A ABEn e a preservação da memória profissional: implantação do Centro de
Memória da Enfermagem Brasileira
INTRODUÇÃO
A Associação Brasileira da Enfermagem (ABEn) foi criada em 26 de agosto de
1926, sob a denominação de Associação Nacional de Enfermeiras Diplomadas
(ANED). Em 1º de junho de 1929, com o objetivo de ingressar no Internacional
Council of Nurses (ICN) foi-lhe acrescentado ao nome o gentílico "brasileiras",
tornando-se Associação Nacional de Enfermeiras Diplomadas Brasileiras (ANEDB).
Esta denominação permaneceu até 7 de agosto de 1944, quando ocorre a reforma do
estatuto da entidade e esta passa a se chamar Associação Brasileira de
Enfermeiras Diplomadas (ABED). Em 1954, a ABED passou a ser denominada
Associação Brasileira de Enfermagem, nome que permanece até os dias atuais(1).
A ABEn tem sua origem estreitamente ligada à Escola de Enfermagem Anna Nery,
criada em 1922 e implantada no Rio de Janeiro por uma missão de enfermeiras
norte-americanas, patrocinadas pela Fundação Rockfeller. Diplomada a primeira
turma desta escola, em 1925, as líderes de enfermagem, brasileiras e
estrangeiras, tomaram a iniciativa, em 1926, de fundar a atual ABEn, a qual
teve importância decisiva no desenvolvimento da Enfermagem brasileira,
representando até 1973, ano de criação do Conselho Federal de Enfermagem, a
única entidade organizativa da profissão(2).
Certamente, a ideia original de uma associação de antigas alunas da Escola de
Enfermagem Anna Nery tenha dado margem à fundação da ANED, pois, de outro modo
as duas enfermeiras e docentes da escola, formadas no exterior, Edith de
Magalhães Fraenkel e Rachel Haddock Lobo, não poderiam pertencer a Associação
de Antigas Alunas; e a inexistência de uma associação contrariava os princípios
apreendidos nas escolas norte-americanas sobre o desenvolvimento de uma
profissão(1).
Ademais, a criação de uma associação era conveniente à Escola, pois manteria
certo controle das enfermeiras por ela diplomadas, como as ex-alunas que
valorizariam o seu diploma em decorrência de serem membros de uma associação
ligada a uma instituição de prestígio como a Escola de Enfermagem Anna Nery(3-
4). Portanto, essas preocupações se justificavam pela necessidade de valorizar
o diploma da enfermeira egressa da Escola de Enfermagem Anna Nery, uma vez que
o diploma ao assegurar formalmente uma competência garante realmente a posse de
um capital, tanto mais e extenso quanto mais prestigioso for o documento.
Esse efeito de imposição simbólica do diploma atinge sua máxima intensidade
quando atribuído por escola reconhecida, garantindo uma competência que se
estende muito além do que, supostamente, é garantido por ele, com base em uma
"cláusula que, por ser tácita, impõe-se antes de tudo, aos próprios portadores
desses diplomas que, deste modo, são intimados a assenhorar-se realmente dos
atributos que estatutariamente lhes são conferidos"(5).
Nessa lógica, compreende-se que o pertencimento à Associação Brasileira de
Enfermagem agregava, desde a sua criação, capital simbólico às associadas, pois
representava uma espécie de credencial que multiplicava de maneira duradoura o
valor de seu portador, ao multiplicar a extensão e a intensidade da crença em
seu valor(5). Desta forma, pode-se entender o nível elevado das expectativas em
relação às associadas, que refletem o reconhecimento coletivo das posições
sociais.
A ABEn também foi responsável pela criação da Revista Brasileira de Enfermagem,
em 1932, à época denominada Annaes de Enfermagem. A Revista Brasileira de
Enfermagem, "órgão oficial de divulgação da Associação Brasileira de
Enfermagem"(1), representa o primeiro espaço intelectual, no Brasil, em que as
enfermeiras puderam socializar o conhecimento. Tal iniciativa constituiu
indicador concreto de que a Enfermagem brasileira já havia acumulado, à época,
um certo volume de experiências e reflexões sobre sua prática(6), as quais
seriam divulgadas por enfermeiras dotadas de capital de poder científico,
representadas por aquelas que atuavam em instituição de ensino, em cargos de
direção de serviço e instituição e a direção da própria revista; ou seja,
enfermeiras reconhecidas como porta-vozes autorizadas e competentes para se
manifestar em espaços públicos.
