Qualidade de vida no trabalho e burnout em trabalhadores de enfermagem de
Unidade de Terapia Intensiva
INTRODUÇAO
A difusão do conceito de Qualidade de Vida no Trabalho (QVT) foi desencadeada,
na última década, pela revisão dos vínculos e da estrutura das vidas pessoal e
profissional, pelos fatores socioeconômicos, pelas metas empresariais e
pressões organizacionais. O conceito de QVT encerra escolhas de bem-estar e
percepção do que pode ser feito para atender expectativas de gestores e
trabalhadores(1).
A nal e sugerido a associação da mesma com melhor qualidade de vida(6), menor
índice de estresse ocupacional, ansiedade e depressão(5,7), com o senso de
coerência(5) e menor prevalência de sintomas da Síndrome de Burnout(8-9).
Atualmente, a Síndrome de Burnout é um dos desdobramentos mais importantes do
estresse ocupacional e pode ser causada pelo estresse prolongado e crônico
cujas situações de enfrentamento não foram utilizadas, falharam ou não foram
suficientes. A Síndrome de Burnout é caracterizada por três diferentes
componentes: exaustão emocional, despersonalização e ausência de realização
profissional, que afeta, sobretudo, indivíduos que trabalham com pessoas, ou
seja, serviços onde os trabalhadores desenvolvem durante um tempo considerável
uma interação com os clientes, como por exemplo, os serviços de saúde, sociais,
da justiça e da educação(10).
A dimensão da exaustão emocional (EE) representa o componente básico individual
do estresse no burnout. Ela refere-se às sensações de estar além dos limites e
exaurido de recursos físicos e emocionais. Os trabalhadores sentem-se
fatigados, esgotados, sem qualquer fonte de reposição. Eles carecem de energia
suficiente para enfrentar mais um dia, ou outro problema. As principais fontes
dessa exaustão são a sobrecarga de trabalho e o conflito pessoal no trabalho
(11).
A despersonalização (DP) representa o componente do contexto interpessoal no
burnout. Ela refere-se à reação negativa, insensível ou excessivamente
desligada dos diversos aspectos do trabalho. Ela geralmente se desenvolve em
resposta à sobrecarga de exaustão emocional, sendo primeiramente autoprotetora.
Os trabalhadores que se queixam de sobrecarga de trabalho, tendem a se retrair,
cortar ou reduzir o que estão fazendo. Mas o risco é de que o desligamento
possa resultar na perda do idealismo e na desumanização dos outros. Com o
tempo, os indivíduos não estão simplesmente criando um amortecedor ou
autoprotetor, mas também desenvolvendo uma reação negativa às pessoas e ao seu
trabalho e à medida que a despersonalização vai se desenvolvendo, as pessoas
deixam de tentar fazer o melhor, passando a fazer o mínimo necessário(11).
A ausência de realização profissional (RP) representa o componente de
autoavaliação no burnout. Ela refere-se a sensações de incompetência e uma
falta de realização e produtividade no trabalho. Essa menor sensação de
autoeficácia é acentuada por uma falta de recursos no trabalho, bem como uma
falta de apoio social e de oportunidades de desenvolvimento profissional(11).
Referente à enfermagem de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), o estresse e a
insatisfação profissional estão presentes no seu cotidiano, resultante de
inúmeros fatores relacionados ao tipo de ambiente, duração da jornada de
trabalho, complexidade das relações humanas e de trabalho, autonomia
profissional, grau elevado de exigência quanto às competências e habilidades,
alta responsabilidade, planejamento adequado de recursos humanos e materiais,
entre outros(12), o que aponta para a grande importância de realização de
estudos direcionados a esse grupo de trabalhadores. Ao se considerar esses
aspectos, desenvolvemos o presente estudo que teve por objetivos avaliar a QVT
e a presença da Síndrome de Burnout entre profissionais de enfermagem de
Unidade de Terapia Intensiva.
MÉTODO
Estudo descritivo e correlacional, de corte transversal, realizado na Unidade
de Terapia Intensiva (UTI) de um hospital escola do interior do estado do
Paraná, Brasil, após obtenção de parecer favorável do Comitê de Bioética e
Ética em Pesquisa da instituição onde o estudo foi realizado, Parecer nº 064/
09, de acordo com as orientações da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de
Saúde/MS.
