se por um ambiente descontraído, facilitado pela
utilização de práticas pedagógicas incentivadoras da integração e do
estabelecimento de uma relação horizontal de poder entre participantes e
coordenação. A síntese contém não só os posicionamentos e representações
evidenciados durante as discussões como também novos conhecimentos,
introduzidos pela coordenação ou por especialista.
Pode tratar-se de "uma prática de intervenção psicossocial, seja em contexto
pedagógico, clínico comunitário ou de política social (...) um processo
estruturado com grupos (...) sendo focalizado em torno de uma questão central
que o grupo se propõe a elaborar, em um contexto social. A elaboração que se
busca não se restringe a uma reflexão racional mas envolve os sujeitos de
maneira integral, formas de pensar, sentir e agir"(3).
Os seus pilares de sustentação estão fundados na educação crítico-emancipatória
(4) e na consequente noção de empoderamento(5) - vindo daí seu nome; no uso das
emoções como construtoras do conhecimento(6); na abordagem dialética do
movimento da consciência, nas noções de participação e responsabilidade
compartilhada.
Como método de intervenção, segue os pressupostos e etapas da Teoria de
Intervenção Práxica da Enfermagem em Saúde Coletiva(7) que propõe uma forma
sistematizada para captar, interpretar e intervir nas práticas educativas,
tendo em vista as dimensões do singular, particular e estrutural. A dimensão
singular, relativa aos processos de ensino e avaliação, é aquela em que, em
última instância, são operacionalizados os referenciais pedagógicos da dimensão
particular que levam o sujeito a integrar-se ao sistema em que vive, com
resultados previsíveis sobre sua conduta posterior. Ambas articulam-se aos
processos de produção e reprodução social da coletividade na qual se inserem,
historicamente determinado, que constitui a dimensão estrutural. À captação,
interpretação e intervenção, segue-se a contínua reinterpretação do fenômeno,
de forma práxica, constituindo a unidade dialética teoria-prática.
A despeito da comprovação empírica dessa alternativa privilegiada para a
intervenção educativa, sua potencialidade encontra-se ainda pouco explorada no
sentido de constituir comprovadamente elementos sobre os quais é possível
construir e trocar o conhecimento. Diante disto, pergunta-se: qual é a real
potencialidade da oficina como transformadora do conhecimento individual e
grupal, tanto no que se refere aos temas como também às possibilidades de
reconhecimento do humano nas relações que se estabelecem entre participantes e
entre estes e a coordenação? Quais são as possibilidades de transformação no
que tange a forma e conteúdo das práticas educativas que podem ser evidenciadas
no contexto da realização de uma Oficina?
Tendo isto em vista, os objetivos deste trabalho foram: conhecer a
potencialidade da OTC como transformadora do conhecimento, no contexto da
violência de gênero e desvelar as possibilidades de reconhecimento do humano
nas relações que se estabelecem entre os todos os participantes; articular as
potencialidades referidas aos pilares de sustentação, desvelando as
possibilidades de transformação dos sujeitos por meio desta prática educativa.
METODOLOGIA
O objeto de estudo foi a avaliação de uma OTC realizada junto a trabalhadores
das equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) de um Município do interior do
Estado de São Paulo, que recebeu a denominação de Mulher e violência:
reconstruindo a assistência no âmbito do PSF. As finalidades dessa Oficina
foram reconstruir a assistência à mulher em situação de violência prestada
pelas equipes da ESF e obter subsídios para a introdução de um protocolo de
atendimento à saúde para mulheres em situação de violência sexual. Tal
finalidade foi alcançada por meio dos objetivos: estimular a reflexão acerca da
violência contra as mulheres como problema de saúde, determinado pela
construção social das matrizes femininas e masculinas em relação, na sociedade
brasileira; analisar criticamente a assistência à saúde prestada pela ESF às
mulheres em situação de violência, em especial, de violência sexual; preparar
os profissionais para detectarem situações de vulnerabilidade à violência
contra as mulheres e prestarem assistência compatível com suas necessidades.
