Fragilidade da rede social de famílias de crianças com doença crônica
INTRODUÇÃO
A Organização Mundial da Saúde conceitua doença crônica como aquela que
normalmente possui desenvolvimento lento, dura períodos extensos e têm efeitos
de longo prazo, difíceis de prever. A maioria não tem cura, entretanto, várias
delas podem ser prevenidas ou controladas por meio da detecção precoce e
terapêutica adequada(1).
Quando uma criança e sua família vivenciam a doença crônica, têm seu cotidiano
modificado devido à interrupção das atividades diárias, internações
prolongadas, realização de exames, adesão à terapêutica, efeitos indesejáveis
advindos da própria medicação, limitações na compreensão do diagnóstico,
desajuste financeiro, angústia, sofrimento, dor e medo constante da
possibilidade de morte(2-3). Porém, a depender da condução no processo
diagnóstico e de tratamento de cada tipo de doença crônica, pode haver melhora
na qualidade de vida dessas crianças.
O funcionamento familiar sob condições incomuns de tensão, como ocorre por
ocasião do diagnóstico de uma doença crônica em um de seus membros, leva à
desorganização, pois o comportamento de cada um precisa ser readaptado em
função das demandas decorrentes da doença, como também das expectativas de um
indivíduo em relação a outro(4).
Na adaptação às modificações decorrentes da doença crônica, são necessárias
estratégias para o enfrentamento, as quais dependem da complexidade da doença,
da demanda de cuidados, da fase em que a doença se encontra, como também do
suporte e do apoio das redes sociais nas quais a criança e sua família estão
inseridas(5).
A rede social é a estrutura pessoal ou grupal por meio da qual o apoio social,
aspecto funcional das relações dessa rede, pode fluir. O apoio social
influencia no bem-estar emocional, associa-se à redução da mortalidade, à
prevenção de doenças e à recuperação da saúde, embora os mecanismos que levam a
isso não sejam totalmente explicados(6). No Brasil, o aspecto funcional do
apoio social compreende cinco tipos(7):
1. Apoio material: provisão de recursos e de ajuda material, como dinheiro ou
empréstimo de utensílios, em caso de necessidade emergencial;
2. Apoio afetivo: demonstrações físicas de amor e de afeto;
3. Apoio emocional: compreensão, confiança, estima, escuta e interesse;
4. Apoio de informação: disponibilidade de pessoas para a obtenção de
conselhos, de informações ou de orientações;
5. Interação social positiva: disponibilidade de pessoas com quem se divertir e
relaxar.
Envolve ainda as dimensões de disponibilidade e satisfação, ou seja, o
quantitativo de pessoas integrantes da rede a quem o indivíduo pode recorrer e
o nível de satisfação em relação ao apoio disponível(8). Essas duas dimensões
são essenciais para qualificar a percepção de apoio social e variam entre
indivíduos da mesma rede. Assim, para uns o apoio social só será percebido como
positivo quando muitas pessoas estiverem disponíveis para fornece-lo, enquanto
que, para outros, uma só pessoa é suficiente para satisfazer todas suas
demandas de apoio.
Uma terceira dimensão, a reciprocidade, também faz parte desse processo(9),
pois o apoio implica necessariamente troca, na qual são beneficiados tanto quem
o dá quanto quem o recebe. Assim, para que o apoio social seja recíproco,
precisa ir ao encontro das necessidades de cada indivíduo, que irá percebê-lo
como satisfatório e sentir-se-á importante em sua rede.
A rede social das famílias de crianças com doença crônica pode ser considerada
uma estratégia para melhorar sua qualidade de vida, tanto no início, quanto no
curso da doença. Contudo, apesar do aumento significativo de pesquisas sobre
rede social nas últimas décadas, pouco se sabe sobre a rede de famílias de
crianças com doença crônica, tendo em vista que uma das principais
características da doença crônica é o cuidado contínuo.
