Mulheres soropositivas para o HIV e seus companheiros frente à decisão pela
gestação
INTRODUÇÃO
A epidemia da AIDS surgiu no Brasil na década de 1980 e, apesar de ter
surpreendido a sociedade pode-se dizer que foi este país que agiu mais
rapidamente, em comparação aos países atingidos, na redução da transmissão e
dos agravos da doença(1).
Segundo dados do Boletim Epidemiológico DST/AIDS, a situação desta epidemia é
considerada estável, mesmo que o percentual de notificações da doença permaneça
elevado nas regiões Sudeste (60%) e Sul (18,9%). Na região Sul, a incidência da
AIDS aumentou de 26,3% para 28,3% no período de 2000 a 2006, tendo maior índice
de infecção no ano de 2002(2).
Ao se analisar a distribuição do HIV/AIDS segundo sexo e idade, no Brasil, a
razão de homens infectados para cada mulher infectada que, em 1983, era de 40
homens, hoje passa a ser de 1,3(2), fenômeno denominado processo de feminização
da AIDS(1,3).
Em relação ao modo de contágio, para indivíduos com até 13 anos de idade é a
transmissão vertical; para os com mais de 13 anos, é a relação heterossexual,
para as mulheres, e a relação heterossexual seguida da homossexual para os
homens(2).
No recorte por sexo e faixa etária, o maior número de mulheres infectadas está
na faixa de 20 a 49 anos(2).Tal fato tem contribuído para a transmissão
vertical, considerada como umas das consequências mais dramática do
envolvimento da mulher na epidemia(3).
Essa alta incidência entre as mulheres está relacionada a fatores biológicos,
culturais e socioeconômicos. Além disso, elas "têm pouco ou nenhum controle
quanto às decisões relativas a quando e sob quais condições ter relação sexual,
ao uso do condom pelo parceiro e, menos ainda, das condutas sexuais dele"(4).
Nesse contexto, observa-se na literatura e no Programa de Prevenção ao HIV/AIDS
a ênfase às formas de prevenção, uso de preservativo, sem considerar a situação
destacada anteriormente nem, tampouco, abordar satisfatoriamente questões
relacionadas às medidas específicas de anticoncepção(3). Esse fenômeno,
portanto, parece indicar que os serviços de saúde e a produção científica sobre
a temática ainda não consideram que a contaminação pelo HIV e a gravidez podem
ocorrer na mesma relação sexual, o que aponta a necessidade de se lançar um
olhar especial sobre esse campo.
Pesquisa realizada em São Paulo com objetivo de estudar a sexualidade e a saúde
reprodutiva das mulheres HIV positivas evidenciou que mulheres soropositivas
para HIV, principalmente as mais jovens, desejam ter filhos, mesmo cientes do
risco da contaminação vertical e/ou do seu companheiro; que houve falta de
informação em relação ao melhor método contraceptivo a ser utilizado; e que a
maioria delas gostaria de discutir questões sobre sexualidade com seus médicos
clínicos em função do vínculo já estabelecido(5). Outra pesquisa realizada em
São Paulo identificou forte desejo pela maternidade entre as mulheres
soropositivas(3).
Esse desejo provavelmente se refere ao reconhecimento de que maternidade e
paternidade são momentos importantes na vida do homem e da mulher e que podem
lhes propiciar integração social e desenvolvimento da personalidade. Isto
porque o viver em família permite entender o significado da herança cultural e
dos valores da sociedade, e um filho pode dar continuidade à existência dos
pais, propiciar novos significados à vida do casal, principalmente aos que
vivem em situação de contaminação pelo HIV/AIDS(6-7).
É fundamental, portanto, que homens e mulheres com HIV/AIDS possam exercer seus
desejos e direitos sexuais e reprodutivos. Porém, cabe aos serviços e
profissionais da saúde discutir com os casais como fazer isso. Para tal,
aponta-se necessidade de incorporar ações para apoiar os casais
sorodiscordantes ou soroconcordantes para o HIV, com base na Política de
Planejamento Familiar desenvolvida pelo Ministério da Saúde, estimulando-os a
praticar sexo seguro, a enfrentar os conflitos de querer ter filhos e a fazer
escolhas consentidas e informadas(5,8).
