A vida após o câncer infantojuvenil: experiências dos sobreviventes
INTRODUÇÃO
Dentre as doenças crônicas infantojuvenis, o câncer se destaca pelas
repercussões na vida da criança, adolescente e sua família(1). Considerando que
o percentual dos tumores infantojuvenis nos Registros de Câncer de Base
Populacional (RCBP) brasileiros seja, aproximadamente, de 3%, depreende-se que
esses tumores corresponderão a valores aproximados a 11.530 casos novos de
câncer por ano em crianças e adolescentes até 19 anos de idade, no biênio 2012/
2013(2).
O tratamento oncológico em crianças e adolescentes pode produzir morbidade em
longo prazo. Aproximadamente dois terços das crianças e adolescentes que
terminaram o tratamento do câncer irão apresentar algum tipo de efeito tardio
e, aproximadamente, um terço será acometido por algum efeito tardio de maior
complexidade ou fatal, visto que o tratamento do câncer, instituído durante a
fase de crescimento e desenvolvimento, expõe o organismo a alterações que
poderão se manifestar vários anos após o término da terapia(3).
O câncer em crianças e adolescentes foi considerado fatal há algumas décadas.
Hoje, pelo avanço no diagnóstico e na terapêutica, muitos são considerados
curados; mas os efeitos adversos do tratamento podem comprometer a qualidade de
vida a curto, médio ou longo prazo. Dessa forma, o desafio de conhecer a vida
após o tratamento tem mobilizado os profissionais da área da saúde na busca da
compreensão das repercussões físicas, psicossociais, existenciais e econômicas
na qualidade de suas vidas(4).
Diferentes maneiras têm sido utilizadas para conceituar e avaliar a qualidade
de vida, pois o conceito é amplo e complexo, abrangendo dimensões biológicas,
psicossociais, existenciais e ambientais(5). O número de estudos que avaliam
qualidade de vida na literatura é grande e muitos deles têm utilizado escalas
quantitativas que, após uma somatória, indicam a qualidade de vida do sujeito.
Essas escalas, apesar de avaliarem de modo multidimensional a qualidade de
vida, pouco atingem o aspecto subjetivo da avaliação, ou seja, têm limites para
a compreensão de valores, motivações e crenças(6). Assim, é relevante abordar a
qualidade de vida de forma interpretativa, partindo da experiência dos próprios
sujeitos.
Buscando ampliar esta discussão, o presente estudo tem por objetivo
identificar, por meio da experiência de crianças, adolescentes e adultos jovens
sobreviventes ao câncer infantojuvenil, as repercussões dos efeitos tardios na
qualidade de suas vidas. Esse estudo justifica-se pela possibilidade de
identificar, na experiência dos sobreviventes, aspectos que possam ser
inseridos no planejamento do cuidado em saúde, particularmente no da
enfermagem, que busquem minimizar os efeitos a curto, médio e longo prazo.
PERCURSO METODOLÓGICO
Ao considerarmos o objetivo desse estudo, valorizamos as experiências de vida
dos participantes, por entendermos que as trajetórias da vida são permeadas
pelos relacionamentos pessoais, familiares, sociais, pelos valores culturais,
simbólicos, crenças e pela identidade social dos sobreviventes. Dessa forma,
buscamos na antropologia o referencial para delinearmos esse estudo, pois a
mesma parte da premissa que o homem é um ser biológico e cultural, e que seu
sistema é resultante de símbolos, ideias e significados. Aplicada à área da
saúde, favorece a apreensão da experiência da enfermidade, nesse caso, as
repercussões na qualidade de vida após o diagnóstico e tratamento do câncer, e
suas dimensões culturais(6).
Conhecer os valores culturais dos participantes e suas redes sociais é
fundamental, pois esses indicam a descrição de suas rotinas, valores, desejos e
experiências de vida. Assim, o método etnográfico mostrou-se adequado ao
estudo, pois este possibilita descrever aspectos da saúde, da doença e do
cuidado, no contexto dos comportamentos interpessoais, nas relações sociais e
culturais(7).
Ao escolhermos a abordagem metodológica qualitativa, o número de participantes
foi definido no decorrer da pesquisa, ou seja, à medida que obtivemos as
experiências para analisar a essência do fenômeno estudado.