Frente ao pressuposto de que uma rede social fortalecida poderá contribuir para
o enfrentamento da condição crônica, este estudo buscou responder o seguinte
questionamento: Como se articula a rede social de famílias de crianças com
doença crônica? Nesse sentido, seu objetivo foi analisar as fragilidades da
rede social de famílias de crianças com doença crônica.
MÉTODO
Pesquisa qualitativa, realizada em um hospital público da Paraíba, no período
de abril a junho de 2011. O foco do estudo foi o indivíduo como parte de um
subgrupo familiar, no qual tanto indivíduos como relacionamentos são estudados,
tendo a família como contexto(10). Sete mães foram selecionadas como
representantes das famílias das crianças, por atenderem os critérios de
inclusão: cuidar da criança no domicílio e acompanhá-la no hospital.
Para a coleta dos dados foram utilizados inicialmente o genograma e o ecomapa,
técnicas que permitem a leitura rápida e abrangente da organização familiar e a
avaliação dos recursos familiares atuais ou em determinado contexto vivido pela
família(11). Para o aprofundamento dos aspectos identificados durante a
construção do genograma e ecomapa, utilizou-se como técnica complementar a
entrevista semiestruturada em profundidade norteada pela questão: Que pessoas
fazem parte de sua rede social e qual o apoio foi recebido para o enfrentamento
da doença crônica do(a) seu(sua) filho(a)?
As entrevistas tiveram duração de 40 a 60 minutos, foram gravadas em MP3,
transcritas na íntegra e seu conteúdo submetido à análise temática(12),
desenvolvida em três etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento,
inferência e interpretação dos dados. A etapa da pré-análise corresponde à
organização das ideias propriamente ditas, de forma sistemática. Tal processo
foi otimizado pela organização do material disponível para a análise. Assim, as
entrevistas foram transcritas na íntegra e realizou-se sua leitura flutuante.
Na etapa de exploração do material, foram destacadas as unidades de registro e
a temática em relevo, tendo em vista a recorrência dos dados empíricos. Esse
processo permitiu eleger as unidades temáticas contidas no conjunto dos
discursos, em um movimento de classificação. Posteriormente, foi construída a
unidade temática central, cujo desmembramento permitiu a identificação de temas
que foram agregados em duas categorias empíricas: (Des)articulação da rede
social de famílias de crianças com doença crônica; e Modificações na rotina da
família.
Os resultados obtidos permitiram que fossem feitas inferências e interpretações
à luz da fundamentação teórica que norteou o estudo. Para garantir a
privacidade e o sigilo das informações, os dados referentes a cada família
foram representados pela letra F, correspondente a família, seguida por uma
letra do alfabeto, conforme ordem de realização das entrevistas. Assim, o
primeiro familiar a participar do estudo teve sua família representada pelas
letras "F" e "A" e todos os nomes fictícios dos demais familiares foram
escritos com a inicial "A", e assim sucessivamente, até a Família G.
As famílias que participaram do estudo possuíam crianças com os seguintes
diagnósticos: insuficiência cardíaca (FA), fibrose cística (FB e FG), síndrome
nefrótica (FC e FF), anemia aplástica (FD) e síndrome de Edwards (FE). Passavam
pelos momentos de diagnóstico, adesão à terapêutica (Famílias FA, FB, FD e FG)
e recidivas (Famílias FC, FE e FF).
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do hospital sob
protocolo 082/2011 e todos os sujeitos assinaram o Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
(Des)articulação da rede social de famílias de crianças com doença crônica
Diante de um problema de saúde, a família aciona mecanismos próprios de
enfrentamento com os meios construídos em sua trajetória, com variações na
oferta e na disponibilidade de recursos. A experiência em cuidar da criança,
relacionada a reconhecer seu crescimento e desenvolvimento saudável, capacita
os familiares a perceber o aparecimento de uma doença. Geralmente é
identificada pela mãe, que consegue interpretar e responder de forma adequada
às necessidades do filho, por mais sutis que sejam. Contudo, quando as
competências da família esgotam-se e os pais percebem que não conseguem
resolver tal problema de saúde no domicílio, há uma mobilização em busca dos
serviços de saúde ou pessoas da rede social.