Nesse sentido, é preciso que os profissionais da saúde compreendam os reais
motivos que levam homens e mulheres a optarem por ter filhos, pois, mesmo que
haja um efetivo programa de prevenção da transmissão vertical, ainda não se tem
dado suficiente aporte aos casais soropositivos para tomada de decisões
conscientes(5).
Frente a tal contexto, o objetivo desta pesquisa é investigar os motivos que
levam mulheres soropositivas para o HIV e seus companheiros a decidirem
engravidar, tendo em vista o risco da transmissão vertical e da contaminação ou
reinfecção do parceiro.
METODOLOGIA
O estudo foi exploratório-descritivo, com abordagem qualitativa, e buscou
explorar e conhecer melhor o fenômeno(9) da decisão pela gestação de casais
soropositivos para o HIV.
A pesquisa foi realizada com mulheres do Serviço de Atendimento Especializado
em Doenças Sexualmente Transmissíveis - DST/AIDS da Secretaria Municipal de
Saúde de Porto Alegre. Os critérios para participar da pesquisa foram: ser
gestante, ter dezoito anos completos e saber do diagnóstico do HIV antes de
engravidar.
Nesse serviço, no período de coleta (fevereiro a abril de 2010), o número de
gestantes em acompanhamento era 36 e, destas, apenas 15 atendiam aos critérios
de inclusão estabelecidos. Participaram dessa pesquisa seis mulheres que
integravam o grupo semanal de gestantes. Não foi possível incluir outras
gestantes, pois, no período da coleta, em algumas ocasiões não houve reunião
com o grupo de gestantes, impossibilitando o acesso às mesmas.
Para coleta de informações utilizou-se questionário semiestruturado,
contemplando dados de identificação da mulher e de seu companheiro, questões
dos motivos pela decisão em gestar e das percepções da mulher em relação a si e
ao seu companheiro frente à gestação e o risco da transmissão vertical e
reinfecção do parceiro.
As informações foram analisadas mediante técnica de análise de conteúdo do tipo
temática, a qual se estrutura na ordenação das informações, classificação das
informações e análise final(9). Na fase de organização e tratamento das
informações foi utilizado o software NVivo 2.0, programa que auxilia na análise
de material qualitativo, com ferramentas de codificação e armazenamento de
textos em categorias específicas(10).
A pesquisa contemplou diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas
envolvendo seres humanos, sendo submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da
Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, com Parecer nº 405, de 27 de
outubro de 2009, favorável a sua realização.
As mulheres foram informadas sobre o objetivo da pesquisa e aquelas que
aceitaram participar assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O
anonimato foi preservado pela representação do nome das mulheres por Q1, Q2,
Q3..., conforme ordem de resposta.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A idade das mulheres participantes da pesquisa variou entre 26 e 33 anos, e a
dos homens entre 28 e 36 anos. Quanto à escolaridade, quatro homens e quatro
mulheres tinham ensino fundamental incompleto, uma tinha ensino fundamental
completo, um homem e uma mulher tinham ensino médio completo, e uma delas
desconhecia a escolaridade do companheiro. Em relação à infecção pelo HIV,
todas as entrevistadas eram soropositivas, e quatro delas disseram que seus
companheiros também eram soropositivos; uma não sabia se o companheiro era,
pois ele nunca quis fazer o teste; e outra declarou que seu companheiro não
tinha o vírus. O tempo de descoberta da infecção variou de 5 a 14 anos.
Em relação ao número de filhos, três mulheres tinham dois filhos; uma tinha
cinco; e duas nenhum. Das mulheres com filhos, uma delas tinha um filho
soropositivo.