Quanto aos procedimentos metodológicos, participaram seis enfermeiras e 89
agentes comunitários de saúde. A duração foi de três sessões de quatro horas
cada, em dois dias consecutivos. Na primeira sessão foi feita uma reflexão
sobre a construção social da masculinidade e da feminilidade e as relações de
gênero. As sessões seguintes referiram-se especificamente à violência de gênero
iniciando-se com uma reflexão acerca da sua determinação social e das práticas
de saúde empregadas para o seu enfrentamento. As estratégias: reflexão
individual e grupal, facilitadas por meio de elaboração de esculturas com
papéis, massa de modelar, painéis com recortes de revistas, sucatas e
brinquedos. A dramatização foi também utilizada como recurso pedagógico por
excelência para estimular a reflexão acerca da violência contra as mulheres com
base na realidade. Foram dramatizados casos relatados pelos participantes e
conhecidos pela maioria do grupo. Ao final de cada sessão, era feita uma
avaliação parcial por meio de uma palavra ou gesto que demonstrasse o que cada
participante tinha achado da Oficina naquele momento. Ao final foi feita uma
avaliação geral por meio da estratégia da Árvore do Conhecimento, objeto deste
artigo.
A Árvore do Conhecimento foi utilizada como estratégia facilitadora abrangendo
processo e produto. Trata-se de uma estrutura formada por um tronco e galhos
que sustentam outros elementos a serem colocados pelos participantes, a partir
da sua representação acerca do conhecimento construído. Os elementos que
compõem a árvore e o ambiente onde ela está podem incluir raiz, adubo, sol,
chuva, minhoca, semente, flores, inseticida, folhas, frutos, flores, raio,
trovão, nuvem e outros, à escolha das pessoas. Além dos elementos
disponibilizados pela coordenação, os participantes podem incluir ou criar
outros.
Os sujeitos são convidados a fazer uma reflexão individual acerca do
conhecimento adquirido ou construído durante a Oficina enquanto escolhem o que
é colocado na árvore. O importante é que os elementos representem o que cada
pessoa pensa e sente a respeito do trabalho realizado. Esta estratégia é usada
visando estimular a criatividade e facilitar a exposição dos posicionamentos e
sentimento, de maneira que abranjam tanto os aspectos considerados positivos,
facilitadores e importantes para a transformação da prática cotidiana, como
aqueles que dificultaram ou impossibilitaram a construção coletiva do
conhecimento.
A árvore pode ser construída com tronco e galhos naturais, folhas, flores,
frutos ou elaborada com papel, recortes de tecidos, contas, massa de modelar,
barbante, fios, linhas, botões e outros, colocados à disposição dos
participantes. O importante é que sejam disponibilizados materiais que
estimulem a criatividade, podendo-se permitir também que os participantes
busquem fora do ambiente da Oficina o que quiserem incluir. Numa outra oficina,
realizada com docentes de enfermagem num ambiente rural, uma das participantes
fez questão de ir buscar e colocar delicadamente uma minhoca viva aos pés da
árvore, falando acerca da sua importância para a aeração do solo e de seus
conhecimentos acerca do tema em debate A categoria gênero na investigação de
enfermagem.
Realizada a reflexão individual, os participantes são convidados a permanecer
em círculo ao redor do tronco e dos galhos, falando um por vez acerca dos
elementos escolhidos e do que representam, na medida em que os colocam na
árvore. Ao final, é feita uma síntese, de acordo com as categorias empíricas
que se conformam a partir dos conteúdos das falas.
Coleta, tratamento e análise dos dados
Neste estudo, a coleta de dados foi feita mediante gravação e transcrição das
falas dos cerca de 95 participantes dos três grupos de agentes comunitários de
saúde das 12 equipes de Saúde da Família do Município, durante a construção e
descrição da árvore. Foi solicitado que falassem livremente sobre o conteúdo e
a forma da oficina. As falas individuais foram analisadas através da análise de
conteúdo(8).