A coleta de dados ocorreu de julho de 2009 a maio de 2010, no ambulatório de
Hematologia Infantil do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP). O hospital é
referência para pesquisa, diagnóstico e tratamento de crianças e adolescentes
com câncer.
Em respeito à Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde(8), tal projeto
foi submetido à apreciação do Comitê de Ética da instituição onde foi realizado
(protocolo nº5335/2009). Para garantia do anonimato, respeitando as orientações
expressas nas diretrizes para pesquisas envolvendo seres humanos, identificamos
os sobreviventes por ordem alfabética (Alberto, Bianca, Caio), conforme a
sequência da coleta de dados, atribuindo-lhes nomes fictícios. Todos os
participantes e / ou responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido.
O grupo social selecionado para o estudo foi composto por 21 indivíduos que
receberam o diagnóstico de câncer durante a infância ou adolescência (0-18
anos) e mantinham acompanhamento no referido ambulatório, com intervalo maior
de cinco anos fora de terapia para o câncer. Esse período foi escolhido por ser
considerado um indicador de cura e sobrevivência(9). Os participantes foram de
ambos os sexos, maiores de sete anos, por caracterizar uma fase cujo pensamento
lógico encontra-se desenvolvido para a comunicação verbal de suas ideias(10).
Os dados foram coletados mediante a entrevista aberta, com a questão
norteadora: "Conte-me como tem sido sua vida, passados esses anos após o
tratamento do câncer". Para complementação e auxílio na compreensão dos dados,
foram associadas informações coletadas durante a observação em campo, momento
no qual o pesquisador se incorporou ao grupo e vivenciou a experiência dos
participantes, além dos dados clínicos dos prontuários.
A análise dos dados iniciou com a leitura do material empírico, procurando
construir um texto com os dados da entrevista, somados ao da observação
participante. Para a análise dos dados qualitativos, nos apoiamos no processo
de registrar, reunir e pensar. Esse é um processo de idas e vindas, em que as
fases não são lineares ou ordenadas. Realizamos o mapeamento dos dados,
mantendo a sequência do conteúdo, organizando um texto para cada participante,
construído pela associação da entrevista e do material da observação
participante. Após a leitura detalhada e da compreensão do conteúdo, foram
destacadas as ideias norteadoras, por meio de um marcador de textos, as quais
foram reveladas por meio das frases, palavras ou expressões corporais
(descritas na observação). Dessa forma, foi possível realizar o reconhecimento
das informações em comum, e consequente codificação dos dados. Cada código
recebeu um título e a associação dos dados sobre a mesma temática direcionou a
construção de dois eixos para a discussão: a experiência de viver com os
efeitos tardios e satisfação com a vida.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Em relação à caracterização dos participantes, a maioria (62%) apresentou idade
inferior a 18 anos e mantinha vínculo escolar. Apenas três participantes não
finalizaram a escolaridade básica. A respeito dos dados clínicos, os
diagnósticos identificados foram diversos: as leucemias apareceram com maior
frequência, seguidas dos linfomas, tumores de sistema nervoso central, dentre
outros. O tempo fora de terapia, para 11 participantes, foi entre cinco e 10
anos e, para 10 deles, o período foi superior a 10 anos.
As diferenças pessoais, como idade, escolaridade, convívio social, contexto
cultural, tipo de neoplasia e tratamento recebido revelou particularidades
vivenciadas pelos sobreviventes. Entendemos que, sobreviver ao câncer
infantojuvenil implica às crianças, adolescentes e adultos jovens o exercício
de viver com as repercussões do diagnóstico e tratamento, em sua rotina diária.
Assim, ao abordarmos sobre a vida atual, anos após o tratamento de câncer,
focalizando os diferentes contextos dos sobreviventes, encontramos diversas
situações que influenciaram as dimensões subjetivas da qualidade de vida, para
nós, entendida também como satisfação com a vida.
A experiência de viver com os efeitos tardios
A percepção de estar livre da doença, mas ter a necessidade de manter os
cuidados com a saúde, seja pelo uso de remédios ou pelos retornos ao serviço de
saúde, não é fácil para o sobrevivente. Há um confronto entre o não se sentir
doente e a necessidade do acompanhamento médico ao longo da vida. A certeza da
ausência da doença há anos é ameaçada a cada realização de exame e mesmo ao
longo dos anos, após a transição do estar doente ao estar livre da doença, os
cuidados com a saúde permanecem, evidenciando o continuum do tratamento do
câncer:
Vir aqui é ruim... Temos que esperar até à tarde para saber se está
tudo bem. A espera pelo resultado do exame e pela consulta médica
parece ser muito longa (Nádia, 15 anos).