Da análise dos questionários preenchidos pelas participantes do estudo
emergiram três categorias temáticas: Planejamento da Gravidez; Conhecimento
sobre Transmissão e Tratamento do HIV/AIDS; Vivendo no Contexto HIV/AIDS.
A. Planejamento da gravidez
A opção pela gestação é considerada uma das principais decisões reprodutivas
que as mulheres tomam, diretamente influenciada, mesmo que em diferentes graus,
por questões psicossociais e culturais(11,12). Portanto, o fato de homem e
mulher serem soropositivos para o HIV não diminui o desejo de terem filhos(13).
Os profissionais da saúde devem ter consciência de que, para esses casais, o
estado sorológico poderá não ser considerado na tomada de decisão sobre
gravidez, no uso de métodos contraceptivos e, tampouco, na opção por
interrupção da gestação(11).
Dentre as seis participantes, metade delas disse que seu companheiro e ela
planejaram a gravidez (Q4, Q5 e Q6). Quando questionadas sobre o uso de método
contraceptivo, declararam que faziam uso de pelo menos um, sendo mais citado o
anticoncepcional oral (ACO). Apenas duas participantes informaram uso da
camisinha masculina.
De acordo com a literatura, o uso de ACO deve ser cauteloso quando se trata de
mulheres soropositivas para o HIV, pois, quando ocorre ingestão concomitante
aos antirretrovirais, o efeito contraceptivo é reduzido, sendo mais indicado
uso de preservativos masculinos ou femininos(3).
Os que planejaram engravidar suspenderam uso do método contraceptivo, e apenas
um casal foi orientado pelo médico sobre o melhor momento de engravidar, com
base no acompanhamento sorológico.
[...] eu parei de tomar injeção e não usamos mais camisinha. (Q4)
[...] como eu e meu companheiro queria ter um filho, nós paramos de
usar (camisinha). (Q6).
A gente conversou e achou que seria esse o momento já que eu ainda
não tomo medicação, e o doutor falou que se eu quisesse ter um filho
a hora era agora que os exames estavam bons. (Q5)
Considerando-se que apenas uma delas fez referência ao aconselhamento médico na
decisão de engravidar, pode-se inferir que o dilema nas escolhas reprodutivas é
que as mulheres soropositivas para o HIV e seus companheiros raramente
conseguem discutir o assunto gestação com os profissionais de saúde que os
acompanham, limitando a oportunidade de exercerem seus direitos sexuais e
reprodutivos. Pesquisa realizada em São Paulo, citada anteriormente, revelou
que muitas mulheres desconheciam o melhor método contraceptivo a ser utilizado
e qual o melhor modo de engravidar, diminuindo, assim, o risco da transmissão
vertical e de ocorrência de reinfecção da mãe ou do parceiro(5).
As mulheres que não planejaram a gravidez disseram que engravidaram em
decorrência da perda do efeito do ACO, por estar fazendo tratamento para
tuberculose; do esquecimento do uso do ACO; e de o parceiro não gostar de
utilizar o preservativo.
Sim, eu tomava anticoncepcional, mas devido a outro tratamento feito
para tuberculose ele não teve o mesmo efeito e aí engravidei. (Q1)
Usava preservativo, mas ele não gosta. Não usei por quatro dias e
então engravidei. (Q2)
O fato de essas mulheres engravidarem sem planejamento demonstra, mais uma vez,
que os serviços de saúde designados ao atendimento de pessoas portadoras de HIV
ainda não conseguiram desenvolver um trabalho efetivo de auxílio às questões
ligadas ao planejamento familiar, à sexualidade feminina na presença do HIV e
aos direitos reprodutivos(11). Para as que decidiram engravidar, os motivos
alegados foram por desejo de terem filhos, por seu companheiro ter filhos de
outro relacionamento ou para ter companhia, alguém para amar.