O referencial teórico-metodológico foi constituído pelos pilares nos quais se
assentam a OTC formulada e estruturada pelo Grupo de Pesquisa "Gênero, saúde e
enfermagem, do Departamento de Enfermagem da Escola de Enfermagem da
Universidade de São Paulo, cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do
CNPq. Tais pilares ensejaram as seguintes categorias analíticas: educação
emancipatória, empoderamento, abordagem dialética do movimento da consciência,
participação e responsabilidade compartilhada.
Procedimentos éticos
O estudo integrou o projeto Práticas profissionais e violência contra as
mulheres: um recorte de gênero e classe socialque teve o protocolo de pesquisa
aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da
Universidade de São Paulo (Processo 517/2005/CEP-EEUSP). Foram observados todos
os aspectos éticos envolvidos na pesquisa com seres humanos, da Resolução 196
de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde. Antes do início das
atividades, foi claramente explicitado aos participantes os objetivos e a forma
de coleta. Foi enfatizada a voluntariedade e liberdade na decisão em participar
da pesquisa, de modo que, àqueles que concordaram, foi solicitada a leitura e
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADOS
Iniciando a sessão de avaliação foi feita a retomada das expectativas dos
participantes captadas na primeira sessão. A dinâmica utilizada havia sido a
construção do "Jardim dos Desejos". Os participantes escreviam em folhas de
papel sulfite colorido o que esperavam da Oficina. Posteriormente, as folhas
eram embaralhadas e lidas, antes de serem amassadas e servirem de matéria prima
para a confecção de flores que foram coladas em uma parede, em espaço próprio.
O Jardim foi mantido intacto durante todas as sessões da Oficina. Esta dinâmica
possibilitou conhecer o grupo, posto que o fato das frases serem lidas por
pessoas diferentes das que as escreveram, facilitou o entrosamento. Tal fato
foi percebido pelas brincadeiras, comentários e outras formas de comunicação
verificadas.
As expectativas relacionadas ao conteúdo eram: qualificar-se para ajudar a
clientela a resolver as questões relacionadas à violência de gênero; adquirir
conhecimentos para repassá-los a outras pessoas, clientes ou trabalhadores de
saúde; aprender a cuidar levando em conta as diferenças; melhorar a prática e
incrementar o saber utilizado no cotidiano do trabalho dos Agentes Comunitários
de Saúde; aprender a aplicar o conhecimento adquirido no dia a dia e como
conscientizar as mulheres sobre a violência e maneiras de enfrentá-la; receber
orientações sobre onde, quando e para onde encaminhar mulheres vítimas de
violência e que adquirissem mais segurança para lidar com tais situações no seu
cotidiano.
Com relação à forma, esperavam que a aprendizagem se desse de maneira não
maçante, atrativa e prazerosa gerando reflexões que contribuíssem para a
melhoria do trabalho desenvolvido pelas equipes de saúde; aprender a trabalhar
com dinâmicas facilitadoras, que o ambiente fosse propício à troca de
experiências e que a oficina fosse interessante.
A retomada das expectativas no momento da avaliação final foi crucial para
situar os participantes na historicidade do processo. A seguir, foram retomados
o conteúdo e as estratégias pedagógicas utilizadas no desenvolvimento da
Oficina. Ao final, ressaltou-se que o produto consistia no conhecimento
construído coletivamente e no processo desenvolvido durante as sessões e que,
naquele momento, eram estes os objetos da avaliação. A análise de conteúdo das
falas possibilitou a emergência de categorias empíricas que se configuraram
como expressões da materialidade dos pilares de sustentação da OTC.
A. A OTC como possibilidade de ampliar e repassar o conhecimento
Para vários participantes, a OTC encerra grande possibilidade de aquisição de
conhecimentos que entendem não como sendo exclusivamente seus mas que desejam e
têm o dever de repassá-los a outros trabalhadores e à clientela, em especial,
às mulheres.