Os serviços de saúde, principalmente na atenção hospitalar, aparecem no
depoimento dos familiares como um dos primeiros locais acionados para que a
doença seja desvendada, explicada e tratada. Os pais acreditam que os filhos
estariam mais bem amparados no hospital do que na rede básica, por isso,
preferem ir diretamente ao hospital a fim de sanar problemas que poderiam ser
resolvidos na Atenção Básica(13). A dificuldade de acesso neste nível de
atenção, devido ao número limitado de atendimentos diários, torna-se uma das
justificativas utilizadas pelas famílias para buscar diretamente o hospital.
Contudo, o hospital não se configura como acesso de primeiro contato na
concepção da Atenção Primária à Saúde e rede de atenção do Sistema Único de
Saúde.
A família busca atendimento na Atenção Básica quando reside em cidades do
interior e de pequeno porte, que não possuem hospital. Entretanto, em alguns
casos, o modo de organização do serviço não contribui para que o problema de
saúde seja resolvido ou encaminhado a outro nível de atenção. Além disso, as
famílias sentem-se pouco acolhidas. Esses fatores influenciam diretamente a
rede social e a percepção de apoio social recebido pelas famílias, conforme
evidenciam os relatos:
Ela era sempre magrinha e pequena, e foi minha mãe e minhas irmãs que
viram a diferença [...] quando eu a vi já estava inchadinha, e aí eu
vim direto para cá (hospital-escola). Não fui nem no posto de saúde,
não (FC).
As manchas que saíram eram bem roxas e grandes [...]. Fui ao posto,
mas o médico disse que não sabia o que significavam aquelas manchas.
Perguntou se ela tinha levado alguma pancada, passou um remedinho,
ela tomou, mas não serviu de nada. Depois de uma semana voltei para o
posto e disse: Olha, a menina aqui está vomitando e está desse jeito.
Ele (médico) foi só fazendo os papéis e encaminhando [...]. Não era
pancada, era anemia muito forte, até as plaquetas dela estavam muito
baixas, estava em 5000 mil. Quando eu cheguei no hospital a doutora
disse logo: Mãe, por que a senhora deixou isso acontecer? Eu disse
que eu não sabia de nada e nunca tinha nem visto essas coisas. Depois
a médica encaminhou para cá (hospital-escola) (FD).
A busca pelo atendimento nos serviços citados nos depoimentos torna-se ainda
mais frustrante e difícil quando os profissionais de saúde envolvidos na rede
social não reconhecem as demandas de apoio da família. Por outro lado, os
profissionais que têm conhecimento dessa necessidade fornecem o apoio
informativo de forma equivocada, comprometendo o entendimento da condição de
saúde da criança e prejudicando o enfrentamento da doença.
As experiências narradas indicam principalmente falta de comunicação entre os
serviços de saúde, descaso na oferta de cuidado adequado à criança e à família,
longa espera pela definição do diagnóstico, ausência ou inadequação do apoio
informacional e emocional dos profissionais de saúde. Este apoio é fundamental
para que a família possa amenizar a tensão e a ansiedade frente ao
desconhecido, pois a espera pelo diagnóstico pode demorar anos.
Os dados deste estudo confirmam os achados de uma pesquisa(14) que atribui à
fragilização dos serviços de atenção básica a falta de acolhimento, pois a
escuta qualificada está comprometida e não há interesse pela demanda do outro.
Nesse processo identifica-se o enfraquecimento do vínculo e da
responsabilização, inviabilizando a produção do cuidado pautado na dimensão
dialógica do encontro entre profissionais e famílias de crianças com doença
crônica, restringindo a rede social que já se mostra desarticulada.
Tanto na Atenção Básica quanto na hospitalar há fragmentação das ações de
cuidado, na medida em que não há compartilhamento de informações sobre essas
crianças e os serviços não estão articulados em redes de atenção à saúde. As
famílias trilham uma caminhada tortuosa e desgastante até encontrar um serviço
ou um profissional disposto a fornecer uma informação sobre onde e a quem
recorrer. Esse fato é evidenciado na Família B que desde os primeiros sinais e
sintomas da doença procurava assistência nos serviços de saúde, mas nenhum
profissional encaminhou a criança para um especialista e nem orientou a família
sobre a necessidade de cuidados e exames específicos.
