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BrBRCVHe0034-71672013000400005

BrBRCVHe0034-71672013000400005

variedadeBr
Country of publicationBR
colégioLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0034-7167
ano2013
Issue0004
Article number00005

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Sexualidade e a interseção com o cuidado na prática profissional de enfermeiras

INTRODUÇÃO Sexualidade e corpo estão intrinsecamente ligados ao cuidado como prática social de enfermeiras, tendo em vista serem profissionais a quem é outorgado o cuidado direto do corpo no qual se manifesta a sexualidade. Todavia, tanto nas escolas formadoras de profissionais como nas redes de atenção à saúde, falar da sexualidade se apresenta ainda hoje como um tabu, algo muito velado e, de certa maneira, ainda proibido.

Cuidar do corpo do outro muitas vezes se encontra envolto em um discurso biologicista e tecnicista, escamoteando um fazer e uma escuta sensível acerca da sexualidade e dos corpos, tanto de quem cuida quanto de quem é cuidado.

Estudos desenvolvidos por enfermeiras durante a última década do século XX e início do século XXI têm confirmado tal situação e apontado lacunas do conhecimento em enfermagem com relação aos estudos que enfocam a sexualidade na interface com o cuidado(1-5).

A interdição da sexualidade na formação das enfermeiras vem se reproduzindo, ao longo do tempo, mantidas as devidas diferenças histórico-culturais. Sobral(1) diz que "as interdições da sexualidade não são demarcadas pelo tempo cronológico, embora ao longo das décadas, seja possível perceber uma necessidade de adequação dos rituais de neutralização de corpos erotizados".

Tal situação apresenta-se como problemática se pensarmos a sexualidade como um dos eixos articuladores das relações de poder que se materializa por meio de diferentes formas discursivas e especialmente se indagarmos a partir do dispositivo da sexualidade. Michel Foucault, em entrevista concedida a Alain Grosrichard, ao ser interrogado sobre o tipo de objeto histórico denominado "dispositivo" responde: Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos(6).

Se existe toda essa heterogeneidade de possibilidades na formação da rede articuladora do dispositivo, poderíamos indagar de que maneira a sexualidade se materializa, permitindo tais articulações. Também se faz necessário perguntar de que modo poderíamos problematizar e analisar o seu impacto no campo da enfermagem e das suas relações com o cuidado como prática social. Para nos aproximarmos de respostas a essas indagações, precisamos compreender que, se a sexualidade se constituiu como domínio a conhecer, foi a partir de relações de poder que a instituíram como objeto possível; e em troca, se o poder pode tomá-la como alvo, foi porque se tornou possível investir sobre ela através de técnicas de saber e de procedimentos discursivos. Entre técnicas de saber e estratégias de poder, nenhuma exterioridade; mesmo que cada uma tenha seu papel específico e que se articulem entre si a partir de suas diferenças.

Partir-se-á, portanto, do que se poderia chamar de 'focos locais' de poder-saber (...)(7).

Esses focos locais traduzem-se pelas instituições mediante todo um aparato de produção de poder saber, cria uma rede de vigilância, investigação, controle e produção discursiva que se materializa nos e/ou através dos corpos. Na enfermagem, poderíamos dizer que se por meio do silenciamento sobre a sexualidade sustentado pela disciplina "que fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis"(8) e disciplinados, ao longo de décadas.

Agente de um poder-saber, a enfermeira suscita, sente e cala desejos.

No lugar histórico da constituição da enfermagem como um discurso teórico prático o silêncio. No momento presente quem , faz e refaz o discurso da enfermagem também brinda esse tema com o silêncio. Silêncio que denega a sexualidade calando o que é erótico (1).

Na nossa experiência como enfermeiras e docentes percebemos nos serviços de saúde, nos quais é oferecida atenção básica ou hospitalar - lócus de atuação das enfermeiras em suas diferentes modalidades - que o contato com o sujeito cuidado visto sob as especificidades do corpo e da sexualidade causa grande impacto. Isto porque tal tema parece não se constituir como fundamental durante o processo de formação e ensino-aprendizagem do cuidado nas Escolas de Enfermagem em que nos formamos e temos atuado. Tal perspectiva corrobora com estudo que identifica a neutralização dos corpos e da sexualidade de enfermeiras(1) bem como o domínio da informação e do saber técnico- científico das mesmas que, de maneira autoritária e verticalizada em relação ao manuseio do corpo nu, exige obediência por parte das pessoas assistidas, causando constrangimento, impotência, vergonha e silenciamento dos sentimentos(4).