A chuva, o adubo e as flores representam os conhecimentos que eu
adquiri e o fruto que é o resultado do que eu consegui hoje aqui e o
que eu vou passar para a frente.
A flor pra mim significa como eu cheguei aqui tentando dar frutos,
mas precisando de alguma coisa. Na oficina eu aprendi muitas coisas
que posso passar pra frente. Agora posso levar o fruto que nasceu
dessa flor.
Eu escolhi a nuvem representando as dúvidas que nós tínhamos no
começo a respeito da violência contra a mulher. (...) o fruto seria o
que nós vamos colher no futuro para estar passando o que nós
aprendemos prá comunidade.
B. A OTC como possibilidade de crescimento e transformação pessoal
Nesta categoria, foram incluídas as falas que se referiam à Oficina como início
de um movimento e, a partir dele, a ampliação do conhecimento e as
possibilidades de transformações pessoais e da prática profissional. As
transformações da natureza foram relacionadas às transformações pessoais
ocorridas durante a Oficina.
Eu escolhi o fruto porque hoje eu sou o fruto, porque, as minhas
expectativas foram totalmente superadas. O que eu queria, eu aprendi,
consegui entender. Então eu escolhi o fruto, porque, ontem à tarde eu
era apenas uma semente, hoje de manhã eu fui flor, hoje já sou fruto.
(palmas)
Eu escolhi a semente, a chuva, o adubo e o sol porque eu acho que
mostra a gente fazendo essa oficina. Nós temos isso aqui
representando: a semente, porque foi plantada alguma coisa boa em
nós, o adubo para que isso não pare por aí, a chuva para a gente
continuar regando e continuar fazendo com que essa oficina cresça
para que o Brasil todo tenha isso. Escolhi o sol também porque sem
ele nada tem vida.
C. A OTC como possibilidade de transformação da prática e de ampliação do
compromisso para com a clientela.
Foi marcante a OTC tida como espaço para desenvolvimento de potencialidades em
direção à transformação da prática, representada pelo adubo, pela flor que
antecede o fruto e assim por diante. Desta forma, amplia-se também o
compromisso para com a clientela.
Eu escolhi o adubo porque acho que não adianta implantar um programa
e não aperfeiçoar. Eu acho que o adubo seria o aperfeiçoamento, isto
que tivemos aqui...
Eu escolhi o adubo porque, assim como a árvore, preciso de adubo para
ser forte, bonita, eu acho que a gente também precisa ter muito
conhecimento para poder ajudar a população e é o que nós tivemos
aqui, muito conhecimento.
Eu peguei a flor porque eu acho também que é uma flor muito bonita e
eu cheguei aqui para adquirir conhecimentos e poder estar lidando na
comunidade.
Além de possibilitar a transformação da prática, na visão de alguns
participantes, a OTC pode reforçar o seu compromisso com a população, pois se
trata de um espaço que propiciou mudança da visão de mundo deles em relação ao
problema da violência contra as mulheres. Algumas falas, carregadas de emoção e
idealizando a visão de mulher podem ser interpretadas como forma de
potencializar a possibilidade de mudança propiciada por um trabalho
diferenciado na área da saúde.
Eu escolhi a flor porque ela é muito delicada e a mulher tem que ser
tratada assim com delicadeza (risos e palmas) (...) eu aprendi
bastante a ver tudo de um jeito diferente, até as mulheres que a
gente atende.
Bom, eu escolhi a flor. Eu aprendi que independente da situação que a
mulher está vivendo, seja ela mesmo de violência sexual, a gente tem
que passar para ela o lugar ao sol. Tudo pode mudar e elas têm que
acreditar. Eu acredito!
D. A OTC como forma diferente de aprender
Os participantes foram unânimes em afirmar que a modalidade de Oficina
propiciou um ambiente de aprendizagem alegre, descontraído, agregador, além de
fértil.