Dá um frio na barriga para saber o que os médicos vão falar. Dá medo,
para saber se está tudo bem. Eu não gosto de vir aqui e tirar
sangue... É muito ruim (Ivo, 10 anos).
Resgatar a vida, ou dar sequência a ela após o câncer, remete as crianças, os
adolescentes e os adultos jovens à necessidade de realizar adaptações no seu
cotidiano e aprender a viver com elas. Sequelas decorrentes do tratamento são
relatadas pelos participantes e associadas às repercussões físicas e sociais em
suas vidas, como na realização das atividades de trabalho e lazer, as quais,
culturalmente, representam independência, diversão e socialização:
A quimioterapia extravasou. Isso me marcou muito, porque deixou
sequela na minha mão e braço. Passei por várias cirurgias, fiz
enxerto... Não resolveu. Tenho dificuldades, porque trabalho com
confecção de sapatos. Não consigo mexer o punho, fico forçando e no
final do dia... Dói... Mas preciso trabalhar (Diego, 21 anos).
Eu não posso usar fone de ouvido, porque eu só escuto desse ouvido
[ouvido direito] e se eu perder esse ouvido [direito] daí, ó!
[levanta mãos para cima, sinalizando não saber], já era... Eu tenho
que cuidar do meu ouvido, não posso ouvir música alta, esses fones de
ouvido pequenos nem pensar, só posso ouvir música de aparelho de som
grande, sem fone de ouvido, também não posso ficar ouvindo música
alta. Todo mundo [amigos] tem mp3 ou mp4 e escuta fone no ouvido, eu
não posso (Bianca, 11 anos).
A convivência social e a experiência cultural direcionam os comportamentos de
uma sociedade. Assim, a qualidade de vida dos sobreviventes é afetada pela
dificuldade em realizar as atividades diárias. Porém, a adaptação, ao longo dos
anos, à convivência com o efeito tardio supera a dificuldade e insere o
sobrevivente em suas relações de trabalho e sociais(11).
Entre os efeitos tardios, a alteração na autoimagem, devido à presença de
cicatriz, alopecia e baixa estatura, também fazem parte das repercussões do
câncer e seu tratamento, como percebido nos depoimentos abaixo:
Eu tenho essa cicatriz aqui na cabeça [vira e mostra cicatriz em
região occipital de aproximadamente 12 cm]. Meu cabelo nunca mais
cresceu. Não dá nem para esconder essa cicatriz. Você viu como tenho
pouco cabelo, é só aqui na frente, um pouquinho no meio e ainda bem
ralinho. É feio! Ficam falando... (Karen, 22 anos).
Eu sou muito criticado pelos meus amigos, porque eles tiram sarro do
meu problema, me chamam de franguinho, miudinho, pequeno. Já fiz
academia, mas não resolve. Sou pequeno e magro. Não consigo arrumar
namorada (Caio, 25 anos).
Cada sociedade determina atributos que definem como o homem deve ser, tanto no
sentido moral e intelectual quanto físico, mantendo essa gama de atributos
gerais, com pequenas alterações, a depender do grupo, classe ou categoria
social. Na sociedade ocidental contemporânea, o corpo passou a ser visto como
um artefato de presença que ostenta a identidade dos sujeitos. A aparência
corporal, além de ser uma presença inscrita no biológico do corpo, carrega
consigo significados que são culturalmente construídos(12).
O descontentamento com a autoimagem é relacionado, pelos participantes, às
dificuldades de relacionamento social e amoroso. Não se sentir incluído no
grupo social ao qual pertence gera insatisfação e, assim, a qualidade de vida
fica comprometida, no que se refere ao aspecto da inserção social e satisfação
pessoal, pois estar emocionalmente insatisfeito e inseguro com suas relações
sociais traz repercussões na vida do sobrevivente. Essas repercussões também
foram detectadas em outros estudos com sobreviventes ao câncer infantojuvenil
(13).
Dificuldades para o aprendizado e para o desempenho de atividades escolares
foram relatadas pelos participantes que tiveram diagnóstico de tumor de sistema
nervoso central ou receberam altas doses de radioterapia intracraniana:
Não terminei meus estudos, estou no terceiro colegial, esse ano eu
não dei conta de terminar, então eu parei. Tive muita dificuldade,
não conseguia acompanhar, então resolvi parar (Eder, 17 anos).