As observações empíricas sobre essa realidade culminaram na tese intitulada Estendendo o Fio de Ariadne: sexualidade feminina e a interseção com o cuidado nos discursos de enfermeiras, defendida em maio de 2011 no Programa de Pós- Graduação em Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sendo divulgado neste artigo uma das categorias empíricas. Nesse sentido, o objetivo deste estudo é analisar a interseção entre a sexualidade e o cuidado de enfermagem enquanto prática social. A pesquisa contribui com o aprofundamento teórico acerca do tema e subsidia ações de implementação de planos de cuidado que contemplam a sexualidade como componente importante para a integralidade das ações de saúde.

MÉTODO A pesquisa foi realizada em Barbacena, estado de Minas Gerais. Nove enfermeiras participaram do estudo, todas residentes e desenvolvendo suas atividades profissionais na cidade, graduadas entre 1979 e 2002. Duas entrevistas piloto foram feitas com duas enfermeiras de Montes Claros-MG.

Para a produção do material empírico optou-se pelas entrevistas em profundidade através da realização do inquérito por histórias de vida(9). Foi utilizado como referencial teórico a Epistemologia Feminista do Ponto de Vista(10-11) e gênero como categoria analítica.

A análise dos resultados foi feita a partir da Análise de Discurso Crítica (ADC), nome dado a enfoques que se debruçam sobre a análise de textos, cuja raiz está em diferentes tradições teóricas, que buscam a mudança social e cultural. "Para atingir isso, é necessário reunir métodos para analisar a linguagem, desenvolvidos na linguística e nos estudos de linguagem com o pensamento social e político relevante"(12).

As especificidades temáticas levaram à construção de subcategorias que culminaram com a categoria empírica central, título deste artigo, que expressa maior nível de abstração em relação ao objeto.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) por meio do protocolo de número 1625/ 2009. As participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Uma vez que o título da tese traz uma analogia simbólica ao fio condutor no mito de Ariadne, foram sugeridos nomes de deusas para a identificação das participantes. No início de cada entrevista foi oferecido como presente o "Livro das Deusas do Grupo Rodas da Lua", que apresenta as deusas das mais diferentes tradições e culturas e acrescenta "A Grande Mãe na Era Cristã, Maria", o que mostra a diversidade na escolha das entrevistadas. Na tese os relatos são acompanhados pelo nome fictício, idade no momento da realização da entrevista e o ano em que se formaram, sendo mantido o mesmo procedimento neste artigo.

RESULTADOS As enfermeiras participantes do estudo tinham idade entre 33 e 59 anos; quatro delas eram solteiras, duas casadas, uma se declarou em relacionamento estável mais de 15 anos e uma divorciada, em um segundo relacionamento estável. A renda pessoal variou entre três a dez salários mínimos e meio, com a maior concentração na faixa dos quatro salários mínimos. Oito delas se declararam brancas e uma negra. Apenas uma declarou não ter religião e todas as demais declararam ser católicas. Seis das nove enfermeiras participantes do estudo concluíram a graduação na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Das outras três, uma formou-se na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); uma na antiga Escola de Farmácia e Odontologia de Alfenas, hoje Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL); e a terceira, na Universidade Federal de Rondônia (UNIR).

Todas tiveram mais de um vínculo empregatício em algum momento de suas carreiras, sendo que oito delas estão ou estiveram desenvolvendo atividades na área de saúde mental, especialmente nas Unidades do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena/CHPB, da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais/FHEMIG. Essa tendência do cuidado desenvolvido na área de saúde mental não tem aderência com a especialização lato sensu da maioria delas, que se concentrava nas áreas de gestão dos serviços de saúde, saúde pública e terapia intensiva. Uma enfermeira fez mestrado na área de saúde mental, e outra participa de grupos de estudos de Lacan, o que lhe um olhar mais atento sobre as condições das pessoas com transtornos mentais.

Os discursos das enfermeiras acerca da interface cuidado e sexualidade, em suas experiências profissionais, vão do cuidado direto - realizado em unidades de alta complexidade como as Unidades de Terapia Intensiva (UTI), passando por unidades ambulatoriais de atendimento exclusivo de portadores do Human Immunodeficiency Virus (HIV)/Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) - às experiências em cargos de gerência.