Dentre as formas apoio social para as famílias estão a articulação em rede dos
serviços de média e alta complexidade, para garantir que o diagnóstico da
doença e o tratamento específico possam ser agilizados, e a continuidade do
cuidado em saúde na perspectiva de co-responsabilidade na rede social, ou seja,
entre os serviços de saúde, os profissionais, a família e a coletividade.
Eu queria que ela (médica da ESF) tivesse encaminhado antes, tivesse
cuidado dele logo quando ele era novinho, com um ano de vida, quando
ele começou com isso. Eu queria ter recebido essa informação antes,
ele já estaria adiantando o tratamento. Mas na última consulta que eu
fui com ele, a médica nova disse assim: 'Mãe, eu não sei mais o que
fazer, a única coisa que posso fazer é encaminhar para o
pneumologista. Lá ele (referindo-se ao pneumologista) vai descobrir
tudo o que ele (a criança) tem'. Aí eu disse: 'Meu Deus! Meu sonho é
ir para esse médico!' Da última vez que ele ficou internado, a médica
do AM (hospital pediátrico estadual) disse que ele tinha que ir para
esse médico (pneumologista), mas não me deu encaminhamento (FB).
Algumas doenças crônicas demandam um tempo maior para a definição do
diagnóstico e, em determinados casos, essa demora pode implicar, diminuição da
sobrevida da criança, além de provocar na família sentimentos de ansiedade e
impotência, sendo necessário seu acompanhamento e apoio pela rede social.
Doenças como fibrose cística, que deveriam ser diagnosticadas com maior
agilidade e brevidade a fim de garantir qualidade de vida à criança, não têm
tido essa resolutividade devido à organização incipiente da rede de serviços de
atenção à saúde.
Há casos em que a criança e seu acompanhante passam longos períodos
hospitalizados à espera do diagnóstico da doença e muitas vezes voltam para
casa sem respostas, levando consigo o medo da morte e incertezas sobre o futuro
da criança. Quando isso acontece, as famílias buscam outros serviços de saúde
que possam resolver seu problema.
Quando os serviços de saúde focam o cuidado no usuário e sua família,
viabiliza-se a construção de espaços de escuta qualificada. O reconhecimento de
'não saber sobre a doença da criança' não significa deixar de escutar a família
e dar espaço para que esta compartilhe sentimentos, demandas e anseios. Esse
modo de organização do processo de trabalho permite o estabelecimento de
vínculos e corresponsabilização, contribuindo para que a família se sinta
acolhida.
No AM (hospital pediátrico estadual) foi péssimo porque ela passou um
mês inteiro sendo furada e ninguém descobriu o que ela tinha, eu não
sabia nada da doença e se eu perguntasse a causa da doença os médicos
diziam: Não sei explicar. Aí quando ela estava em casa, levei-a para
outro hospital, e lá tinha uma plantonista trabalhando que era daqui
do HU (hospital-escola). Essa médica me disse que aqui em João
Pessoa, eu só encontrava tratamento para ela aqui. Aí pronto, foi
Jesus quem botou ela na vida da gente (FF).
Da primeira vez, o médico do posto poderia ter feito mais [...]
encaminhado logo ela e ter pedido exames. E da segunda vez foi bom,
ele encaminhou logo. Eles fizeram o melhor que puderam. Porque só
passando remédio, passando remédio, sem descobrir nada do que era não
estava pior? (FD).
Famílias que não conseguem ter acesso aos serviços ou que são atendidas sem
resolutividade estão tendo seus direitos violados, se considerarmos as
normativas do Ministério da Saúde que preconiza a garantia da manutenção da
Atenção Básica em Saúde como a porta de entrada do sistema de saúde, de fácil
acesso, disponível e resolutiva para o atendimento às necessidades de saúde da
população(15). Tal violação compromete a assistência adequada e posterga sua
ocorrência, afetando negativamente o diagnóstico e o prognóstico da criança,
bem como o manejo do problema, com consequente busca por serviços de saúde em
outro nível de atenção.