Do nosso primeiro filho não planejamos, mas esse que eu estou
esperando, nós queríamos muito. (Q4)
Ter uma companhia e alguém que eu amasse muito e retribuísse tudo
isso. (Q6)
Esses dados assemelham-se aos de outro estudo realizado com mulheres portadoras
do HIV/AIDS(3,5,11), no qual as razões das mesmas quererem engravidar foram:
desejo de seus companheiros, por não terem acompanhado os filhos já tidos e por
se sentirem mais completas e felizes. Essas mulheres, mesmo temendo pela sua
saúde e a do bebê, não viam esses riscos como algo que diminuísse seu desejo,
pois elas queriam dar um filho a seu companheiro e afirmaram que não
permitiriam que a infecção pelo HIV/AIDS as impedisse.
Para as mulheres e homens que não planejaram a gestação, embora esta tenha
ocorrido acidentalmente, os motivos alegados para não engravidar foram: em
decorrência de ser portadora da doença, por já ter outros filhos e por não
desejar mais filhos.
Não pretendíamos ter filhos por causa da doença e porque já tínhamos
filhos de outros relacionamentos anteriores. (Q1)
Meu marido não queria mais filhos. (Q3)
No estudo de São Paulo, as razões alegadas pelas mulheres que não pensavam em
ter filhos estavam mais relacionadas ao medo da doença para si e para sua
criança do que a não ausência de filhos. Por outro lado, as mulheres que
decidiram pela gestação tinham medo de que seus filhos nascessem com HIV e de
não receber apoio da sociedade(5).
Estudo realizado no Rio Grande do Sul, com o objetivo de investigar as
percepções sobre a vivência conjugal de casais soro diferentes para o HIV,
revelou que os motivos, por eles alegados, para não engravidarem estavam
relacionados ao não querer filhos, não querer serem pais naquele momento ou já
terem muitos filhos e por falta de condições financeiras para sustentar mais um
(14).
Com base nesses estudos, pode-se dizer que no contexto da infecção pelo HIV é
muito comum a ambivalência dos casais em relação à decisão pela gestação, pois
conhecem o risco da contaminação da criança e do parceiro(5).
B. Conhecimento sobre transmissão e tratamento do HIV/AIDS
A partir do que as mulheres responderam neste estudo verifica-se que elas e
seus companheiros sabem identificar o modo de transmissão do HIV e como deve
ser o tratamento da AIDS.
Sobre transmissão: pelo contato sexual em geral sem preservativo,
transfusão de sangue, da mãe para o nenê. (Q1)
Depois que se tem o vírus, o jeito é fazer tratamento direitinho para
ter uma qualidade de vida melhor. (Q5)
No Brasil, mediante assistência à saúde de pacientes soropositivos para o HIV,
procura-se divulgar e enfatizar as formas de prevenção, os modos de transmissão
do vírus e o tratamento. Esse fato, possivelmente tem gerado maior grau de
informação para a população sobre essas questões, conforme se observou nos
depoimentos destacados.
Em relação ao cuidado para prevenir a transmissão vertical, as mulheres também
demonstraram saber o que deve ser feito.
Sei que devo tomar medicação para não contaminar (o bebê). Devo tomar
AZT até o parto, dar xarope para o bebê e não amamentar. (Q2)
Isto, possivelmente, também tem ocorrido em função de os serviços de saúde
concentrarem seus esforços na aplicação do protocolo de profilaxia da
transmissão vertical recomendado pelo Ministério da Saúde às gestantes e
parturientes soropositivas.
A preocupação das mulheres com a transmissão vertical muito provavelmente
esteja relacionada ao medo de contaminar o bebê por ocorrência da gestação e do
parto:
[...] eu tenho medo que ele (bebê) se contamine, mas sigo o
tratamento direitinho para que isso não venha a acontecer. (Q1)
Eu penso que meu bebê pode nascer com o vírus, mas eu vou fazer o que
puder para ela negativar que nem minha outra filha. (Q3)
Percebe-se, nessas falas, a noção de autorresponsabilização, por parte das
mulheres, pela não contaminação do seu bebê. Um estudo realizado com gestante
soropositivas para o HIV, objetivando compreender de que modo a gestante
portadora do vírus percebe sua corporeidade em um estar no mundo gerando outro
ser, revelou que o sentimento de culpa causa sofrimento às gestantes e "a
possibilidade de ter um filho doente gera um abalo em sua existência e
influencia no seu estar no mundo"(15).
