Caracterização de profissionais de enfermagem que atendem pessoas com úlceras
vasculares na rede ambulatorial
INTRODUÇÃO
Estima-se que 1% da população tenha úlceras vasculares. Entre estas lesões, as
mais frequentes são as úlceras de origem venosa, que podem representar até 90%
dos casos. É importante que os profissionais disponham de preparo adequado para
o atendimento a essa população(1-3).
A assistência às pessoas com lesões de pele exige abordagem holística,
planejamento de estratégias e de intervenções que possibilitem alcançar os
objetivos propostos(4). O enfermeiro é responsável pelo tratamento e prevenção
de feridas, devendo, no contexto de suas competências profissionais, avaliá-
las, prescrever os cuidados e o tratamento mais adequado, orientar o paciente
e/ou seus familiares, supervisionar a sua equipe na realização de curativos e
possuir conhecimento científico e habilidades no manejo das lesões(5).
Pesquisas de enfermagem sobre úlceras vasculares descrevem a ocorrência e as
características das lesões(6), as características da população que sofre esse
tipo de agravo(7), avaliam resultado da utilização de produtos na cicatrização
das lesões(8), mas, pouca atenção tem sido dada à investigação das
características da força de trabalho que é responsável pelo atendimento às
pessoas com esse tipo de feridas(9).
Diante deste contexto, esta pesquisa teve como objetivos analisar as
características demográficas e profissiográficas dos profissionais de
enfermagem no atendimento as pessoas com úlceras vasculares, em salas de
curativo da rede de atenção primária municipal, em uma grande cidade.
MÉTODO
Trata-se de um estudo transversal, descritivo e de abordagem quantitativa,
realizado de setembro de 2010 a fevereiro de 2011, nas 40 unidades de saúde que
possuem salas de curativo, onde ocorre atendimento de enfermagem às pessoas com
úlceras vasculares, numa grande cidade da região Centro-Oeste.
A população desta pesquisa consistiu de 266 profissionais de enfermagem que,
independentemente do sexo, idade e tempo de atuação na unidade, prestavam
atendimentos às pessoas com úlcera vascular.
Na fase inicial de recrutamento, identificou-se que 15 (5,63%) profissionais de
enfermagem se encontravam de licença médica, duas (0,74%) de licença por outros
motivos e 11 (4,13%) de férias. Foram então convidados para o estudo 238
profissionais, dentre os quais 20 (8,4%) se recusaram a participar, sem motivos
específicos. Assim, foram incluídos no estudo 218 profissionais de enfermagem
que aceitaram participar e manifestaram sua anuência assinando o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido.
O instrumento de coleta de dados, previamente refinado por um conjunto de cinco
expertos, foi um questionário contendo itens relativos às características
demográficas, profissiográficas e de experiência na área de tratamento de
úlceras vasculares.
Os dados da pesquisa foram organizados em banco de dados em planilha Excel e
posteriormente transferidos e analisados pelo software Statistical Package of
Social Sciences for Windows®, versão 17.0, o qual permitiu a realização de
estatística descritiva com distribuição de frequências simples e percentual e
medidas de tendência central (mediana, média) e dispersão (desvio padrão) dos
dados de caracterização demográfica e profissional. Utilizou-se o teste qui
quadrado para analisar diferenças de proporções, mediante dicotomização das
variáveis de interesse.
Este estudo foi aprovado pela Secretaria Municipal de Saúde do município
estudado e pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Goiás
(Protocolo nº 101/2010).
RESULTADOS
Dos 218 profissionais de enfermagem, 85 (39,0%) atuavam nas unidades como
enfermeiros, 97 (44,5%) como técnicos de enfermagem e 36 (16,5%) como
auxiliares de enfermagem.
O gênero feminino foi predominante, tanto entre técnicos e auxiliares como
entre os enfermeiros, totalizando 201 profissionais (92,2%). A idade variou
entre 22 a 62 anos, com a mediana de 40 anos e média de 40,7 anos (DP ±10,6); a
faixa etária mais frequente foi a de 49 anos ou mais para técnicos e
auxiliares, enquanto que para a enfermeiros a faixa etária com maior número de
participantes foi de 26 a 33 anos (Tabela_1). Considerando a faixa até 41 anos,
o contingente de enfermeiros foi de 65,9%, enquanto que os técnicos somaram
45,9%. O grupo de enfermeiros era mais jovem, sendo a diferença significativa
(p=0,003).