Os resultados da pesquisa realizada mostraram que, na prática, quando as enfermeiras chegam ao mercado de trabalho, esbarram nas fortes dificuldades em abordar a sexualidade, dimensão essencial da vida humana, a ser valorizada, tanto no âmbito da saúde coletiva quanto do cuidado hospitalar.

A. Sexualidade, corpo e cuidado nos espaços hospitalares As enfermeiras, ao falar sobre suas experiências no campo do cuidado direto com o corpo (o que consequentemente remete à sexualidade), demonstraram muita dificuldade no uso da palavra sexualidade. Na maior parte das vezes, elas deslocaram a condução da narrativa para um aspecto mais geral da profissão: a questão do quantitativo, em que o número de enfermeiros (utilizando aqui a nomenclatura no masculino, para indicar especificamente os homens na profissão) continua baixo para dar conta da demanda de cuidado desenvolvido no âmbito hospitalar.

Assim, a presença dos homens na enfermagem é um tema recorrente em vários discursos quando se trata do cuidado direto com o corpo de homens e mulheres nos hospitais. Existe uma preocupação com o constrangimento causado aos pacientes quando os cuidados de enfermagem, especialmente os ligados a um contato direto com a intimidade como o banho de leito, por exemplo, são realizados por mulheres em pacientes do sexo masculino e vice-versa.

Entretanto, essa preocupação é mais evidente quando se trata de homens cuidando de mulheres porque, como podemos ler a seguir, uma posição de que homens aceitam melhor serem cuidados por mulheres que o contrário.

Porque é engraçado que a enfermagem é altamente feminina ainda. O homem olha para o pessoal da enfermagem, para a enfermeira, o cliente, o paciente homem, olha com mais tranquilidade. A mulher quando olha para o enfermeiro não ele com tranqüilidade mas aceita o obstetra, o homem, o médico obstetra, não é? (PERSÉFONE: 56, 1979).

As mulheres aceitaram os homens na cena do parto mediante o apelo do discurso do conhecimento científico-médico ser maior que o das parteiras, além da transformação do parto em patologia passível de intervenção médica, que se intensificou a partir do século XIX(13). O fato de homens terem mais tranquilidade ao serem cuidados por mulheres remete às origens da enfermagem como profissão do cuidado. A profissionalização reiterou no espaço público o cuidado como prática feminina, do lar, em que as mulheres são responsáveis do nascimento à morte. Historicamente, tais cuidados foram repassados de mães para filhas pela tradição oral e reconhecidos como fato social "devido a antiquíssima divisão sexual do trabalho, base da primeira economia mista"(14).

O papel de mãe acaba sendo resgatado como neutralizador de um possível constrangimento, em relação ao cuidado, como afirma Maria: Então eles ficam constrangidos num primeiro momento, mas acabam acostumando com a idéia. Porque mulher é cuidadora, é mãe, está acostumada com aquilo. (MA-RIA, 38,1995).

No espaço público, a profissão foi, desde o início de sua institucionalização como enfermagem moderna, submetida ao forte esquema de neutralização dos corpos e interdição da sexualidade. A moral cristã, que abriu espaço inclusive para a crença na enfermeira como anjo assexuado, também contribuiu enormemente para a negação do corpo erótico da enfermeira, que precisa ficar invisível aos olhos dos pacientes homens(1-4,14). A impessoalidade na realização da técnica era imprescindível na formação das enfermeiras brasileiras, no período em que ainda havia o internato para as futuras profissionais. A perspectiva era desconstruir a idéia do corpo sexuado das estudantes que, como jovens solteiras, não mantinham um contato com os corpos masculinos(1).

Essa perspectiva foi realidade para o ensino de enfermagem desenvolvido até o final da década de 1970 porque, em função do baixo número de escolas de graduação, quase todas as enfermeiras ao ingressarem no mercado de trabalho desenvolviam atividades gerenciais e não a do cuidado direto. Assim, as escolas tinham um discurso de que as estudantes de enfermagem deveriam saber desenvolver muito bem as técnicas para ensinar aos outros membros da equipe de enfermagem, que seriam responsáveis pelo cuidado direto.