A flor por ser de duas cores bem alegres, foi o que a gente esperava
da oficina, foi bem descontraída, não maçante ...
Já participei de muitos cursos, é sempre quase a mesma coisa, mas
aqui encontrei coisas diferentes (...) folhas simbolizando as
parcerias.
Fazia muito tempo que eu não participava de um curso assim. O pessoal
fala, fala, fala e nada. Aqui não, a gente falou, brincou, conheci
pessoas que eu não conhecia, revi quem eu conhecia e foi muito bom.
E. A OTC como esperança de mudar a própria situação, como forma de
empoderamento
A oficina revelou-se como espaço de enfrentamento e superação, em outras
palavras, de empoderamento. Os depoimentos a seguir, repletos de emoção,
retratam o desafio que as mulheres enfrentam ao lidar com a violência tanto
como mulheres quanto como profissionais.
Eu escolhi o trovão porque eu acho a violência um trovão na vida de
uma mulher, na minha é. É um desastre e o raio está junto aqui. Tem
também a nuvem porque a mulher às vezes, fica vedada quando ela sofre
uma violência, ela não consegue encontrar saída, não consegue ver
nada. Esta nuvem é aquela nuvem negra, não aquela nuvem azul bonita.
Mas, em contrapartida a gente tem que ter sempre esperança e esta
Oficina me deu esperança de continuar.
Escolhi a minhoca porque sem ela a terra não vai sobreviver, se não
tiver oxigenação. E quem leva essa oxigenação para terra são as
minhocas. Eu saio dessa Oficina oxigenada...
É a flor, porque apesar de toda a violência, mulher é mulher e é flor
e esta oficina provou isso. Porque apesar de tudo, todo mundo
consegue sempre voltar e ser inteiro. Pode demorar, pode ser doído
mas, querendo, a gente consegue ser flor novamente. Acho muito
importante que a gente passe isso para todos: para a comunidade, para
nossas crianças, que daqui pra frente isto seja um ponto de
referência para todos nós. Foi maravilhoso... (choro e palmas)
Essa vivência me fez ver e eu sinto que estou saindo daqui como um
sol, com a esperança de que apesar das tempestades, dos altos e
baixos a gente tem que ter uma perspectiva de melhora, de luz. Se a
gente se imbuir de estar se melhorando, tudo vai melhorar. (...) Acho
que a gente pode tentar modificar tudo para melhor, para se sentir
mais segura, mais firme com propósitos melhores, de ser feliz, que é
o propósito do ser humano. Porque nós temos a obrigação de ser feliz!
(choro e palmas)
F. A OTC sob o olhar da equipe coordenadora
Seguindo-se à avaliação dos participantes, a equipe coordenadora também
registrou suas impressões sobre a Oficina. Os maiores destaques foram as
possibilidades de aprendizagem e a troca de conhecimentos e experiências. A
mobilização e integração da equipe foram tamanhas que até mesmo o trabalhador
de apoio técnico que, ao mesmo tempo era o motorista a serviço das docentes,
espontaneamente, emitiu sua avaliação. Cabe ressaltar que ele esteve
voluntariamente presente a toda a oficina, envolvendo-se nas atividades mesmo
sem participar diretamente delas.
Eu vou por aqui essa flor, essa flor amarela, pelo carinho que tive
aqui e por tudo isso que vocês ensinaram prá mim aqui. Estou sem
palavras porque tenho muitas palavras para falar. Muito obrigado...
(palmas)
As docentes também fizeram suas falas, pontuando a satisfação do trabalho
realizado e o conhecimento adquirido e compartilhado.