Modificações na rotina da família
Os serviços de saúde têm contribuído para estabelecer e fortalecer os vínculos
com essas famílias, que desde o início da doença da criança começam a sofrer e
enfrentar mudanças imprevisíveis em sua rotina(16), tornando ainda mais
doloroso conviver com a doença. Essas mudanças abrangem a forma de organização
familiar para o cuidado da criança doente e as reações dos irmãos saudáveis em
relação à doença.
A reconfiguração de papéis nem sempre é dialogada no seio da família, mas
imposta(17), ou seja, a mãe que antes já assumia o cuidado dos filhos, continua
com essa atribuição a partir da definição do diagnóstico de doença crônica.
Essa centralidade da responsabilidade pelo cuidado em um dos membros pode até
mesmo levar à desintegração familiar, pois a mãe precisa se dedicar às muitas
necessidades da criança doente o que a leva a se ausentar do lar por um tempo
indeterminado. Embora sobrecarregada, a mãe ainda precisa lidar com as diversas
reações dos outros membros da família, tais como dificuldades na aceitação e
falta de compartilhamento dos cuidados à criança doença.
A (pai da criança) não cuida dos meninos e agora está com dificuldade
para cuidar de A. Ele tem o sábado e o domingo para cuidar e não
cuida, prefere ir jogar bola e beber. Aí, quando precisa, fica com
dificuldade para cuidar dela (FA).
O pai de C. nunca foi um pai presente, nunca deu nada a C., e às
vezes quando eu ia lá deixar ela, por duas vezes e ele veio com
queixa dizendo que não tinha ninguém para ajudar e não podia ficar
com ela (FC).
Quem cuida dele sou eu. Eu me preocupo muito, principalmente quando
ele está doente, tossindo muito, de noite ele não dorme [...]. Às
vezes o pai também se preocupa muito, mas eu que fico lá acordada com
ele. Sempre o pai é diferente da mãe, o pai se preocupa também, mas é
diferente (FB).
Apesar das atribuições da mãe como cuidadora dos filhos, é fundamental que o
pai também contribua e que ambos possam construir um plano de responsabilização
conjunta pela manutenção dos cuidados à criança, constituindo uma fonte de
apoio social importantíssima e fundamental para a família nuclear.
Nos depoimentos acima, identifica-se que o genitor permanece à margem dessa
responsabilização, mantendo uma postura de distanciamento dos cuidados com a
criança, e continua desenvolvendo suas atividades cotidianas, abrindo espaço
para interpretação de que a doença crônica do filho pouco modificou suas
atribuições e rotina. Tal posicionamento pode afetar o enfrentamento de toda a
família, especialmente da mãe, que vivencia os efeitos da sobrecarga do cuidado
à criança e ainda precisa assumir grande parte das tarefas domésticas e dos
cuidados com os filhos saudáveis.
Estudo(18) enfatiza que a mãe assume sozinha os cuidados por perceber
facilmente a indisponibilidade da própria família em fornecer apoio social.
Aceita essa incumbência passivamente porque considera que a responsabilidade de
cuidar é exclusivamente sua. A centralização na figura materna é uma das
consequências, já que a mãe acredita que não há outro familiar disponível para
realizar o cuidado e que ninguém cuida tão bem quanto ela. Desse modo, toma
para si o que poderia ser compartilhado com todos os membros da família. A
falta de apoio para essas mães pode acarretar em esgotamento físico e mental
(19) e, além de trazer prejuízos para sua saúde, pode repercutir na qualidade
do cuidado prestado à criança.
Cabe à equipe de saúde dialogar com a mãe acerca da elaboração de estratégias
que envolvam toda família na discussão sobre a importância de dividir
responsabilidades, estimular o revezamento no cuidado da criança, diminuindo
assim a sobrecarga da cuidadora principal. Além disso, é importante
sensibilizá-la para que reconheça a necessidade e esteja aberta para aceitar o
apoio da família, dos amigos e vizinhos, para o compartilhamento dessa tarefa.