No entanto, a Lei 7.498/86, que regula o exercício da enfermagem no Brasil, extinguiu a categoria do(a)s atendentes de enfermagem e as demandas, especialmente dos centros de alta complexidade, exigindo cada vez mais a presença das enfermeiras no cuidado direto prestado aos/às usuário(a)s. Os impasses se apresentam quando as enfermeiras se encontram frente a frente com a realidade concreta do mundo do trabalho.

que hoje como eu trabalho numa UTI eu vejo o quanto isso constrange, e eu tenho pouquíssimos plantonistas do sexo masculino, mas quando eu tenho condições de deixar uma mulher dar banho em outra mulher, e um homem dar banho em outro homem eu vejo o quanto isso é confortável, é lógico que principalmente para o lúcido. Porque a pessoa se sente constrangida! A gente percebe esse constrangimento no olhar, isso quando eles não se manifestam na fala mesmo. O olhar, a pessoa não consegue te encarar, não é? O paciente que está sedado faz diferença? Faz, principalmente para quem está assistindo. (AFRODITE: 33, 2002).

Esse discurso aponta na direção da humanização efetiva do cuidado, na medida em que você enxerga o outrocomo ser humano integral. É a constatação de que existe sim um constrangimento tanto da parte de quem é cuidado como de quem cuida. A histórica interdição da sexualidade, marcada pelos discursos que identificam as enfermeiras como anjos assexuados ou pelo uso dos uniformes ou roupas que façam desaparecer as marcas do corpo sexuado, é quebrada pela realidade em que se dão as práticas do cuidado com o corpo e precisam ser questionadas em nome da dignidade dos seres humanos, homens e mulheres.

Nessa perspectiva, estudos(15-16) têm questionado uma prática comum em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) que, em nome da facilidade de acesso a procedimentos de urgência, deixam o(a)s pacientes nus. Essa prática aponta para um profissionalismo assexuado que é desumano, em relação aos pacientes, mas se enquadra em um modelo assistencial de alta competência técnica e pouca ou nenhuma preocupação com a intimidade dos seres cuidados. Os procedimentos de alta complexidade e a necessidade de eficiência técnica para salvar vidas parecem transformar em objeto as pessoas ali internadas. O depoimento que se segue aponta para esta direção: Numa terapia intensiva não tem isso de homem cuidar de homem e mulher cuidar de mulher. E no CTI tem muito homem! A maioria às vezes até é homem (MARIA: 38, 1995).

Se grande parte de cuidadore(a)s em UTI é homem, como ficam as pacientes do sexo feminino em relação a serem cuidadas por homens? Como abordamos anteriormente, existe uma resistência histórica das mulheres em relação a serem cuidadas por profissionais não médicos do sexo masculino. As mulheres preferem ser cuidadas por mulheres quando o que está em jogo é a própria sexualidade e a intimidade. O discurso que segue traz essa perspectiva e o paradoxo da transformação do sujeito do cuidado em objeto des-singularizado quando está sedado em uma UTI: E a gente se põe na posição seguinte: se eu mulher enquanto lúcida eu gostaria de que um homem me desse auxílio nas minhas necessidades básicas como banho, principalmente banho? Eu não gostaria. Então eu acho que de certa forma isso fica muito, é muito forte na relação. Eu que tive a experiência de trabalhar no CTI é diferente. Mas passa a ser diferente no sentido daquele paciente que está ali sedado e não tem essa noção porque quando ele começa a ter também uma preocupação da gente colocar pessoas do mesmo sexo pra estar auxiliando a eles nessa questão da higienização. Então essa preocupação (IANSÃ: 38, 2002).

No entanto, emerge um complicador quando se volta o olhar para a realidade da profissão que ainda hoje é majoritariamente feminina: como lidar com o quantitativo para que possa haver um equilíbrio? Quando isso acontece, o discurso volta-se para a idéia tradicional de que as mulheres têm os melhores atributos como cuidadoras e de que a profissão não tem sexo: Porque quando a gente esbarra na questão de quantitativo de profissional a profissão passa a não ter sexo. Mas na medida em que a gente se coloca do outro lado a gente o quanto é importante estar sendo olhado por uma pessoa que a gente sabe que tem o mesmo olhar, sabe, desse jeito, porque na verdade é assim, a gente que é mulher sabe que é mais fácil, de um olhar expressa muita coisa.

Homem não é assim, não é essa compreensão que a mulher tem que é muito mais abrangente (IANSÃ: 38, 2002).