Eu escolho toda essa árvore, a árvore do conhecimento, que é o
conhecimento que eu adquiri com vocês todos, (...) aprendi muito e é
com cada um de vocês que a gente aprende. (palmas)
Aprendi muito e gosto muito disso porque é uma delícia ser um eterno
aprendiz. Eu vou abolir da música aquela parte que fala da "dor de
ser um eterno aprendiz" e vou ficar só com a delícia de ser um eterno
aprendiz. Eu não vou colocar nada na árvore, eu vou fazer uma foto e
vou levar a árvore comigo. Eu vou levar a imagem dela porque recordar
é viver e eu quero reviver muitas vezes estes momentos que passamos
aqui juntos. Assim eu levo vocês comigo, porque cada vez que eu olhar
pra árvore, eu vou me lembrar de vocês e vai ser bem gostoso outra
vez. Obrigada por tudo. (palmas)
DISCUSSÃO
A análise das categorias, de uma maneira geral, revelou que os pilares de
sustentação da OTC estiveram presentes e foram reconhecidos pelos
participantes. Os princípios da educação crítico-emancipatória(4) puderam ser
detectados quando foram explicitadas as potencialidades do método especialmente
como possibilidade de ampliação dos próprios conhecimentos, transformação dos
sujeitos e das práticas, de maneira que possam ser reconhecidos como efetivos
transformadores da realidade, imbuídos de politicidade e com potência para agir
de maneira a auxiliar as mulheres a resolverem suas questões relacionadas à
violência de gênero. A perspectiva educativa da Oficina evidenciou-se
fortemente quando os participantes revelaram que suas próprias experiências
favoreceram a reflexão e a ampliação dos conhecimentos, por meio de uma forma
diferente de aprender.
Sabe-se que o conhecimento se dá por sucessivas aproximações e reflexões sobre
a realidade. Pode ser definido como "o esforço do 'espírito' para
compreender a realidade objetiva, dando-lhe um sentido, uma significação,
mediante o estabelecimento de nexos aptos a satisfazerem as exigências
intrínsecas de sua subjetividade"(9), não podendo existir fora da sociedade que
produz tais consciências.
Assim, se o ato de conhecer se respalda na prática social, o sujeito deste
conhecimento, produto destas relações sociais, não é um indivíduo isolado, mas
um sujeito social. A Oficina com a troca de experiências e conhecimentos
constitui um elemento privilegiado para ampliação do conhecimento, tanto quanto
para a sua transmissão.
A função social da educação é a transmissão desses conhecimentos para que o
educando possa interagir na sociedade, instrumentalizando-se para transformá-
la. Neste sentido, não basta ao ser humano criar o conhecimento, mas transmiti-
lo no processo de reprodução social.
O ato de produzir conhecimento não é obra de uma consciência
singular, mas uma das formas de prática social, prática que tem como
sujeito os homens articulados entre si por relações sociais. Esta
concepção de conhecimento, como processo de produção social e de um
sujeito coletivo, demarca e orienta a tarefa no campo da aprendizagem
(10).
A aprendizagem se dá num movimento dialético entre o ser humano e a realidade
objetiva que é objetiva por existir fora da consciência humana. Neste processo
ele capta, transforma e devolve à realidade o conhecimento, agora sob sua ação,
modificando os elementos que o rodeiam. O processo é contínuo e dinâmico, com
duplo sentido de direção, o educando se transforma e transforma a realidade da
qual participa. Neste sentido, a educação só se dá como prática transformadora
quando se pauta em conhecimentos que ampliam a visão sobre a realidade que não
é alguma coisa isolada do ser humano, mas o conjunto das relações sociais no
qual ele vive e atua, conforme um dos pressupostos de condução da OTC. Produzir
o conhecimento
é um ato político (...): enseja a explicitação dos desejos e das
vontades, canalizados para a construção da cidadania solidária e
digna. Não há cidadania e dignidade na produção de conhecimento
(...), sem o correspondente valor de solidariedade, autonomia,
emancipação e liberdade: não do ser individual, mas do ser que
coletiva e socialmente produz a vida...(11)
O empoderamento, advindo da educação crítico-emancipatória, esteve presente
quando as pessoas referiram-se ao conhecimento adquirido como forma de
transformação de si, de sua prática e da sua visão de mundo acerca da violência
contra as mulheres. Da mesma maneira, esperavam qualificar-se para ajudá-las e
ajudarem-se a ter uma vida melhor e mais digna. Tal empoderamento está
diretamente relacionado ao desenvolvimento de programas que promovam nas
comunidades uma consciência crítica sobre sua realidade vivida(12).