![](/img/revistas/reben/v66n6/02t01.jpg)
Em relação ao tempo de atuação profissional, predominou entre os técnicos e
auxiliares o período≥20 anos, enquanto para enfermeiros a frequência maior é de
atuação profissional há um tempo menor que cinco anos (Tabela_1). Apesar desse
longo tempo de formação, dos técnicos e auxiliares, 68,4% atuavam na unidade,
onde estavam lotados no momento, há um período menor que cinco anos.
Considerando a proporção de enfermeiros e técnicos/auxiliares de enfermagem que
apresentam o tempo de atuação profissional de até 5 anos, não houve diferença
significativa (p=0,052).
Aproximadamente 70%, tanto de enfermeiros como técnicos e auxiliares atuavam
nas salas de curativo, prestando atendimento às pessoas com úlceras vasculares
há um período de tempo de até cinco anos. A escala de trabalho para atuação na
sala de curativo variou de diária, semanal, mensal, trimestral e fixa. Assim,
havia profissionais que prestavam atendimento no local desde diariamente até
uma vez a cada três meses.
Oito (9,4%) enfermeiros atuavam de modo fixo na sala de curativo, no cuidado
direto às pessoas com úlceras vasculares e 77 (90,6%) referiram comparecer à
sala de curativos apenas para avaliar os casos, conforme solicitação dos demais
profissionais e/ou para realizar orientações às pessoas com úlceras vasculares.
Dessa maneira, toda a assistência de enfermagem era realizada predominantemente
por auxiliares e/ou técnicos de enfermagem.
Como houve variação da escala de local de atendimento pelos profissionais,
aproximadamente 20% de técnicos e auxiliares de enfermagem e 15% de enfermeiros
estiveram prestando atendimento às pessoas na sala de curativo no dia da coleta
de dados da pesquisa ou no dia anterior. A maioria participou dessa atividade
havia mais de um mês (Tabela_2).
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Considerando o tempo transcorrido desde o último atendimento a pessoa com
úlcera vascular, tomando-se como referência os períodos de até sete dias e há
mais de sete dias, não houve diferença significativa (p=0,343) entre as
categorias profissionais.
Em relação à experiência relatada pelos profissionais de enfermagem na área de
avaliação e tratamento de úlceras vasculares (Tabela_3), entre os auxiliares/
técnicos de enfermagem, predominou o relato de "razoável experiência" (51,9%),
enquanto para enfermeiros a maior proporção foi de "pouca experiência" (45,9%).
O autorrelato de "muita experiência" foi referido por menos de 15% em ambos os
grupos.
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Considerando o nível de experiência em "pouca" e "razoável/muita" experiência
segundo a categoria de profissionais de enfermagem não foi encontrada diferença
significativa (p=0,120).
No que se refere à realização de curso ou atividade de atualização, segundo o
tempo de formação profissional, conforme pode ser visto na Tabela_4,
aproximadamente 60,0% dos profissionais referiram nunca ter realizado um curso
ou atividade de atualização relacionada à avaliação e tratamento de feridas.
Esse percentual é semelhante levando em conta dos diversos períodos de formação
profissional, exceto para aqueles com menor tempo de formação profissional
(menos de um ano).
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Quanto às instituições que promoveram os cursos e/ou atividade sobre avaliação
e tratamento de feridas, conforme referido pelos profissionais de enfermagem,
38 (42%) participaram de atividades oferecidas pela Secretaria Municipal de
Saúde, 19 (21%) por instituições de ensino superior, 18 (20%) por hospitais,
seis (7%) por cooperativas médicas, quatro (4%) em eventos científicos, dois
(2%) por instituições de ensino profissionalizante, um (1%) por entidades de
classe em enfermagem, um (1%) pela Secretaria Estadual de Saúde, uma (1%)
pessoa não preencheu esta informação e uma (1%) referiu não se lembrar da
instituição que promoveu o curso. Assim, pode-se dizer que a própria
instituição empregadora foi a maior responsável pelos esforços de qualificação
do pessoal de enfermagem nessa área.
Em relação à carga horária dos cursos realizados pelos profissionais de
enfermagem identificou-se que 53 (59%) profissionais de enfermagem referiram
ter realizado cursos e/ou atividade de qualificação com carga horária menor que
oito horas, 16 (18,0%) com carga horária entre 8 a 24 horas, 14 (15%)
participaram de cursos com carga horária maior que 24 horas, quatro (4%)
referiram não se lembrar da respectiva carga horária do curso e quatro (4%)
profissionais deixaram o questionário em branco. Dentre os conteúdos abordados
nos cursos e/ou atividade de atualização, predominaram aqueles com foco no
tratamento da lesão (Tabela_5).