Podemos dizer que essa idéia da enfermagem não ter sexo se adéqua muito bem às concepções incorporadas pelas enfermeiras ao longo de todo o processo de subjetivação pela sexualidade, sendo justificada como uma necessidade da profissão quando o número de profissionais do sexo masculino é insuficiente. Na realidade, existe um ir e vir que o tempo todo aponta, ora para as rupturas, ora para as permanências. Essa dialética da vida e dos sujeitos que é movimento e transformação. Essa perspectiva fica muito nítida no discurso que se segue: Eu penso até hoje que o enfermeiro não tem um corpo não, dentro do cuidado de si. Porque ele é um sujeito muito atarefado, um sujeito muito fazedor. Eu não sei se tem enfermeiro assim que lida com a sexualidade de si mesmo, da coisa prazerosa, do gozo: do gozo de ser mulher, do gozo de gozar, eu não sei se tem enfermeiro que cuida disso. (HÉCATE: 54, 1982, grifo nosso).

O peso da palavra sexualidade e o que a acompanha é reforçado na demonstração de dúvida acerca da capacidade do enfermeiro, usando o masculino para em seguida expressar sentimentos que são femininos e, portanto seria da enfermeira, em lidar com a sexualidade de si mesmo. A enfermeira revela valores que permanecem nela até hoje e oscila entre suas interdições e a necessidade de abrir-se para as demandas possíveis do cuidado. Ela fala no masculino por força da tradição, mas é a respeito dela, da mulher, da enfermeira no feminino, que ela anseia por falar.

E ainda Hécate continua colocando questões importantes acerca do cuidado, da sexualidade e do masculino na profissão: Porque o cuidado que se preocupa é o cuidado da higiene, não é o cuidado do corpo é da higiene. Você está limpinho, você está arrumadinho, está organizado. Não é do corpo em si. Eu falo de corpo eu falo de corpo de gozo, sabe assim de ter o prazer de ser mulher. E agora na enfermagem está entrando muito o masculino e eu acho que vai mudar a posição. A enfermagem vai ser mais organicista, com mais direitos entendeu, entrando o masculino. Porque eu acho que a mulher não se preocupa muito com direitos em parte política em si, e de ganhos, parte de dinheiro, financeiro mesmo. Eles vão se preocupar com isso apesar de que os homens que estão entrando para a enfermagem são também muito femininos não é? São assim (HÉCATE: 54, 1982).

Em seu discurso, Hécate abstrai o cuidado visto apenas como higiene do corpo para o cuidado do corpo, lugar do erótico, do prazeroso, corpo esse esquecido, no ensino de enfermagem. Ela fala da presença dos homens na enfermagem: faz afirmações pautadas em atributos de gênero de que a chegada dos homens pode mudar a profissão, do ponto de vista político e de reconhecimento, mas ao mesmo tempo desconstrói o modelo tradicional de masculinidade. Ela aponta novas possibilidades identitárias para os homens que podem sim desenvolver plenamente os cuidados que até então eram considerados femininos, mas com reservas. nesse homem uma forma do feminino, esforçando-se para não ser interpretada pelo prisma do que subjacente à visão do homem enfermeiro no imaginário social, conforme se a seguir: Não quero falar gay, porque eu acho que tem homem masculino, masculino que o homem é macho, macho mesmo e tem homem que tem uma alma mais feminina: ele é tolerante, mais maleável, ele as coisas.

E eu acho que é esse tipo de homem que está entrando na enfermagem, não está entrando o homem bruto. Porque eu acho que o homem é assim muito racional, muito concreto e está entrando o homem mais maleável, mais para o lado feminino mesmo. Não é o lado feminino de ser homossexual não, é lado feminino mesmo. (HÉCATE: 54, 1982).

Hécate em seu discurso, embora procure desideologizar o cuidado como componente da essência feminina reforça tais características ao dizer que o homem que procura a enfermagem na atualidade está mais para o lado feminino.

Historicamente, o cuidado é uma atividade regida pela ideologia de gênero e do cuidar do outro, considerado apenas como atributo feminino. Ele oportuniza a permanência da desvalorização do mesmo como prática social porque em nossa sociedade, as estruturas privadas que envolvem "cuidar de" localizam-se especialmente na família; profissões que proporcionam cuidados são muitas vezes interpretadas como apoio ou substituto para cuidados que não podem mais ser proporcionados dentro da família(17).

Visto sob esta ótica evidencia-se a dificuldade da valorização do cuidado como prática social, dificultando sua inserção como trabalho, com valor econômico, do mundo capitalista(17). Assim, se o cuidado está intrinsecamente atrelado às qualidades femininas, é considerada de menor valor social e, consequentemente, a remuneração é mais baixa. Na enfermagem, observamos que os homens procuram sempre atividades mais ligadas às tecnologias mais complexas na área de saúde, áreas de gestão e as que demandam um envolvimento político mais efetivo. Eles afirmam inclusive que os cuidados mais diretos, especialmente com as crianças, são mais apropriados para as enfermeiras.