O pilar de sustentação referente às emoções como construtoras do conhecimento
também pode ser verificado não só por meio das falas como das emoções, em
especial o riso, a raiva, a dor e os aplausos que as acompanhavam. Tal pilar
pode ser detectado durante as sessões, de igual maneira, mas apareceu
claramente explicitado na avaliação inclusive quando a Oficina foi tida como um
espaço onde as pessoas sentiram-se bem, acolhidas, confortadas e até mesmo
cuidadas. A palavra emoção vem do latim emovere, onde o 'e- (variante de
ex-)significa'fora'e movere significa'movimento', ou seja, a emoção
é a única expressão externa do que se sente internamente. Embora pareçam
sinônimos, emoção e sentimento possuem distinções conceituais. Enquanto a
emoção é a expressão externa de um movimento interno e a única que tem
prerrogativa de ocorrer inconscientemente, o sentimento é a experiência
subjetiva da emoção. Enquanto a emoção pode se manifestar independente de
qualquer ação alheia ou sua própria, o sentimento prevê sensação, possível em
decorrência de um estímulo. Por isso, não seria errôneo afirmar que o
sentimento pode ocorrer como uma conseqüência da emoção, sendo, portanto, dela
derivado(13). Cabe salientar que
aquilo que identificamos como emoção é uma abstração conceitual de um
complexo processo de atividade humana que também envolve o agir, o
sentir e o avaliar. O modo proposto de construção teórica demonstra a
necessidade simultânea e a interdependência de faculdades que nossa
cultura abstraiu e separou umas das outras: emoção e razão, avaliação
e percepção, observação e ação. O modelo de conhecimento sugerido é
anti-hierárquico e antifundamentalista e pode ser adequadamente
simbolizado pela radical metáfora feminista de espiral ascendente. As
emoções não são mais básicas que a observação, a razão ou a ação para
a construção da teoria, mas também não são menos importantes. Cada
uma dessas faculdades reflete um aspecto do conhecimento humano,
inseparável dos outros. Assim, (...) o desenvolvimento de cada uma
dessas faculdades é uma condição necessária para o desenvolvimento de
todas(6).
A abordagem dialética do movimento da consciência ficou evidente quando foi
avaliado positivamente o uso da dramatização como estratégia para a reflexão
sobre a prática e as possibilidades de transformação da realidade no âmbito da
ESF. O fato de terem sido utilizados casos conhecidos favoreceu a ampliação da
análise e das possibilidades de intervenção para além da escuta e dos
encaminhamentos até então realizados. A dialética é
a grande ideia fundamental segundo a qual o mundo não deve ser
considerado como um complexo de coisas acabadas, mas como um complexo
de processos em que as coisas, na aparência estáveis, do mesmo modo
que os seus reflexos intelectuais no nosso cérebro, as ideias, passam
por uma mudança ininterrupta de devir e decadência em que,
finalmente, apesar de todos os insucessos aparentes e retrocessos
momentâneos, um desenvolvimento progressivo acaba por se fazer hoje
(14).
Assim a OTC, construída num ir e vir, da realidade à abstração, possibilitou
transformações pessoais, tanto nos participantes como na equipe coordenadora,
confirmando que ao transformar o mundo, o ser humano transforma-se a si mesmo
(15). A participação e a responsabilidade compartilhada foram detectadas por
meio de falas referentes ao ambiente em que se deram os trabalhos e na
representação dos participantes acerca do espaço. Foram enfáticos ao pontuar as
relações cordiais, a possibilidade de sentirem-se presentes, explicitando
inclusive diferenças entre este método e estratégias pedagógicas anteriormente
vivenciadas.