A tristeza e a culpa também são sentimentos comuns às mães, pois precisam
deixar os outros filhos sob os cuidados de algum integrante da rede, geralmente
as avós, enquanto permanecem no hospital com a criança doente por muitos dias.
Ainda que contem com o apoio instrumental da rede, é preciso encontrar
alternativas para a diminuição desses sentimentos, que reforçam na mãe a
centralização do cuidado e a despersonalização resultante da dedicação
exclusiva à criança, oprimindo-se e esquecendo-se de sua própria vida.
É difícil para mim, porque deixo meus outros filhos com minha mãe
(FG). Estou agoniada, sem fazer nada, você já viu alguém que precisa
fazer suas coisas e não pode fazer, não ficar agoniada? Desde que
descobriu a doença ela está aqui, já faz dois meses (FD).
A rede social dessas famílias deve estimular o compartilhamento de
responsabilidades e dar suporte para que a mãe sinta-se segura e capaz para
cuidar da criança e de si e, mesmo estando distante do lar, confie que a sua
família está sendo bem assistida. Os profissionais de saúde podem cooperar
envolvendo toda a família no plano de cuidados à criança, ajudando-a a
desconstruir a centralidade.
Uma das maneiras de contribuir para que essas mulheres cuidadoras sintam-se
menos cobradas diante da responsabilidade de assumir sozinhas o cuidado da
criança enferma é desvestir o discurso da ideologia dominante que reforça a
opressão e dificulta o empoderamento. Esse discurso também causa alienação dos
cuidadores, alimentando a cultura do silêncio e da aceitação passiva,
reforçando o papel da boa mãe, excluindo o restante da família do processo de
cuidar da criança em um processo de responsabilização e culpabilização da mãe-
mulher-cuidadora(19).
Os irmãos saudáveis também precisam ser assistidos, uma vez que podem reagir
negativamente à doença ou ao irmão(a) doente. No presente estudo, o
representante da família citou os filhos saudáveis como aliados no processo de
cuidar do irmão doente, acreditando na cura da doença e compreendendo as
diferenças no cuidado dos pais.
E. alimenta e cuida muito bem dele, se eu precisar sair, ela fica com
ele, se ele precisar tomar medicação eu escrevo tudo no papel e ela
dá, dá a dieta dele direitinho, confio deixar mais com ela do que com
minha mãe porque E. cuida melhor dele. Ela sabe mais do que minha mãe
(FE).
Diante da doença, alguns irmãos, geralmente os mais velhos, apresentam-se mais
maduros, com responsabilidade, independência, e passam a demonstrar maior
simpatia por outras pessoas. O desejo de proteger e cuidar do irmão doente
inclusive os leva a compreender os sentimentos da mãe(8). Embora devam apoiar
essas reações positivas à doença, os familiares precisam entender que delegar
aos outros filhos a responsabilidade de executar cuidados complexos, como a
alimentação e administração de medicamento por sondas, pode não ser prudente e
representa riscos para vida da criança doente, já que até mesmo as mães possuem
dificuldades em desenvolver tais habilidades. As mães de crianças com
necessidades especiais de saúde realizam esse tipo de cuidado com base em
saberes e práticas que não pertencem ao seu cotidiano existencial e tal cuidado
é totalmente dependente de acertos e erros para garantir ou não a sobrevivência
da criança(19).
Eles são unidos. Ele defende e não deixa ela comer certas coisas,
quando tem festa na igreja e ela quer comer ele diz:' F., tu não pode
comer! Às vezes ela fala o que ele pode e ela não pode, ai eu digo,
que ela tem problema (referindo-se a doença) e é gordinha, ele é
homem pode comer mais. Ela acaba se conformando, todo mundo explica,
tanto a parte da minha família como a de meu marido ajuda (FF).