Em pesquisa com enfermeiros, aqui usando o masculino porque foi feita apenas com homens, realizada em Montes Claros - MG, os resultados apontaram que, apesar de afirmarem que o cuidado não é atividade exclusivamente feminina, têm uma consciência de gênero mantenedora da divisão sexual do trabalho dentro da profissão. Eles afirmam que determinadas áreas e/ou horários de trabalho são mais adequados às mulheres em função de suas atividades domésticas e a educação do(a) s filho(a)s (afazeres desenvolvidos na esfera privada que ainda são de responsabilidade quase exclusiva das mulheres). Os enfermeiros demonstraram preferência por setores de emergência e urgência, ambulatórios, Centros e/ou Unidades de Terapia nos quais as tecnologias de ponta, de certa maneira, os afastam das relações mais próximas do cuidado do(a) outro(a)(18).

B. A enfermeira face a face com o homoerotismo: silêncios e reticências...

Se, durante as entrevistas, falar da sexualidade foi difícil, mais difícil foi depreender nos relatos o que colocava em evidência a perspectiva homossexual.

Das nove entrevistadas, três abordaram a questão em vivências diferentes: na gerência em enfermagem, no hospício (ao lidar com pacientes asilares crônicos) e em Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) em HIV/AIDS.

As falas muitas vezes foram marcadas por pausas e silêncios, revelando algo proibido. Isso é expresso a seguir, quando Hécate, ao se deparar com situações em que a função gerencial exige uma tomada de posição em relação à equipe de trabalho, destaca aquilo que lhe causa mais constrangimento e dificuldade para lidar: a orientação sexual que desvia da norma heterossexual.

E da parte dos funcionários a gente nunca preocupou em conversar com eles a respeito. quando surge, (não sei se eu poderia falar isso, depois se não puder você corta isso). Eu não sei se a gente poderia falar, mas a gente tem muitos casais homossexuais, certo? E de vez em quando, tem uma confusão entre eles que vem parar aqui na sala do departamento. E, vindo parar na sala a gente tenta conversar a respeito da parte comportamental de que a vida deles tem que ser fora (HÉCATE: 54, 1982).

O discurso é heteronormativo e a homossexualidade parece proibida e deve permanecer no silêncio e na obscuridade: o receio de que esteja se confrontando com os valores da própria entrevistadora reforçam a crença da anormalidade e da vergonha em ter que encarar a homossexualidade em meio aos difíceis enfrentamentos, no plano da sexualidade. Orientada por tais referências, Hécate reproduz, como mulher e como enfermeira, valores que normatizaram a sexualidade heterossexual e se traduzem nas práticas de cuidado, reforçando preconceitos ligados à homossexualidade.

Se ela decodifica a opção sexual que foge à norma da heterossexualidade como algo proibido, como um tabu, certamente terá dificuldade na escolha e treinamento de outra(o)s profissionais mais sensibilizada(o)s para identificar as necessidades e especificidades do(a)s usuário(a)s dos serviços em relação à sexualidade, aprofundando o problema quando se trata da homossexualidade. Essa perspectiva fica evidente na fala de Perséfone: Era tanta gente dentro de um pavilhão para duas atendentes de enfermagem tomar conta à noite, que não dava conta. Elas escreviam que o fulano de tal dorme toda noite na cama do outro. É falavam.

Dorme, eles dormem juntos, sabe? Mas era uma coisa interessante porque eram as observações de enfermagem, mas falava isso. Fulano dormiu com beltrano. Beltrano dormiu com fulano(...) Se tem uma pessoa hetero, mas está encarcerado cinquenta anos e a pessoa do seu sexo, onde você vai canalizar a sua sexualidade? É uma questão do desejo. É a questão do desejo. (PERSÉFONE: 56,1979, grifo nosso).

Nesse depoimento, uma retrospectiva ao tempo em que ainda existiam atendentes de enfermagem e o hospício chegava a ter quase dois mil pacientes asilares. Duas questões importantes podem ser recortadas nessa fala. A primeira é a posição das atendentes, que seria de fiscalização, e como o número de pacientes era muito grande, elas não davam conta e relatavam o fato de duas pessoas do mesmo sexo terem dormido juntas. A outra questão diz respeito à enfermeira deixar claro que a homossexualidade é circunstancial e não uma orientação do desejo sexual, por pessoas do mesmo sexo, como algo possível. A partir desse recorte, pode-se perceber que a pausa durante a fala e a dificuldade de se expressar revela que era muito difícil abordar o assunto.

