Problematização do trabalho em equipe em enfermagem: relato de experiência
TRABALHO EM EQUIPE
O trabalho é o meio através do qual o homem se relaciona com o homem,
utilizando a natureza para construir sua história e transformá-la,
estabelecendo mediações para ambos se modificarem. O trabalho da enfermagem é
considerado como um processo particular do trabalho coletivo em saúde,
conferindo a este um caráter subsidiário e complementar, transformando então o
mesmo objeto de trabalho, que é o corpo humano individual e coletivo(1).
O objeto de trabalho em saúde tem muitas dimensões, como a biológica,
psicológica, social e cultural, possibilitando a construção ampliada à atenção
integral, suprindo as necessidades em saúde nas variadas intervenções
profissionais. O processo de trabalho em saúde possui um aspecto de ser um
serviço que se funda numa inter-relação pessoal grande, por não realizar o
serviço em cima de coisas, objetos, dá-se sobre pessoas, e essa pessoa tem que
contribuir com o processo, para que o mesmo tenha eficácia e eficiência, a fim
de alcançar objetivos iniciais(1).
Uma característica particular do processo de trabalho em enfermagem é a
fragmentação das funções, ou seja, a existência de auxiliares de enfermagem,
técnicos de enfermagem e enfermeiros dentro da categoria profissional
Enfermagem.
A divisão do trabalho de enfermagem expressa, desde sua a origem, a marca do
trabalho coletivo, em virtude do processo de enfermagem não ter a possibilidade
de ser gerado por uma pessoa só, tal como ocorre com outros trabalhos
especializados, como medicina, psicologia, fisioterapia, serviço social. Dada a
existência de um conjunto de agentes, fazem-se necessárias ações de coordenação
e supervisão, de gerência.
O que configura o trabalho em equipe?
O serviço de saúde especializado tende à fragmentação do cuidado prestado ao
paciente, configurando uma teia de ações executadas por diferentes agentes, que
necessitam de articulação. Na atualidade, a nenhum trabalhador de saúde em
separado, cabe a possibilidade de atender às demandas de saúde apresentadas
pelos pacientes, ou mesmo, por um único usuário em particular; por isso, torna-
se necessário que os profissionais reconheçam as conexões que existem entre as
diversas atividades executadas e as tomem em consideração, integrando suas
ações (2).
Dessa forma, faz-se necessário articular as diversas ações realizadas no
interior de um setor, unidade, ou serviço, bem como os setores, unidades e
serviços entre si.
Geralmente observa-se a existência de equipe apenas no sentido de coexistência
de vários profissionais numa mesma situação de trabalho, compartilhando o mesmo
espaço físico e a mesma clientela, ou seja, não necessariamente integrados.
Existem dois tipos diferentes de trabalho em equipe: a equipe integração, na
qual se observa a busca de articulação das ações e de integração dos
profissionais; e a equipe agrupamento, em que ocorrem a justaposição de ações e
o mero agrupamento de agentes(1-2).
Quando a equipe alcança algum grau de integração, expressa uma relação
recíproca, de mútua influência, entre trabalho e interação. Sendo assim, a
interação não faz parte apenas do próprio processo de trabalho e torna-se uma
ação produtiva e interação social.
As principais características de uma equipe integrada consistem em flexibilizar
a divisão do trabalho; preservar as diferenças técnicas entre os trabalhos
especializados; questionar a desigualdade na valoração dos distintos trabalhos
e respectivos agentes; descentralizar a tomada de decisão na equipes e no
serviço, favorecendo o partilhar de decisões sobre questões relacionadas à
dinâmica de trabalho; exercer a autonomia profissional, tomando, em
consideração, a interdependência das diversas áreas profissionais; e construir
um projeto assistencial comum(2).
Estas características do trabalho em equipe necessitam, para sua efetivação,
comunicação e integração entre os agentes envolvidos, no sentido de construírem
consensos e acordos. Esse processo permite, ao longo de uma experiência
trabalho em conjunto construir um projeto assistencial comum, o que poderia ser
caracterizado com um trabalho em equipe no sentido integral da expressão.
Nesse sentido, na formação do enfermeiro é imprescindível a construção desses
saberes e a Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo contempla na
disciplina de Estágio Curricular de Administração em Enfermagem um espaço de
reflexão e aprofundamento sobre o trabalho em equipe. Assim, este estudo foi
motivado a partir da observação da realidade encontrada durante esse estágio em
relação ao trabalho em equipe na enfermagem.
PLANEJAMENTO DA INTERVENÇÃO
O questionamento acerca da temática do Trabalho em Equipe surgiu através da
observação cotidiana, durante o período do estágio curricular em enfermagem, da
dinâmica dos relacionamentos interpessoais dos integrantes do grupo de
enfermagem e, consequentemente, dos conflitos advindos desse mesmo processo.
Foi planejada uma dinâmica de grupo com a equipe de enfermagem da clínica
cirúrgica de um hospital público da cidade de São Paulo. Essa dinâmica teve
como base teórica a Metodologia da Problematização, que objetiva a compreensão
da realidade para intervir nela e transformá-la. A habilidade de problematizar
é vista como a capacidade de relacionar de forma coerente e seqüencial três
momentos: identificação de um problema, busca de explicação e proposição de
soluções(3). A Problematização encontra, nas formulações de Paulo Freire, um
sentido de inserção crítica na realidade para dela retirar os elementos que
conferirão significado e direção às aprendizagens. No movimento ação-reflexão-
ação são elaborados os conhecimentos, considerando a rede de determinantes
contextuais, as implicações pessoais e as interações entre os diferentes
sujeitos que aprendem e ensinam.