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DISCUSSÃO
Os resultados apontam para um perfil de profissionais semelhante a outros
contextos do atendimento de enfermagem, nos quais, se observa o predomínio do
gênero feminino e de técnicos e auxiliares de enfermagem em relação aos demais
componentes da equipe(10).
Nas unidades pesquisadas predomina no conjunto de técnicos/ auxiliares de
enfermagem com idade maior que 41 anos, com tempo de formação profissional
maior, em comparação com os enfermeiros, contudo, com tempo de atuação
específica na unidade menor que cinco anos, para ambos os grupos. Isso pode ser
devido a períodos de contratação cíclicos, nos quais são incorporados tanto
novos enfermeiros como técnicos e auxiliares de enfermagem. Admite-se ainda a
rotatividade de profissionais, ou seja, os trabalhadores permanecem por um
período de tempo na rede municipal, até encontrar oportunidades que eles
consideram melhores.
A escala de trabalho de rodízio de locais de trabalho nas unidades básicas,
aliado ao pequeno número de enfermeiros que atuavam do modo fixo na sala de
curativos, podem trazer implicações negativas no atendimento e acompanhamento
das pessoas com úlceras vasculares, e apontam para o não cumprimento de
atribuições diferenciadas de acordo com a categoria profissional no atendimento
às pessoas com úlceras, contrariando as recomendações nacionais e
internacionais(1,11).
O Conselho Regional de Enfermagem do estado de Minas Gerais, Brasil, publicou
um documento, constando as atribuições do enfermeiro no atendimento as pessoas
com lesões. Elas incluem a responsabilidade por procedimentos técnicos
referentes à avaliação e tratamento da pessoa com lesão cutânea, incluindo
avaliação da pessoa, indicação do tratamento tópico, realização do procedimento
de curativo (limpeza e cobertura) e desbridamento quando necessário. Cabe ao
técnico ou auxiliar de enfermagem, segundo esse documento, a realização do
curativo (limpeza e cobertura) e desbridamento autolítico e químico, conforme
prescrito pelo enfermeiro(11). Assim, compreende-se que a avaliação com o
respectivo direcionamento do tratamento tópico seria atribuição do enfermeiro,
que desta maneira, teria que prestar cuidados diretos e supervisionar os demais
trabalhadores nessa área.
De acordo com a Lei 7.498/86(12), que regulamenta o exercício profissional de
Enfermagem, define, no seu Artigo 4º, que a programação de enfermagem inclui a
prescrição da assistência de enfermagem e, assim, todo o tratamento dispensado
às pessoas nas salas de curativo deveria ser conduzido mediante a prescrição do
enfermeiro. Considerando que a Resolução COFEN 159/1993(13) define em seu
Artigo 1º que em todos os níveis de assistência à saúde, seja em instituição
pública ou privada, a consulta de enfermagem deve ser obrigatoriamente
desenvolvida na assistência de enfermagem, e que a Resolução COFEN 358/2009(14)
estabelece a obrigatoriedade da implantação do processo de enfermagem em toda
instituição de saúde pública ou privada, depreende-se que as pessoas atendidas
nas salas de curativos de unidades de atenção primária à saúde deveriam ter
acesso à consulta de enfermagem, derivando dela, o plano terapêutico a ser
seguido pela equipe de enfermagem.
Ainda em conformidade com a Lei 7.498/86(12), no Artigo 14, fica estabelecido
que as atividades do técnico e auxiliar de enfermagem somente podem ser
desempenhadas sob orientação e supervisão do Enfermeiro, assim, não seria
possível a prestação de cuidado de enfermagem sem o acompanhamento direto desse
profissional.
A discreta participação do enfermeiro no tratamento das úlceras vasculares pode
contribuir negativamente no processo de cicatrização, manutenção da
cronicidade, recidiva das lesões e insatisfação do usuário.
Os dados nessa pesquisa indicam fragilidades no preparo da equipe de enfermagem
para o atendimento às pessoas com úlceras vasculares. Foram encontrados dados
semelhantes em um estudo com uma população de 20 enfermeiros, entre os quais 18
(75%) consideravam ter pouco conhecimento sobre curativo, embora a metade
afirmasse já ter realizado curso ou atividade no tratamento de feridas(15).
Em outro estudo, foi identificado dificuldade das enfermeiras em proceder à
avaliação de feridas, a qual esteve relacionada à falta de experiência e de
treinamento específico, confirmando a possível insuficiência de conhecimentos a
respeito desta temática(16).
Espera-se dos profissionais de enfermagem conhecimentos sobre a fisiopatologia
da úlcera de perna, avaliação lesão, uso do Doppler para mensuração do índice
tornozelo/braço (IT/B), identificação da cicatrização normal e anormal, seleção
do curativo, promoção de cuidados com a pele e com o indivíduo de modo
integral, educação para a saúde, prevenção de recorrência e os critérios para
encaminhamento à especialista para avaliação(1).