Hécate e Pesérfone são de uma mesma geração com formação e exercício profissional iniciado em época anterior à abertura para a discussão acerca dos direitos sexuais. Entretanto, uma enfermeira mais jovem, Hera, demonstra dificuldade em lidar com tais questões.

Hera, que se graduou em 1997, aos 22 anos, e estava com 34 anos quando foi realizada a entrevista, falou sobre sua experiência em aconselhamento em um CTA, demonstrando a carga de dificuldade encontrada ao se deparar com situações concretas, em que seus valores como mulher e enfermeira são confrontados com os valores do(a) usuário(a): Em relação aos valores eu acho que eu entrei assim num pouquinho de choque quando eu vim aqui no CTA, quando eu comecei a atender a questão de homossexual, bissexual. Não quanto aos valores em si mas assim a questão de... (pausa, dificuldade para expressar as idéias, demonstra um certo constrangimento em falar) não julgar mas sim ver, de ter uma outra visão que eu não tinha (HERA: 34, 1997).

Estudos mostram que a formação de enfermeiras escamoteia a perspectiva da sexualidade na interface com o cuidado ou a desloca para a instrumentalização técnica reforçando as estruturas fisiopatológicas(1-5,19-20), corroborando com os resultados dessa pesquisa que demarca permanências desde o final dos anos 1970 na ausência da abordagem sobre a sexualidade, como podemos ler nos depoimentos: Nunca teve, nós nunca tivemos a questão de preparo de que eu vou lidar com o corpo do outro. E preparar que o corpo do outro é igual ao meu corpo. Ou então eu lidar com o meu corpo e vou lidar com o corpo do outro que é igual ao meu, é mulher. Porque parecia que o outro era um objeto. Não era uma pessoa, era um objeto onde eu estava ali dando os cuidados. E engraçado, fazendo técnica, desenvolvendo técnica! Sem muito é, sem você ter um, como é que fala um contato mais humano. Eu estava ali desenvolvendo técnica! Não queria saber se era homem ou se era mulher, eu estava fazendo o trabalho que era o que eu tinha que executar para a melhora da doença do outro (PERSÉFONE: 56, 1979).

A escola não ensinou porque eu acho que a escola tem medo da gente despertar para uma outra coisa. Na época que eu fui estudante eu acho que tinha muito receio da gente despertar para outra coisa (HÉCATE: 54, 1982).

A faculdade não preparou para essas situações da realidade. Os profissionais não estão preparados para isso. Por mais que as pessoas vejam, por mais que a gente , na televisão, na hora que chega para você a situação você fala assim: como fazer? A sexualidade na enfermagem fica sempre parecendo um mito. (KUAN YIN:39,1997, grifo nosso).

Não, não, isso não. Eu acho que isso cada um procura lidar da forma de conceitos prévios. A faculdade não imbui, não fala assim a abordagem como deve ser feita. Então eu acho que isso é de tato de cada um. Não lembro disso ser abordado. Mas na faculdade eu não lembro deles mandarem a gente ficar prestando muita atenção nisso não porque tinha essa questão meio que do anjo. Eu fazia muita piada com essa questão do anjo (AFRODITE: 33, 2002).

Tendo em vista não existir na graduação uma formação para lidar com a sexualidade, sobretudo com modos diferenciados de exercício da sexualidade que se colocam durante um atendimento individualizado, haverá constrangimentos: Quando você faz promoção é fácil. Quando você pega um relato dentro de um consultório individual em uma avaliação, e os casos assim são muito pesados, isso te põe assim um pouco em xeque mate não é? Fizemos um aconselhamento coletivo. A gente pega pessoas ali que resolveram fazer um teste e falar um pouco da sexualidade. é diferente. Você tem mais facilidade. (HERA: 34, 1997, grifo nosso).

Hera, em diálogo informal descreve as atividades educativas, chama de promoção e aconselhamento coletivo o que se assemelha mais com as palestras realizadas por profissionais de saúde nas comunidades, em escolas ou nas fábricas que, na maior parte das vezes, é centrada na fala do(a) profissional de saúde como detentor(a) do saber. Não é um processo dialógico em que a voz, os valores e a cultura do(a) outro(a) são realçados. O aconselhamento em Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST)/AIDS é uma prática relativamente nova na área da saúde, com uma perspectiva bastante diferente das palestras.