A população do estudo foi composta por 53 trabalhadores de enfermagem
(enfermeiros, técnicos, auxiliares de enfermagem) que concordaram em participar
do estudo, assinando o termo de consentimento livre e esclarecido e retornando
o instrumento de coleta de dados preenchido para as pesquisadoras.
O instrumento de coleta de dados foi composto por duas partes, a primeira
relacionada à caracterização dos trabalhadores, contendo dados
sociodemográficos (idade, sexo, situação conjugal, escolaridade, entre outros)
e ocupacionais (categoria profissional; carga horária de trabalho semanal;
tempo de trabalho na UTI; duplo vínculo; opção pelo local de atuação). Esse
instrumento foi submetido à validade de face e de conteúdo por um comitê de
três enfermeiros especialistas na temática saúde do trabalhador. A segunda
parte do instrumento continha uma Escala Visual Analógica (EVA) de zero a dez,
com uma questão global para QVT e a versão validada e adaptada para a língua
portuguesa do Maslach Burnout Inventory - Human Service Survey (MBI-HSS)(13).
A EVA foi escolhida, pois se mostrou satisfatória em estudo prévio sobre QVT
entre trabalhadores de enfermagem(5). Trata-se de um instrumento unidimensional
que se utiliza do julgamento visual do indivíduo numa dimensão padronizada -
uma linha horizontal com dez centímetros de comprimento, em cuja extremidade
esquerda tem-se a classificação "pior" e na outra extremidade a classificação
"melhor possível"(14). O conceito de QVT foi apresentado aos profissionais de
enfermagem que participaram do estudo para que todos respondessem à questão sob
o mesmo ponto de vista, minimizando vieses de interpretação. A QVT foi definida
como sendo a satisfação com autonomia, status profissional, requisitos do
trabalho, normas organizacionais e remuneração5. Mediu-se posteriormente a
distância entre o início da linha (zero) e o local assinalado, obtendo-se,
assim, um valor numérico que correspondeu ao escore de QVT. Este valor foi
transformado posteriormente em milímetros, obtendo-se um intervalo possível
para a escala de zero a 100, ou seja, quanto maior o valor, maior a satisfação
profissional com os aspectos do trabalho avaliados.
O MBI, utilizado para medida da Síndrome de Burnout, contém 22 itens; nove na
dimensão Exaustão Emocional (EE), itens 1, 2, 3, 6, 8, 13, 14, 16 e 20; cinco
na dimensão Despersonalização (DP), itens 5, 10, 11, 15 e 22 e oito na dimensão
Realização Profissional (RP), itens 4, 7, 9, 12, 17, 18, 19 e 21.
Os itens são distribuídos em uma escala do tipo Likert de cinco pontos,
variando de zero (nunca) a quatro (diariamente)(13).
A pontuação de cada subescala é considerada separadamente e não são combinadas
em uma pontuação total. Portanto, um alto grau de burnout é resultado de alta
pontuação nas dimensões EE e DP e baixa pontuação na dimensão RP(10).
Neste estudo, optou-se por utilizar os escores contínuos para as três dimensões
que compõem o MBI, pois se julgou que esta análise seria eficaz para a
compreensão inicial dos dados coletados.
A coleta de dados foi realizada por meio dos questionários, entregues em mãos
aos potenciais participantes, nos meses de abril a agosto de 2009, sendo que os
instrumentos preenchidos retornaram às pesquisadoras no prazo estabelecido de
dez dias após a entrega. Os dados coletados foram processados e analisados no
programa Statistical Package for the Social Science (SPSS) version 15.0 for
Windows. Foram realizadas análises descritivas para todas as variáveis, sendo
que as variáveis categóricas foram submetidas à análise de frequência simples,
enquanto as contínuas foram analisadas segundo as medidas de tendência central
e dispersão. Para verificarmos possíveis associações da QVT, Burnout e as
demais variáveis, utilizou-se o teste Mann Whitney e Kruskal Wallis e o
coeficiente de Correlação de Spearman.