Terminei o colegial porque minha mãe me obrigou ir à escola. Terminei
com vinte e três anos. Eu não consegui aprender. Era muito ruim ir à
escola, eu só voltei a estudar e terminei o colegial porque minha mãe
voltou a estudar e ia junto comigo, estava na mesma classe (Caio, 25
anos).
Eu não consigo aprender não, as coisas não entram na minha cabeça, é
muito difícil estudar... (Tatiana, 15 anos).
O comprometimento do sistema nervoso central, seja pela localização de tumor ou
pelo tratamento, acarreta limitações e deficiência no que se refere à memória,
velocidade de processamento do pensamento, integração visual e motora, atenção
e concentração. Tais impedimentos podem afetar o desempenho escolar, a
aprendizagem e a função social(14).
A satisfação com a vida
Neste estudo, ao considerarmos a experiência dos participantes, percebemos que
os efeitos tardios, físicos, sociais e emocionais estão interligados, e a
percepção ou valores atribuídos às repercussões do tratamento são modificados,
juntamente com as fases do ciclo vital dos sobreviventes, ou seja, a
experiência dos efeitos tardios é dinâmica e varia, para cada indivíduo,
segundo seu contexto pessoal e social. Assim, a qualidade de vida está
relacionada à capacidade do sobrevivente em viver com as adaptações necessárias
ao longo dos anos e ao grau de satisfação com as escolhas feitas em relação às
oportunidades que surgem no decorrer de sua vida e de suas expectativas.
Partindo dessa prerrogativa, estar satisfeito com a vida, para o sobrevivente
ao câncer infantojuvenil, não depende somente de estar adaptado às sequelas do
tratamento, mas sim, de como pensam ou avaliam o que é estar satisfeito com a
vida. A percepção da qualidade de vida satisfatória, relatada pelos
participantes do estudo, diz respeito à identificação de uma vida normal, com
rotinas semelhantes às de outras pessoas sem histórico da doença. No contexto
da cronicidade, a normalidade estabelece uma rotina de vida mais próxima
possível à de pessoas sem a história da enfermidade(15).
Ter boa qualidade de vida remete à capacidade de realizar coisas normais.
Assim, atividades que compõem a rotina diária, como os afazeres domésticos,
frequentar escola, realizar atividades extracurriculares, atividades físicas e
trabalhar, reportam a boa qualidade de vida. O distanciamento do meio
hospitalar, os apoios sociais e a rotina sem o tratamento é vivido pelos
sobreviventes como nova oportunidade em suas vidas(16). Para as crianças,
brincar, ir à escola, passear e conviver com os amigos são atividades, mesmo
com adaptações às sequelas do tratamento, consideradas boas e normais. Para os
adolescentes e adultos jovens, atividades, tais como: frequentar a escola, a
faculdade, a igreja e o trabalho; namorar e interagir com amigos, compõem as
suas vidas:
Eu gosto da escola, eu gosto do recreio, da educação física. Eu gosto
de correr, brincar com meus colegas. Mas eu também gosto das lições,
dos trabalhos... (Ivo, 10 anos).
Estar com os amigos, conversar, dar risadas é muito bom. Na escola eu
faço tudo isso, além de aprender... (Odete, 15 anos).
Faço balé, computação e inglês, agora eu estou de férias. Minha mãe
fala que é importante aprender... Eu vou, eu gosto... (Bianca, 11
anos).
Duas vezes na semana vou ao inglês. Faz três anos que estou no
inglês... Eu gosto de praticar esporte, natação, futebol, tênis,
vôlei... dá para brincar... então, todos os dias à tarde eu faço isso
com meus amigos (Vinicius, 14 anos).
Entre as atividades diárias, o trabalho foi considerado uma dimensão importante
da qualidade de vida, para promover satisfação pessoal, ter independência dos
pais e planejar o futuro:
Às 17h horas eu entro no serviço e trabalho até às 23 horas. É muito
bom ter meu dinheiro, não precisar ficar pedindo para pai e mãe. Esse
é meu terceiro trabalho, quando eu completar 16 anos vou sair desse
emprego e irei trabalhar em uma autoescola, vou ganhar mais (Odete,
15 anos).