D. (filha) é quem mais me ajuda. Ela quem trouxe a D., e a outra
(referindo-se a outra D.) é quem vem ficar aqui (hospital-escola).
Ela vem e passa três, quatro dias e vai embora, e eu me sinto bem
[...] o direito (referindo-se ao dever) do filho é ajudar a mãe e o
pai. E eu só conto com minha família mesmo, não peço nada a ninguém,
não (FD).
A família também precisa saber como dar explicações para a criança doente sobre
sua condição de saúde e implicações desta para sua vida, para que ela possa
compreendê-las sem se sentir estigmatizada e diferente dos irmãos saudáveis e
das outras crianças de sua faixa etária. O apoio informacional que a criança
deve receber precisa condizer com as suas necessidades, cognição e idade.
Contudo, até que ponto a família tem recebido orientações para fazê-lo, se a
maioria nem conhece a doença do filho?
Há situações em que a possibilidade de cura está na própria família, a exemplo
da Família D: D' possui anemia aplástica, um tipo de anemia rara e
potencialmente fatal, que pode ser curada com transplante de medula óssea.
Nessa família, três irmãos são doadores compatíveis com a criança e a esperança
da cura é o que tem movido toda a família a enfrentar a doença e o longo
período de hospitalização que a criança e sua mãe vêm passando.
Por isso que ter muito filho é bom e é ruim. Ruim porque nenhum ajuda
[...] eles não têm trabalho [...] e é bom porque, três irmãos são
compatíveis com ela. E se eu não tivesse muito filho? Ia esperar por
algum que pudesse doar. A melhor parte foi essa. Eu me senti no céu
(FD).
Alguns irmãos saudáveis percebem a doença do irmão como algo que causa a
separação entre os familiares, causando-lhes instabilidade emocional e medo
(20). Intervenções que previnam ou minimizem esses efeitos precisam ser
elaboradas juntamente com a família, que apontará as demandas de apoio. De
acordo com as demandas apresentadas, os integrantes da rede social, entre eles
os profissionais de saúde, poderão prover esse auxílio, atendendo às
necessidades dos irmãos e estimulando toda a rede para que possa estar
articulada, fortalecida e apta para ofertar o apoio social.
B. não tem preconceito com nada dele. Às vezes ela fala que, quando
eles estão arengando, ela diz que eu vou reclamar com ela, aí ela
diz: 'Eu sei, eu sei mãinha, que a senhora dá mais atenção à ele, eu
sei que a senhora gosta mais dele mesmo'. Veja bem, eu não gosto mais
dele, não! É igual os dois! Mas ela (referindo-se à B.), na hora da
confusão em casa, percebe que eu gosto mais dele. [...]. Eu não sei
se ela fala isso porque nota alguma coisa diferente, acho que eu
também dou mais atenção a ele na hora da precisão, e ela tem saúde.
Ele não precisa de mais atenção, mais cuidado. Talvez seja isso que
ela perceba e diga que é diferente (FB).
O profissional de saúde integra a rede social e pode realizar a articulação com
outros serviços e níveis de atenção à saúde e intermediar conflitos entre os
membros da família, a fim de integrá-la e possibilitar melhor aporte de
cuidados.
No intuito de viabilizar o cuidado relacionado às restrições alimentares da
criança doente, as mães desenvolvem estratégias a partir do que lhe é
recomendado, e aplicam para os demais filhos que são saudáveis. Essa atitude
nem sempre é recomendada, tendo em vista que o irmão saudável poderá reagir com
revolta e chantagem emocional, por se sentir ameaçado em sua individualidade e
preferências alimentares para se adaptar à nova dieta imposta pela doença,
dificultando ainda mais a aceitação do irmão doente e sua condição. Ressalta-se
com isso a necessidade premente de estimular essas crianças para participar e
contribuir para o cuidado, sem perder sua individualidade.