Quanto ao manuseio dos dados perdidos (missing data) seguiu-se o critério que
estabelece que só devam ser excluídos da amostra aqueles participantes que
tiveram 20% ou mais de itens não respondidos em uma dada escala(15). Diante
deste critério foram excluídos da análise da Síndrome de Burnout os
profissionais que deixaram de responder três ou mais itens das dimensões EE e
RP, e dois ou mais itens da dimensão DP. Os participantes que não atingiram o
número máximo de dados sem resposta, tiveram seus dados perdidos substituídos
pela média das suas respostas aos demais itens da subescala.
Para classificação da força de correlação entre as variáveis, consideraram-se
os valores menores de 0,3, de pouco valor para a prática, mesmo que
estatisticamente significantes; entre 0,3 e 0,5, correlação de moderada
magnitude; e acima de 0,5, de forte magnitude(16). O nível de significância
adotado foi menor ou igual a 0,05.
RESULTADOS
Os trabalhadores que participaram do estudo eram predominantemente do sexo
feminino (66,0%), com idade média de 42,4 (D.P.=7,1) anos. Quanto à situação
conjugal, 36 (67,9%) eram casados, nove (17,0%) solteiros e seis (11,3%)
separados. Dois (3,8%) participantes não responderam essa questão. Quanto à
escolaridade dos trabalhadores: três (5,7%) possuíam ensino fundamental
completo, 27 (51,0%) tinham o ensino médio completo, nove (17,0%) possuíam
curso superior, 11 (20,8%) possuíam curso de especialização, dois (3,8%) haviam
concluído curso de mestrado e um (1,9%) participante não informou sua
escolaridade.
Com relação às categorias profissionais, a de maior frequência foi a dos
auxiliares de enfermagem (n=28; 52,8%), seguida pela categoria de técnico de
enfermagem (n=16; 30,2%) e enfermeiro (n=9; 17,0%), cujo tempo médio de atuação
em UTI foi de 13,2 (D.P.=7,6) anos. Dos 53 participantes, 20 (37,7%) possuíam
duplo vínculo empregatício, enquanto a maioria (71,7%) recebia até seis
salários mínimos.
A avaliação da Qualidade de Vida no Trabalho (QVT) foi realizada por meio da
aplicação da Escala Visual Analógica (EVA). Considerando que o intervalo
possível da EVA variou de 0 a 100 e que maiores valores indicam melhor
percepção quanto à QVT, obteve-se média de 71,1 (D.P.=15,5) e mediana 73 para
os 49 profissionais de enfermagem que responderam a essa questão, significando
uma avaliação satisfatória para a QVT.
No entanto, a medida de QVT não obteve diferença estatisticamente significante
com as variáveis sociodemográficas avaliadas, embora os participantes do sexo
feminino, com maior idade e casados tenham apresentado maior média para a QVT
quando comparado aos demais trabalhadores. Com relação às variáveis
profissionais, também não se observou diferença estatisticamente significante
entre elas e a medida de QVT. Porém, nos chamou atenção a avaliação da variável
QVT quando se considerou se foi respeitada a opção dos trabalhadores quanto ao
local de atuação, e apesar de não ser constatada diferença estatisticamente
significante entre os grupos, observou-se que os indivíduos que optaram por
atuar na UTI obtiveram maior média para a medida de QVT (M=71,4; D.P.=15,9)
quando comparados aos que não tiveram essa opção (M=57,3; D.P.=16,2).
Quanto ao manuseio dos dados perdidos do MBI, três participantes foram
excluídos da análise da dimensão EE; um foi excluído da análise da dimensão DP
e dois da análise da dimensão RP.
Concernente aos resultados das medidas das dimensões EE, DP e RP obtidas por
meio da aplicação do MBI, a Tabela_1 apresenta a estatística descritiva e a
consistência interna das respectivas dimensões.
Ao analisarmos a média para as dimensões do MBI e seus respectivos intervalos
possíveis, observamos que não houve valores elevados para as dimensões EE e DP
e baixos para a dimensão RP, indicando um grupo sem risco para a Síndrome de
Burnout. Quanto à avaliação da consistência interna do instrumento, avaliada
pelo alfa de Cronbach, constatou-se que somente a dimensão DP obteve valor
abaixo de 0,70, considerado como aceitável para essa avaliação.