Nesse sentido, a idéia básica do pensamento de diversos teóricos da área de
educação está centrada no desenvolvimento da capacidade de raciocínio e
espírito crítico do homem. Essa compreensão remete a uma prática baseada na
liberdade de elaborar as próprias certezas, os próprios conhecimentos, as
próprias regras morais, reconhecendo nas situações concretas, as circunstâncias
que conduzem a experiências que produzem o conhecimento além de valorizar e
promover a aprendizagem através da experiência vivenciada no cotidiano(4).
Assim, nessas circunstâncias, emergem as dimensões problematizadoras, as quais
assumem a construção do conhecimento como traço definidor da apropriação de
informações e explicação da realidade, tomando-a como ponto de partida e
chegada do processo de aprendizagem(5).
Vale ressaltar que uma proposta problematizadora tem como propósitos que o
sujeito seja ativo no seu processo de problematizar porque precisa ter uma
situação autêntica de experiência na qual esteja interessado; as atividades
devem ter propósitos definidos, com clareza e objetividade; o sujeito precisa
aprender a observar para utilizar as informações e instrumentos disponíveis; o
resultado do trabalho deve emergir em algo concreto; o sujeito necessita ter a
oportunidade de comprovar as idéias que tenha tido, por meio da sua aplicação
e, por fim, a aprendizagem deve partir da problematização dos conhecimentos
prévios do sujeito.
PROBLEMATIZAÇÃO DO TRABALHO EM EQUIPE NA ENFERMAGEM
Foi feito um convite prévio impresso a todos integrantes da equipe de
enfermagem para participarem da dinâmica, que aconteceu no dia 23 de outubro de
2009, na sala de estudos da unidade, teve duração de 35 minutos, contou com a
participação voluntária de oito auxiliares de enfermagem e ocorreu em três
fases:
Primeira fase: No início da
dinâmica, aconteceu uma estratégia de aquecimento na qual os
participantes escolheram uma foto entre várias disponibilizadas, as
quais representavam pessoas de etnias distintas, provenientes de
jornais/revistas e disponibilizadas sobre uma mesa. A partir disso,
justificaram essa escolha e exteriorizaram os sentimentos e emoções
provocados pela primeira visualização das imagens. Também foram
questionados acerca de determinados valores e crenças, promovendo uma
reflexão sobre os pré-julgamentos inferidos da aparência das pessoas
num primeiro contato e a implicação desses num convívio em equipe.
[/img/revistas/reben/v66n1/car01.jpg] Segunda fase: Foram
distribuídas três situações-problema diferentes entre os grupos
formados e houve um período para leitura e apreciação das situações
descritas. Em seguida, os participantes socializaram com o restante
do grupo as situações apresentadas, e a partir disso, iniciou-se a
discussão sobre as dificuldades do trabalho em equipe, os fatores de
desgaste e fortalecimento no relacionamento interpessoal e as
possíveis soluções para tornar a convivência em equipe mais
harmônica.
[/img/revistas/reben/v66n1/car01.jpg] Terceira fase: O debate foi
concluído com a leitura e discussão de um texto(1), pelos
participantes, o qual versa sobre o trabalho em equipe, suas
dificuldades e implicações.
AVALIAÇÃO DA INTERVENÇÃO
A avaliação da dinâmica foi realizada pelos participantes através do
preenchimento de um formulário que indagava quanto às emoções e sentimentos
trazidos à tona pela dinâmica.
Houve uma participação expressiva dos integrantes da equipe de enfermagem na
dinâmica. O entrosamento entre os participantes foi perceptível, assim como a
desinibição ao expressarem valores, crenças e opiniões individuais.
A maioria dos participantes afirmou ter uma impressão pré-concebida baseada na
aparência física num primeiro contato com um novo elemento no grupo e, conforme
a convivência no dia-a-dia se desenvolve, essa concepção dá lugar a um
"julgamento" baseado nas atitudes e ações ao invés de somente da aparência.
Em relação aos conflitos e dificuldades do trabalho em equipe, o grupo apontou
como possível causa a não colaboração dos colegas de equipe, o que torna,
segundo os mesmos, as tarefas e a convivência desgastantes. Notou-se,
independentemente das situações, que os problemas apontados ocorriam sempre por
falta de cooperação apenas de outros colegas, evidenciando-se um déficit na
realização de auto-crítica e avaliação dos participantes. Nesse mesmo sentido,
as soluções propostas relacionavam-se com a mudança de comportamento e atitudes
de outros colegas, em detrimento a mudanças individuais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar dos resultados obtidos não terem sido surpreendentes, acredita-se que a
estratégia da dinâmica baseada na problematização dos fatos contribuiu de
maneira significativa para a retomada de comportamentos, atitudes, valores e
crenças indispensáveis ao bom andamento do trabalho em equipe.
Compreender o real significado do trabalho em equipe requer uma permanente
reflexão sobre as práticas de enfermagem em qualquer segmento de atuação, visto
que essa é uma ferramenta essencial no trabalho. Um bom atendimento em saúde
com qualidade e eficiência requer envolvimento coletivo dos profissionais, fato
este que aponta a importância de uma análise acurada das relações interpessoais
no desempenho das equipes(6).
Vale destacar que o estágio curricular tem sido apontado por diversos autores
(7-8) como um momento de crucial importância no processo de formação
profissional, e que, tanto o docente quanto o enfermeiro atuante no campo da
prática, tem significativa influência no desenvolvimento de habilidades,
técnicas e atitudes do estagiário de Enfermagem. Essa fase da formação
acadêmica possibilita não só a integração dos saberes apreendidos nas diversas
disciplinas oferecidas durante o curso de graduação, como permite ao estudante
o exercício da construção de sua autonomia e responsabilidade nesta etapa de
transição de identidade do futuro enfermeiro.