A comida é diferente, mas do jeito que eu faço para C., faço para C'e
C", sempre sem sal. Eu já me acostumei, mas do jeito que eu cuido de
uma, eu cuido da outra [...]. Tem só algumas comidas que C. não pode
comer, aí eu até nem compro para ela não ficar chateada, brigando com
as irmãs por conta disso. Às vezes eu compro e escondo e dou só para
as duas menores [...] C' fica dizendo: Olha, eu tenho e nem te dou.
Fica debochando, aí C. está perto e elas brigam por conta de comida
(FC).
Enquanto as práticas educativas estiverem pautadas na negação das condições da
doença, a família sentirá dificuldades para lidar com situações corriqueiras,
como a referida pela Família C. O que se propõem é que possam se adaptar às
restrições da doença e encontrar alternativas para viver em equilíbrio, sem,
contudo, negar suas repercussões. Para que essa adaptação ocorra com menos
sofrimento, a rede social precisa estar presente e atenta às demandas que
surgirão, fornecendo o apoio social satisfatório do ponto de vista da família.
A constante (des)organização da dinâmica familiar devido à doença crônica deve
ser considerada como demanda, e é importante que a rede social apoie a família
para a co-responsabilização dos envolvidos, encorajando o revezamento dessas
pessoas no cuidado à criança, a fim de estimular a aceitação da doença por
parte dos irmãos saudáveis, delegando pequenas responsabilidades no cuidado com
o irmão doente, além de envolver a família em grupos colaborativos que
desenvolvam atividades de educação em saúde que os orientem quanto aos aspectos
que envolvem a doença, o tratamento e os cuidados.
Nesses grupos é imprescindível que o conhecimento da família seja respeitado e
que não haja imposições de saberes, mas o estabelecimento de uma relação
horizontalizada, no mesmo plano de importância e valorização dos conhecimentos
do profissional de saúde e da família. Quando colocados no mesmo plano, esses
saberes complementam-se, possibilitando a produção de um cuidado mais rico e
ampliado.
CONCLUSÕES
Considerando que a definição do diagnóstico da enfermidade desencadeia
modificações na rotina das famílias e no comportamento de seus membros,
principalmente dos irmãos saudáveis e do cuidador principal da criança (a mãe),
enfatiza-se a relevância do apoio social e o fortalecimento da rede para o
enfrentamento da doença.
No início da trajetória dessas famílias em busca de atendimento nos serviços de
saúde percebeu-se que não houve acolhimento, tampouco, a formação de vínculo
entre família/profissionais. A comunicação também não foi efetiva para permitir
que a família obtivesse conhecimento sobre o que estava acontecendo e o que
estava por vir. O primeiro encontro da família com o serviço de saúde é
fundamental e pode ser decisivo tanto para o profissional de saúde, que deveria
estar disposto a entender, ajudar e estar presente como parceiro nessa
trajetória, como para a família, que pode vir a encontrar um forte aliado no
enfrentamento da doença.
Cabe aos profissionais e gestores de saúde adequar a oferta de serviços às
necessidades da família, a fim de oferecer o apoio necessário para suas
demandas. Esse foco na produção do cuidado permite ir além do atendimento das
necessidades de saúde, ampliando-se em direção à conquista da confiança mútua,
pautada na busca efetiva do sucesso terapêutico almejado.
A rede social das famílias que enfrentam a doença crônica da criança é composta
por diferentes pessoas e instituições, e o apoio social fornecido por essa rede
é significativo, porém nem sempre é contínuo e condizente com as necessidades
das famílias. É necessário que haja o fortalecimento e o comprometimento dos
integrantes da rede para que o apoio ofertado à família seja adequado a suas
demandas, contínuo no processo vivencial dessa experiência e provedor de
suporte social capaz de encorajar o enfrentamento das adversidades que surgem
no processo de enfrentamento da condição crônica da criança.
A construção da rede social desde o início da trajetória e sua manutenção em
toda a caminhada com a doença crônica vivenciada pela família é diretamente
influenciada pelo vínculo estabelecido nas relações em cada encontro de
cuidado. Portanto, formas de estreitar esses vínculos precisam ser elaboradas,
para despertar o espírito de solidariedade e colaboração entre os integrantes
dessa rede.