Na realização da análise univariada, observou-se que somente a dimensão EE
obteve resultado estatisticamente significante com a medida de QVT (p=0,000),
ou seja, o resultado demonstrou que os profissionais classificados na categoria
de alta exaustão emocional, obtiveram menor escore para a medida de QVT quando
comparados aos demais trabalhadores, média de 59,6 (DP=11,2). Ressalta-se
ainda, que a medida de QVT obteve correlação significativa, inversa e de forte
magnitude com a dimensão EE, do MBI (r=-0,68; p=0,01), o que significa que
quanto maior a QVT, por exemplo, menor a exaustão emocional percebida pelos
trabalhadores.
A Tabela_2 apresenta a associação da dimensão EE do MBI com as variáveis
profissionais dos trabalhadores de enfermagem de UTI.
![](/img/revistas/reben/v66n1/a02tab02.jpg)
Segundo os resultados apresentados na Tabela_2 destaca-se que, apesar de não
haver diferença estatisticamente significante entre EE e as variáveis
analisadas (p>0,05), os profissionais com menor salário e que não optaram pelo
local de atuação obtiveram maior média para essa dimensão quando comparados aos
demais trabalhadores, o que significa que os mesmos teriam maior exaustão
emocional do que os demais profissionais.
DISCUSSÃO
Concernente à caracterização sociodemográfica, encontrou-se uma população
predominantemente feminina e de adultos jovens, o que foi demonstrado em estudo
recente sobre QVT, estresse e senso de coerência(5) entre trabalhadores de
enfermagem.
Assim como em outros estudos prévios que analisaram a QVT(5) e o Burnout(13,19-
20), não encontramos resultado estatisticamente significante entre as variáveis
sociodemográficas, QVT e as dimensões do MBI, demonstrando novamente a
necessidade de novos estudos com delineamentos distintos sobre estas temáticas.
A avaliação da QVT revelou uma população com alta satisfação no trabalho, no
entanto, compreende-se que os elementos das unidades de tratamento intensivo,
tais como, o contato contínuo com o sofrimento e morte, uso abundante de
tecnologias sofisticadas e a complexidade do cuidado, entre outros, pode levar
a insatisfação e comprometer a QVT desses profissionais, caso não exista ações
gerenciais que contribuam para a manutenção deste nível de satisfação entre os
trabalhadores.
Estudos prévios apresentaram resultado divergente do nosso, cujos trabalhadores
de enfermagem não apresentaram médias elevadas para a QVT e satisfação laboral
(5,17-18). Consideramos que as diferenças encontradas entre os estudos se
justificam, pois se trata de um construto subjetivo, cuja avaliação pode se
alterar ao longo do tempo e de acordo com o processo de trabalho de cada
instituição.
Em nosso estudo, apesar de não haver resultado estatisticamente significante
entre a variável opção pelo local de atuação e a QVT, ressalta-se que a medida
de QVT também foi superior no grupo cuja opção pelo setor de atuação foi
respeitada, confirmando que esta variável é um fator importante para a
satisfação profissional, como já havia sido apontado em estudo recente(5).
Quanto à avaliação do burnout, nosso resultado demonstrou que os participantes
não apresentaram risco de manifestação dessa doença, porém constatou-se uma
relação inversa e de forte magnitude entre QVT e a dimensão exaustão emocional
(r=-0,68), corroborando o que já havia sido apontado em outra pesquisa, cujo
resultado revelou que a alta exposição ao estresse ocupacional diminui a QVT de
profissionais de enfermagem(5). Outro estudo(9) também aponta uma correlação
negativa entre satisfação no trabalho e burnout (r=-0,57). Estes aspectos
acentuam a necessidade de implantação de programas que visem à melhoria da QVT,
o que contribuiria para a redução dos riscos de doenças ocupacionais,
beneficiando trabalhadores e instituições.
As médias encontradas neste estudo para as três dimensões do MBI foram
similares às encontradas nos estudos entre farmacêuticos(9) e enfermeiros(19-
20), ou seja, os trabalhadores estudados apresentaram baixa exaustão emocional,
baixa despersonalização e escore elevado para realização profissional, não
apresentando risco para a doença.
Finalizando, cabe salientar que os temas abordados são extremamente amplos,
podendo ser objeto de estudo de futuras investigações que visem aprofundar o
conhecimento sobre o trabalho da enfermagem nas diversas áreas de atuação, a
fim de apontar alternativas que possibilitem uma prática profissional
minimamente desgastante, além de contribuir para a satisfação profissional e
melhoria da QVT.