Desse modo, é possível afirmar que um despreparo para lidar com a sexualidade e, que no discurso de Hera, afloram as bases das formações identitárias como mulher e como enfermeira e os códigos morais que foram internalizados. Deparar-se, no processo de cuidar, com uma orientação sexual que contraria ao estabelecido, inibe, causa constrangimento e se coloca um conflito cognitivo: ela não pode julgar, mas não está preparada.

Ressalta-se que a década de noventa foi fortemente marcada pelos movimentos Gays, Lésbicas e Travestis (GLT) e Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Transgêneros (GLBTT) que, junto com o movimento feminista, passaram a reivindicar os direitos sexuais como direitos humanos. Essa perspectiva desencadeou uma forte discussão sobre novas políticas voltadas para a atenção à saúde como integral e inclusiva.

Em relação aos(à)s portadores(a)s do HIV, houve uma ampliação na perspectiva do atendimento de qualidade, com a implementação, em diversas cidades do país, dos CTAs. Esses centros abriram espaço para o trabalho das enfermeiras especialmente para fazerem aconselhamento. Os documentos intitulados Aconselhamento e HIV/SIDA publicados como atualizações técnicas pela Organização das Nações Unidas (ONU), em novembro de 1997, e Aconselhamento em DST e HIV/AIDS: diretrizes e procedimentos básicos", lançado pelo Ministério da Saúde do Brasil, em julho de 1998, trazem as normas gerais sobre o aconselhamento, descrevem o(a)s profissionais que seriam preparados para tal atividade (enfermeira(o)s, médico(a)s, assistentes sociais, e psicólogo(a) s) e apontam a necessidade da discussão sobre a sexualidade. Também chamam a atenção para o fato de que um atendimento com tais características demanda bastante tempo, mediante várias sessões de acompanhamento.

Apesar dos indícios de avanços em relação ao lugar da sexualidade no campo da saúde e da enfermagem, as enfermeiras que participaram desse estudo expressaram os valores da construção identitária, formação profissional e o que está posto socialmente como norma, revelando dificuldades na interseção entre cuidado e sexualidade na prática cotidiana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados do estudo mostraram que a sexualidade e as relações de gênero são transversais às maneiras de cuidar nas suas diferentes formas e lugares. Essa transversalidade e a interseção entre sexualidade e cuidado como prática social das enfermeiras ficou evidente quando tratamos do cuidado do corpo em sua materialidade e nas dificuldades apresentadas por algumas enfermeiras em lidar com situações da sexualidade que não se ajustam às normas da heterossexualidade.

Nesse sentido, a formação profissional precisa romper barreiras e preconceitos e sensibilizar e instrumentalizar futuras enfermeiras para o cuidado na diversidade sexual, superando a heteronormatividade. Novos padrões de conjugalidade vêm se consolidando na atualidade e nesse aspecto a perspectiva do cuidado integral precisa acolher tais mudanças e os novos arranjos familiares.

O discurso de algumas enfermeiras apontam como solução para a questão do toque do corpo do outro, da invasão da intimidade e da sexualidade inerente à condição humana mesmo nos encontros cuidativos, para a necessidade de cuidadora (e)s do mesmo sexo, ou seja, homens cuidam de homens e mulheres cuidam de mulheres, embora o quantitativo na profissão continue majoritariamente feminino.

Nesse aspecto, é importante pensar que, em relação aos cuidados mais ligados à intimidade do corpo, manter profissionais do mesmo sexo significa respeito ao/à outro(a) que não é mero objeto do cuidado mas, sim, um ser humano que sente, sofre, se envergonha e que, muitas vezes, se cala diante do poder que representam profissionais e instituições de saúde. Entretanto, essa postura por si não pode escamotear a importância que o corpo e a sexualidade representam para o cuidado de enfermagem porque o erótico não existe apenas na perspectiva da heterossexualidade.

Como a enfermagem na atualidade ainda é uma profissão majoritariamente feminina, compreender os desdobramentos da interdição da sexualidade na prestação dos cuidados contribui tanto para o aprofundamento teórico quanto para subsidiar novas abordagens cuidativas na perspectiva da integralidade, que possam desmistificar o lugar do corpo e da sexualidade na interface com o cuidado de enfermagem como prática social das enfermeiras.


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