Desde a sua criação, a ABEn também vem se empenhando em organizar e preservar o
seu acervo documental. Esse esforço se traduziu inicialmente pelo trabalho de
suas pioneiras, no sentido de iniciar a guarda dos documentos produzidos pela
Associação, ao longo de nove décadas. Essa iniciativa possibilitou a construção
de um importante patrimônio para a história da saúde e da Enfermagem
brasileira, mediante a massa documental representada por documentos escritos,
orais e iconográficos.
Esse acervo, que sacraliza a memória, representa um bem simbólico para a
enfermagem brasileira que, transmitido como herança através da produção
historiográfica dele derivada, institucionaliza as lembranças e contribui para
a formação de uma identidade compartilhada, a qual funciona como importante
elemento de coesão dos grupos sociais, conferindo um sentimento de unidade e,
por conseguinte, de filiação estatutária(7).
Nesta edição, que celebra os 80 anos da Revista Brasileira de Enfermagem, os
objetivos do presente estudo são analisar e discutir a importância do Centro de
Memória da Enfermagem Brasileira para preservação e divulgação da memória
profissional.
O estudo se justifica pela pertinência da preservação e disponibilização de
documentos à comunidade científica de Enfermagem e áreas afins, que neles
encontra as fontes indispensáveis para o trabalho historiográfico. De outra
parte, o acesso às informações, pelos cidadãos em geral, contidos em documentos
públicos - inscrito como direito fundamental nas constituições democráticas -
garante a necessária transparência nas relações Estado-sociedade, propiciando o
exercício pleno da cidadania.
MÉTODO
Trata-se de estudo histórico-social, em que se utilizou como fontes históricas
o documentário intitulado Associação Brasileira de Enfermagem: 1926-1976; o
Projeto de Implantação e o Relatório Técnico do Acervo Documental e Fônico do
Centro de Memória da Enfermagem Brasileira, ambos de autoria de Ivone
Evangelista Cabral e arquivados no referido Centro de Memória. Os critérios que
nortearam a seleção dessas fontes foram orientados pela possibilidade de
divulgar a importância do acervo da Associação Brasileira de Enfermagem e de
aprofundar as reflexões sobre os jogos de forças que determinaram a
constituição e preservação da memória da instituição, materializada nos
documentos. Neste aspecto, o estudo agregou valor ao conhecimento científico já
publicado, quando traz a lume as imbricações entre memória e história.
A coleta dos dados ocorreu no período de 13 a 30 de junho de 2013. Após a
seleção dos dados, como preconiza o método histórico, procedeu-se à crítica
externa e interna. Na crítica externa, indagou-se a autenticidade dos
documentos, considerando sua procedência, autoria e natureza. Sobre a crítica
interna buscou-se apreender o conteúdo, considerando a qualidade e relevância
da informação contidas nos documentos selecionados(8). Esse processo permitiu a
validação das fontes históricas selecionadas para o estudo.
A análise ocorreu de forma simultânea à coleta dos dados e se deu com base no
conhecimento produzido sobre o tema e no conceito de habitus do sociólogo
francês Pierre Bourdieu. A utilização desse conceito se justifica pelo
entendimento de que o trabalho historiográfico requer a compreensão dos
interesses que nortearam a produção e preservação da memória institucional,
materializadas nos documentos. Isso porque o habitus representa uma forma de
memória, pois a produção e reprodução de lembranças, bem como os esquecimentos
resultam do aprendizado das disposições inerentes à identidade instituída, de
modo a conservar as condições de preservação de tal identidade.
O presente estudo vincula-se a projeto de pesquisa aprovado pelo Comitê de
Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery / Hospital São Francisco de
Assis, em 26 de março de 2009, sob o número de Protocolo 04/2009.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Centro de Memória da Enfermagem Brasileira - lugar de memória da enfermagem
A compreensão para além da metáfora da aceleração da história evoca a
necessidade de preservação dos lugares onde a memória se cristaliza e se
refugia. Essa preocupação deriva da conscientização de que "a ruptura com o
passado se confunde com o sentimento de uma memória esfacelada, mas onde o
esfacelamento desperta ainda memória suficiente para que se possa colocar o
problema de sua encarnação"(9).