"Eu trabalho em uma loja como vendedora, sou registrada, estou nesse
trabalho há sete meses. Antes eu trabalhei em uma padaria...
trabalhar é muito bom, tenho minhas coisas, conheço pessoas..."
(Sabrina, 18 anos).
O trabalho possibilita a aquisição de recursos financeiros, sendo reconhecido
como favorecedor do desenvolvimento pessoal, da autossuficiência
(independência/autonomia), do bem estar físico, mental e social(6). Dessa
forma, quem está apto para trabalhar é visto como uma pessoa normal, apto para
a vida. Estar trabalhando é um atributo essencial para que a pessoa participe
de sua rede de sociabilidade; nesse caso, estar bem de saúde e com aptidão para
o trabalho também afirma a superação da enfermidade(11).
A convivência com os amigos, com namoradas(os), as brincadeiras, os passeios,
os momentos de lazer e diversão foram relatados como algo importante:
Minha vida é a música, eu tenho uma banda. Na minha banda toca minha
namorada, meu irmão e a namorada dele. Essa é minha paixão, eu me
divirto e distraio, eu não vou parar de tocar, até esqueço a sequela
[extravasamento quimioterapia em mão]... (Diego, 21 anos).
A coisa que mais gosto de fazer é soltar pipa, brincar na rua de
pique - esconde com meus amigos e jogar vídeo game (Ivo, 10 anos).
As relações de amizade e namoro dos adolescentes caracterizam-se como sendo uma
fase de transição da dependência social familiar para a conquista da autonomia
psicológica e emocional. Nesse período, eles constroem laços com amigos ou
parceiros que irão possibilitar segurança emocional para o distanciamento das
relações parentais. Essas interações estão relacionadas à capacidade de
construir e manter relações íntimas, que se constituem em um dos principais
critérios de saúde mental e de satisfação interpessoal(17).
Para as crianças, a brincadeira contribui para o seu processo de socialização,
oferecendo-lhes oportunidades de realizar atividades coletivas livremente, além
de ter efeitos positivos sobre o processo de aprendizagem, estimular o
desenvolvimento de habilidades básicas e a aquisição de novos conhecimentos. As
brincadeiras são fontes de estímulo ao desenvolvimento cognitivo, social e
afetivo da criança e também uma forma de autoexpressão(18). Assim, o lazer, a
diversão, as brincadeiras, o namoro fazem parte da vida desses participantes;
sentir-se incluído e satisfeito indica uma boa qualidade de vida.
As atividades apontadas como parte da vida, sem a presença da doença, expressam
indícios de valores, cultura e hábitos, os quais influenciam a vida dos
sobreviventes e repercutem em seus sonhos, planos e expectativas:
Quando eu crescer, quero ser médica. Trabalhar aqui no hospital. É
quero cuidar de todo mundo, mas não quero puncionar veia... Porque é
muito ruim... Aquela agulha furando... Vou trabalhar aqui (Bianca, 11
anos).
Meu sonho é ser bombeiro, ajudar quem precisa. Quero salvar vidas
(Eder, 17 anos).
Os participantes referiram o desejo de ajudar pessoas salvando vidas. Esse fato
pode estar associado às suas histórias de vida e à repercussão positiva do
tratamento e dos profissionais de saúde em suas existências.
Sonhos de constituir família, casar e ter filhos, ter uma vida como qualquer
outra pessoa, sem o passado da doença, também fizeram parte das expectativas
dos participantes, como já mencionado:
Meu sonho... Ah! é casar, ter filhos. Você vai ver, eu vou
conseguir... Minha mãe acha que não (Karen, 22 anos).
Meu sonho é arrumar um emprego, trabalhar, voltar a estudar e ajudar
minha mãe (Eder, 17 anos).
Apesar de estarem confiantes de que a história da enfermidade faz parte do
passado e a vida é conduzida sem a presença do câncer, dúvidas, medo e
incertezas são relatados pelos sobreviventes quanto ao seu estado de saúde. A
sobrevivência ao câncer é uma vivência ambígua, na qual a alegria por ter
superado a doença é constantemente ameaçada pelas incertezas e medos quanto ao
futuro(19). Dúvidas referentes à possibilidade de engravidar, ter filhos e como
será a saúde dos mesmos foram relatadas pelas participantes:
Eu não sei se vou poder ter filhos. Eu e meu marido queremos filhos
daqui alguns anos, mas será que posso engravidar? Porque tive câncer!