Para alguns autores (16), a culpa por colocar o filho em risco, o medo de
infectá-lo e de que ele possa morrer em consequência da infecção, contrasta com
a concepção idealizada da maternidade, que dá à mulher a capacidade de gerar a
vida e assumir um lugar social privilegiado. Contudo, considera-se que a
presença ou a intensidade desses sentimentos está relacionada às ambivalências
e paradoxos vividos por qualquer mulher, gerando sobrecargas particulares.
Quanto ao risco de contaminação do companheiro, observa-se que na situação de
sorodiscordância o casal se preocupa com essa possibilidade, buscando, de algum
modo, minimizar os riscos, embora não abra mão do direito de gestar.
Sabemos dos riscos tanto com ele que não é portador quanto o bebê que
pode ter. (Q4)
Já, em relação à reinfecção, quando os dois são portadores do vírus, esta
parece não ser uma realidade conhecida ou preocupante entre os casais, pois as
mulheres mencionaram o anticoncepcional como método contraceptivo, não citando
o uso do preservativo.
C. Vivendo no contexto HIV/AIDS
As características da AIDS e o imaginário social construído em relação à
epidemia de HIV/AIDS evidenciam seu impacto singular sobre a vida dos homens e
das mulheres, especialmente no período de transição para a paternidade e a
maternidade(16).
Nesta pesquisa, são diversas as repercussões de viver com HIV/AIDS tanto para
as mulheres quanto para seus companheiros. Para alguns, a vida parece ter se
tornado um pouco mais sofrida; para outros, nem tanto.
Eu não me considero doente, mas tenho minhas tristezas. (Q1)
[...] a pessoa tem que aceitar. (Q3)
Representa uma vida quase normal porque se vive do mesmo jeito que
antes, fazendo as mesmas coisas, só que [...] a partir do momento que
temos o vírus, temos que planejar tudo o que vamos fazer,
principalmente não descuidar do tratamento e de ter filhos sem
acompanhamento médico. (Q5)
É preciso considerar o estigma social que associou o HIV/AIDS a comportamentos
considerados socialmente desviantes, e que o imaginário social relacionado à
infecção ainda está impregnado pela noção ultrapassada de grupos de risco e por
concepções erradas sobre as formas de contaminação. Esse estigma dificulta a
adesão a comportamentos de prevenção e penaliza ainda mais os portadores do
vírus, aumentando o preconceito(16).
Representa que as outras pessoas nos olham com ar de preconceito.
(Q6)
Mesmo em tempos atuais, ainda é grande a possibilidade de o portador do vírus
HIV sofrer discriminações por parte dos vizinhos e familiares. Esse preconceito
faz com que as pessoas que vivem ou convivem com o HIV/AIDS se isolem e passem
a ser alvo de recusa por parte da família e amigos(17).
[...] de vez em quando me sinto muito só porque minha família não
sabe da doença. (Q1)
Muitas vezes, também, a família do portador reproduz as metáforas negativas, a
estigmatização e a discriminação construídas na sociedade, e isso estimula
muitos portadores ao autoisolamento, reforçando a baixa adesão aos cuidados com
a saúde com medo da discriminação, dentro e fora de casa. É comum se encontrar
pessoas vivendo com HIV, sofrendo de isolamento social (7), ou, no caso dos
casais aqui pesquisados, podendo somente "contar um com o outro" (Q5).
Na situação de ser mãe soropositiva, a condição da não amamentação aparece como
a principal dificuldade para a mulher.