Os lugares de memória comportam, simultaneamente, as dimensões material,
simbólica e funcional, uma vez que mesmo um arquivo, cuja aparência é puramente
material, se reveste de simbolismo desde a sua concepção; mesmo um plano de
aula, um programa de evento ou um manual cujas características são tipicamente
funcionais comportam uma natureza simbólica, se concebidos como ritual; mesmo
um minuto de silêncio que parece o exemplo extremo de uma significação
simbólica é, ao mesmo tempo o recorte material de uma unidade temporal que
representa a evocação concentrada de uma lembrança(9).
Os arquivos históricos, como lugares de memória que são, representam instâncias
fundamentais para a compreensão de eventos pretéritos já que abrigam uma
diversidade de documentos, os quais precisam ser analisados em seu conjunto;
nas suas especificidades; no que apresentam em comum; nas suas contradições; no
que se guardou para que fosse lembrado e também no que não se guardou,
determinando o esquecimento ou o desconhecimento(10). Isso porque o trabalho
historiográfico encontra-se circunscrito pelo lugar que define sua conexão do
possível com o impossível, ou seja, com os lugares que permitem e interditam as
produções históricas, tornando possíveis certas pesquisas e impossibilitando
outras(11).
Outro aspecto importante sobre a memória é que as lembranças são construídas a
partir das relações que envolvem lugares, tempo e pessoas, uma vez que as
memórias individuais ou coletivas se fazem em algum lugar que lhes imprime uma
referência. Nesses lugares, os indivíduos ou grupos estão em constante disputa
de poder, e é justamente essa disputa que determina o que será lembrado e o que
será esquecido(7), portanto memória e história são construtos sociais, ainda
que aparentemente definidas e construídas pelas subjetividades dos indivíduos,
pois, mesmo suas manifestações mais individualizadas dependem da interação
social, já que esses passam sua existência em grupos, num complexo processo de
construções identitárias(12).
Portanto, a memória coletiva, imposta e defendida mediante um trabalho
especializado de enquadramento, é perpetuada através dos diversos documentos
produzidos de acordo com as relações de poder então existentes, as quais são
expressas tanto nas narrativas, como nos silêncios ou lacunas desses documentos
(7).
Memória e história evocam o passado. No entanto, a compreensão da importância
dos lugares de memória remete ao entendimento das especificidades conceituais
dos termos "memória e história", uma vez que a memória é um fenômeno sempre
atual e, por isso mesmo, "está em permanente evolução, aberta à dialética da
lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas,
vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e
repentinas revitalizações"(9). Já a história representa a construção de uma
versão sobre um passado que não existe mais, se configurando como uma operação
intelectual que demanda análise e discurso crítico(9).
O conhecimento de um passado comum é importante para preservação dos diversos
grupos sociais e "constitui-se aspecto imprescindível ao estabelecimento de
identidades calcadas em experiências compartilhadas, não somente no campo
histórico ou material, como também (e sobretudo) no campo simbólico"(10).
Essa simbiose entre memória e identidade profissional remete a consciência da
necessidade de preservação da memória através da constituição e da preservação
de acervos, pois a memória é fio condutor que liga as gerações umas com as
outras, dando caráter de antiguidade, ubiquidade e continuidade. Sobre esse
aspecto, a memória coletiva, "além de uma conquista, é também um instrumento e
objeto de poder, pois é vital para os grupos e as sociedades que lutam por
reconhecimento"(13).
A preservação da memória da Enfermagem brasileira sempre foi preocupação das
sucessivas diretorias da Associação Brasileira de Enfermagem, desde a sua
criação em 1926. A massa documental acumulada e preservada reflete o zelo,
especialmente das Presidentes da entidade, com a guarda, organização e
classificação preliminar do acervo. No curso de 87 anos de existência da
entidade, cada diretoria contribuiu para que, na atualidade, o Centro de
Memória da Enfermagem Brasileira, inaugurado em 4 de agosto de 2010, na sede da
ABEn Nacional, em Brasília-DF, constituísse uma realidade(14). Por isso mesmo,
enquanto instituição que abriga a memória da profissão, o Centro de Memória da
Enfermagem Brasileira deve ser concebido como herança material e simbólica.
Essa concepção demanda a necessidade de docentes e pesquisadores,
especialmente, de história da enfermagem, empreenderem estratégias para que os
estudantes de enfermagem possam compreender a relação entre memória e
identidade profissional, através da aquisição de um capital cultural que lhe
possibilite a condição de herdeiro da memória da enfermagem brasileira. Isso
porque o habitus - disposição incorporada que funciona como princípio gerador
de práticas distintas e distintivas(5), é também uma forma de memória porque a
produção e reprodução de lembranças comuns, bem como os esquecimentos, resultam
de disposições incorporadas, ou seja, de impulsos para adotar comportamentos
como aceitáveis ou adequados a responder as contingências da realidade social.