Como vai ser meus filhos? Eu preciso perguntar para os médicos...
Preciso tirar essa dúvida, porque eu não sei (Sabrina, 18 anos).
Oferecer informações claras aos sobreviventes, à medida que suas dúvidas forem
surgindo, é fundamental para minimizar conflitos e sentimentos de incerteza ou
comportamentos de insegurança(13).
Reconhecemos que a evolução do tratamento do câncer na infância proporcionou
melhora na taxa de sobrevivência de crianças e adolescentes com câncer. No
entanto, a terapêutica associada às consequências físicas, psicológicas e
sociais e, consequente efeitos a longo prazo, trouxeram repercussões na vida
educacional e profissional, nas interações afetivas e emocionais dos
sobreviventes.
Os resultados deste estudo nos indicam que, o enfermeiro, enquanto responsável
pela organização, planejamento e execução da assistência, precisa garantir
apoio e cuidado aos sobreviventes, para que eles alcancem o máximo de seu
potencial físico, social e psicológico. Para isso, é preciso que reconheçam as
necessidades de cada sobrevivente, de acordo com seu diagnóstico, tipo de
tratamento e possíveis efeitos imediatos, mediatos e tardios(20). Tais ações
devem contemplar o atendimento clínico e o aconselhamento para aspectos da vida
diária como aqueles relacionados às demandas educacionais e do mundo do
trabalho. Outra dimensão a ser incluída no processo de acompanhamento desta
clientela diz respeito aos relacionamentos afetivos amorosos, aos riscos de
infertilidade e a constituição de uma vida a dois. Ainda, no campo da educação
permanente, é necessária a criação e divulgação de programas educacionais para
a equipe de enfermagem sobre cuidados específicos a essa clientela, incluindo a
elaboração de guias de boas práticas.
CONSIDERAÇOES FINAIS
Os sobreviventes convivem com a tenuidade de estar livre da doença e com os
riscos de complicações ou sequelas. É importante ressaltar que, sobreviver à
doença, não significa unicamente a cura física; daí a necessidade de
reconhecermos que o sucesso do tratamento transcende a esfera biológica,
estendendo-se para a dimensão existencial, que inclui inúmeras esferas do
existir humano. A integração social, trabalho e lazer são eixos orientadores
para a avaliação de boa qualidade de vida dos sobreviventes ao câncer
infantojuvenil, permitindo visão otimista do futuro. Como outros estudos, os
resultados do presente estudo também revelam insatisfações com a vida, devido
às alterações de autoimagem e dificuldades de integração social, como àquelas
relacionadas aos vínculos de amizade, aprendizado e trabalho.
Observamos que a satisfação com a vida ou com a qualidade de vida apresenta
estreita relação com contexto socioeconômico e cultural dos participantes do
estudo e está sujeita a re-significações ao longo do tempo. Assim, a avaliação
de qualidade de vida depende das metas pessoais, dos valores culturais e
crenças vividas pelos sobreviventes. Partindo desse pressuposto, é importante
que os profissionais de saúde reconheçam as necessidades apresentadas pelos
sobreviventes, à medida que, é pela significação das repercussões pós-
tratamento a curto, médio e longo prazo, que as demandas por auxílio e cuidados
serão concretizadas. Desta forma, é necessário que os profissionais de saúde
organizem os serviços para acolher e continuar dando apoio às necessidades
física, social e emocional dos sobreviventes.
O estudo permitiu refletir sobre a centralidade da experiência da sobrevivência
ao câncer infantojuvenil e pode indicar algumas atividades práticas como a
criação de um programa de atendimento multiprofissional ao sobrevivente ao
câncer na infância. Nesse programa, deve ser priorizado o registro com o
histórico da doença e do tratamento e as principais orientações para atenção e
vigilância em saúde, de modo a alertar para a detecção de efeitos tardios a
médio e longo prazo, e para as segundas neoplasias. É necessário promover o
acompanhamento individualizado para o sobrevivente e familiares; oferecer
esclarecimento frente às demandas de dúvidas e de ansiedades; estimular o
sobrevivente a dar continuidade aos estudos; apoiar e orientar para as opções
profissionais, conforme as possibilidades pessoais de cada um; estabelecer
comunicação com as unidades de atenção primária à saúde, para orientar e
auxiliar na atenção ao cuidado do sobrevivente.