O rodízio dos locais de trabalho, entre os profissionais, pode favorecer a
descontinuidade do atendimento às pessoas que apresentam úlceras vasculares,
uma vez que, a cada retorno na unidade, a pessoa pode receber orientações e
assistência diferentes, uma vez que os profissionais se baseiam em sua
experiência clínica para a tomada de decisões terapêuticas.
A escala de local de trabalho fixa e diária poderia contribuir para o alcance
de uma assistência de enfermagem com mais visibilidade e resolutividade. Isso
permitiria também acompanhar a evolução das etapas do processo cicatricial e a
partir destas características da lesão fazer a opção pelo melhor tratamento e
prestar as orientações necessárias, além de promover um maior vínculo entre
profissionais de saúde e paciente, importante para promoção da confiança e
adesão ao tratamento.
Diretrizes internacionais recomendam que o profissional de saúde tenha treino e
experiência adequados em relação aos cuidados às pessoas com úlceras crônicas
(1-3). A educação permanente em serviço mostra-se uma ferramenta útil para
qualificar o atendimento do profissional de enfermagem contribuindo para uma
assistência comprometida, competente e respaldada em conhecimentos teóricos
científicos(17).
A educação permanente permite o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem
dos profissionais, o desenvolvimento de capacidades docentes e de enfrentamento
criativo das situações de saúde, o trabalho em equipes matriciais, a melhoria
permanente da qualidade do cuidado à saúde e a constituição de práticas
tecnológicas, éticas e humanísticas(18).
Além das atividades de educação permanente, a possibilidade de criação de
equipes de apoio matricial e/ou equipe de referência para o atendimento
interdisciplinar de pessoas com feridas crônicas poderia favorecer maior
eficácia, eficiência do trabalho em saúde. Atendimentos e intervenções
conjuntas entre os especialistas matriciais e os profissionais que atuam na
assistência às pessoas com úlceras vasculares nas diversas unidades de saúde
poderia se configurar em oportunidades de educação permanente.
É possível que o especialista matricial troque conhecimentos e orientações
entre a equipe, com diálogo sobre alterações na conduta, o que avaliar no caso
e reorientações de condutas antes adotadas, permanecendo o caso sob o cuidado
da equipe de referência(19), durante um determinado período, quando então a
equipe matricial se deslocaria para outra unidade.
Os cursos oferecidos para atualização dos profissionais parecem estar mais
preocupados com a forma adequada do tratamento tópico, não abordando outros
temas como a abordagem clínica de enfermagem do cliente, a promoção de um
cuidado humanizado, conhecimentos relacionados à avaliação e influência dos
fatores psicossociais, psicoespirituais, psicobiológicos no tratamento das
pessoas com lesões crônicas.
Além dos conhecimentos sobre os aspectos da fisiopatologia, parâmetros de
avaliação da úlcera, critérios na escolha de curativo, orientação do usuário no
tratamento e cuidados, os profissionais de enfermagem precisam apropriar-se de
conhecimentos relacionados ao cuidado humanizado, a avaliação dos fatores
psicossociais e ainda terem a habilidade e sensibilidade de planejar
holisticamente o cuidado de modo a contemplar o ser humano em sua plenitude
(20).
A assistência às pessoas com úlceras vasculares deve envolver as pessoas que
possuem a lesão e seus familiares, numa perspectiva ampliada do cuidado, deve
adotar um protocolo de cuidados, tendo como base habilidades e competência
técnica e científica da equipe(20).
CONCLUSÃO
A pouca atuação dos enfermeiros no atendimento as pessoas com úlceras
vasculares e a assistência prestada por profissionais com preparo insuficiente
pode influenciar negativamente na resolubilidade e no processo de cicatrização
destas lesões, contribuindo para manutenção do sofrimento biopsicossocial das
pessoas e seus familiares, além de favorecer maior ônus para o sistema de
saúde.
Percebe-se a necessidade de atividades de educação permanente relativas ao
atendimento às pessoas com úlceras vasculares e a compreensão por parte dos
gestores, sobre os benefícios investimento na capacitação dos profissionais,
para o serviço e o melhor aproveitamento dos profissionais já capacitados.
A criação de equipes matriciais para atuarem de modo itinerante nas unidades de
saúde poderia contribuir para o aprimoramento dos profissionais durante o seu
processo de trabalho, in loco, de modo duradouro e significativo, além de
padronizar abordagem e condutas no município no atendimento a essa população.