Esta e outras experiências anteriores de Oficinas de Trabalho conduzidas por
nós mostraram que a grande diferença entre as oficinas e outras práticas
educativas é a não superficialidade do trabalho, o aprofundamento de questões
ligadas à realidade, o convite para conhecer a si mesmo, além de possibilitar o
encadeamento de novos trabalhos que visem ao crescimento individual e coletivo
(16-17).
Outro dado interessante que diz respeito à participação e responsabilidade
compartilhada, foi que a partir do vínculo estabelecido entre os participantes
e o consequente respeito pelas opiniões e posicionamentos apresentados, pode-se
observar uma mudança de comportamento do grupo em relação ao compromisso com o
coletivo. Neste caso específico, tratando-se de um tema bastante complexo como
é o da violência contra as mulheres, o grupo inclusive acolheu e mostrou-se
solidário às mulheres do próprio grupo que revelaram vivenciar o problema.
Refletindo sobre ele coletivamente, as mulheres Agentes Comunitárias de Saúde
puderam, ao mesmo tempo em que se instrumentalizavam para atender a clientela,
refletir sobre a própria vida, vislumbrando e fortalecendo estratégias de
enfrentamento.
A violência contra a mulher pode ser explicada como um fenômeno que
se constitui a partir da naturalização da desigualdade entre os
sexos, que se assenta nas categorias hierárquicas, historicamente
construídas, como um dos mecanismos ideológicos capaz de legitimar o
status quo, entre os quais se encontram as classificações sociais e,
aqui, a classificação baseada nas diferenças entre os sexos. Essa
classificação permite a sujeição das mulheres nas relações de gênero,
desqualificando-as como insuperavelmente inferiores, porque
biologicamente diferentes(18).
Assim, para se fortalecer e encontrar estratégias de enfrentamento, é
imprescindível que as mulheres desenvolvam sua autonomia, consequência direta
do empoderamento. "Por autonomia entende-se a capacidade e as condições
concretas que permitem às mulheres tomar livremente as decisões que afetam as
suas vidas e o poder de agir segundo tais decisões."(18)
Na medida em que a OTC propicia a ampliação da consciência de homens e mulheres
sobre o dito, mostra-se como uma possibilidade de libertar as mulheres do
cárcere da violência. Sim, porque, autonomia, do ponto de vista da filosofia,
"conduz o pensamento à ideia de liberdade, da propriedade pela qual o ser
humano pretende poder escolher as leis que regem sua conduta, ou seja, dá
possibilidade e capacidade de livre decisão dos indivíduos e grupos sobre suas
próprias ações na vida."(19)
CONCLUSÃO
A experiência da utilização da árvore do conhecimento para avaliar a OTC
mostrou-se compatível com a necessidade de conhecer suas potencialidades, com
base nos pilares teóricos definidos da educação crítico-emancipatória, as
emoções como construtoras do conhecimento e a participação. Destes, decorrem
outros, não menos importantes como o empoderamento e a responsabilidade
compartilhada.
Além de ressaltar tais pressupostos, as falas dos participantes referiram-se às
relações interpessoais construídas e fortalecidas durante a OTC, conferindo-lhe
um estatuto de prática educativa associada à arte de criar o conhecimento. Isto
se revela na dimensão estética da Enfermagem, pois que advém do preparo
cuidadoso, meticuloso, de uma relação de amor entre o artista e sua obra.
Quando a vê realizada, processa-se nele algo que vai muito além da razão
confirmando que "a Enfermagem é uma arte; e para realizá-la como arte, requer
uma devoção tão exclusiva, um preparo tão rigoroso, quanto a obra de qualquer
pintor ou escultor; pois o que é tratar da tela morta ou do frio mármore
comparado ao tratar do corpo vivo (...)? É uma das artes; poder-se-ia dizer, a
mais bela das artes!"(20)