Sei que não posso amamentar e tenho que ter uma série de cuidados com
o bebê. (Q4)
Vou sentir falta de amamentar. (Q1)
[...] o pior é não poder amamentar. Me sinto muito mal não poder
amamentar. Essa é a pior parte. Eu amamentei meu primeiro filho e
sinto muita falta, gostava muito de dar de mamar. (Q2)
De acordo com a literatura, a amamentação parece trazer para a mulher portadora
do HIV/AIDS dupla mensagem social. Enquanto a amamentação para mulheres hígidas
é altamente estimulada pelos profissionais de saúde, no caso da infecção pelo
HIV/AIDS ela é proibida. Nessa situação, o leite da mulher, por não ser
considerado benéfico para a criança, pode despertar diversos sentimentos nas
mães e repercutir na sua experiência de maternidade, pois a mulher sabe da
importância do aleitamento materno para ela e seu filho e se vê impedida de
amamentar (16). Essa situação aponta para a necessidade de se construir
estratégias que minimizem essa perda, preparando as gestantes soropositivas
para enfrentar esse impedimento, tanto para si quanto perante a família e a
sociedade.
Ser pai no contexto do HIV revelou-se, na percepção das mulheres, algo bastante
singular. Algumas destacaram que para seus companheiros foi péssimo,
principalmente quando a gestação não foi planejada. No entanto, nas situações
de gestações planejadas, os companheiros demonstraram muita alegria.
Péssimo, sem total interesse, não conversamos sobre isso para não
brigarmos. (Q1)
Ele está muito feliz porque ele já tem dois filhos que estão grandes.
(Q5)
Ele sabe que um filho trará muita alegria para nós dois. (Q6)
Na gravidez, os casais podem sentir tanto sentimentos de alegria, tristeza,
satisfação quanto de insatisfação. Para alguns, esse momento traz alegrias e o
desejo de conviver harmoniosamente, e, para outros, os conflitos já vivenciados
podem se acentuar(18). Considerando-se o contexto da HIV/AIDS, para os homens,
correr o risco de ser pai de uma criança soropositiva, ser companheiro de uma
mulher soropositiva e até mesmo correr o risco de infectar, parece também não
ser uma tarefa fácil. Entretanto, percebe-se que a aceitação e o enfrentamento
de novos papéis sociais parecem estar muito mais ligados à aceitação da
gravidez do que pelo fato de serem estes pais parceiros de mulheres
soropositivas para HIV.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realização desta pesquisa permitiu identificar que o que levou as mulheres
soropositivas para o HIV e seus companheiros a decidir engravidar, mesmo
conhecendo o risco da contaminação do bebê e do companheiro, foi o forte desejo
do exercício da maternidade e da paternidade, como forma de dar sentido às suas
vidas.
Ser mãe e ser pai parece constituir um processo bastante complexo diante do
HIV/AIDS, pois, além das repercussões dessa escolha, interferem neste processo
os desafios impostos pela infecção, as sobrecargas particulares nas relações
familiares e sociais, associadas à revelação ou não do diagnóstico e ao estigma
associado à epidemia.
Diante de uma gestante soropositiva espera-se, e se deseja, que os
profissionais de saúde abordem a questão do risco da transmissão vertical. Por
outro lado, observa-se que tal tematização, ao centrar-se apenas no controle
técnico, pode funcionar como um modo de desestimular ou censurar a gravidez no
contexto do HIV/AIDS.
Assim, para além da profilaxia da transmissão vertical, é fundamental que os
profissionais que atuam em serviços de atenção à saúde de indivíduos
soropositivos sejam preparados para melhor atender e orientar homens e mulheres
soropositivos quanto às questões sexuais e reprodutivas, pois os casais
continuam utilizando métodos contraceptivos inadequados, tendo gestações
indesejadas e não tendo a melhor evolução nas gestações desejadas.
A partir do exposto, o grande desafio do planejamento familiar no contexto do
HIV/AIDS é compreender os significados que a gestação constroi na vida dos
casais, produzir ações que promovam a autonomia dos sujeitos e garantir o
direito à reprodução e o de construir uma família.