Como manifestação emblemática e pioneira da conversão da massa documental em
lugar de memória tem-se o valioso documentário, intitulado Associação
Brasileira de Enfermagem 1926-1976, publicado em 1976, de autoria de Anayde
Corrêa de Carvalho. Esse documentário, sempre atual, reproduz cabalmente a
importância da preservação das fontes documentais, pois as fontes históricas,
enquanto significantes da memória se constituem matéria-prima do trabalho
historiográfico, o qual é sempre tributário da interlocução com o documento.
Centro de Memória da Enfermagem Brasileira - concepção e organização
O acervo documental da Associação Brasileira de Enfermagem conta com
aproximadamente 170 metros lineares de documentos textuais referentes ao
período de 1926 a 2019, constituídos de relatórios, correspondências,
dissertações e teses, cartazes de eventos promovidos pela entidade, anais de
congressos, dissertações e teses, coleção completa da Revista Brasileira de
Enfermagem (obra rara do acervo e da Enfermagem brasileira), entre outros, os
quais foram previamente higienizados, organizados e classificados.
O acervo conta ainda com cerca de 2.700 fotografias (em branco e preto ou
coloridas) em suporte de papel, guardadas em pastas de papel e armazenadas em
caixas de arquivos. O acervo conta também com três álbuns. Os documentos
fonográficos envolvem fitas cassete com suas respectivas transcrições, de
entrevistas realizadas com personagens da enfermagem brasileira.
O projeto original de tratamento do acervo, denominado de "Preservação e
Difusão do Acervo Documental", foi elaborado na gestão 2004-2007, sob a
Presidência de Francisca Valda da Silva, quando o Centro de Estudos e Pesquisa
em Enfermagem/CEPEn da ABEn foi dirigido interinamente por, Isabel Cristina
Kowal Olm Cunha e, posteriormente, por Josete Luzia Leite(14).
A gestão 2007-2010 da ABEn, sob a Presidência de Maria Goretti David Lopes e
Diretoria do Centro de Estudos e Pesquisa em Enfermagem de Ivone Evangelista
Cabral, transformou o projeto de "Preservação do Acervo Documental da ABEn" em
projeto de implantação do "Centro de Memória da Enfermagem Brasileira". Essa
transformação implicou em adequação teórico-metodológica e ajustes
orçamentários, para atender as diretrizes do Fundo Nacional da Saúde, do
Ministério da Saúde, o qual viabilizou parte da execução orçamentário do
projeto(14).
Para a organização do Centro de Memória, a Associação Brasileira de Enfermagem
buscou parceria com o Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira /
Escola de Enfermagem Anna Nery / Universidade Federal do Rio de Janeiro(16). Um
novo convênio, em 2009, com validade de cinco anos, foi firmado com a Escola de
Enfermagem Anna Nery(14).
Entre os propósitos de implantação do Centro de Memória da Enfermagem
Brasileira destacam-se: assegurar condições adequadas de higienização,
exposição, digitalização e preservação dos documentos existentes; organizar o
acervo documental segundo a natureza dos documentos; divulgar o acervo,
mediante a elaboração de catálogos escritos e virtuais; disponibilizar os
produtos resultantes da organização, de modo a viabilizar o acesso via
internet; garantir a segurança física do acervo histórico da Associação
Brasileira de Enfermagem(15).
Para viabilizar a implantação do Centro de Memória, desenvolveram-se quatro
subprojetos, executados simultaneamente: I. organização e adequação do
ambiente; II. tratamento do acervo documental textual; III. tratamento do
acervo documental iconográfico; IV. tratamento técnico do acervo documental
fonográfico(15).
O desenvolvimento do projeto para implantação do Centro de Memória foi
coordenado pela diretora do CEPEN e teve início em 2009. Na ocasião, foi dada
continuidade ao trabalho de diagnóstico pormenorizado da situação do acervo,
iniciado na gestão anterior, contemplando o estudo da área física, de modo a
atender ao Subprojeto I - Organização e adequação do ambiente para
funcionamento do Centro de Memória da Enfermagem Brasileira. Sendo assim,
constatou-se que a área destinada ao acervo ocupava um espaço de
aproximadamente 90m2, o qual contava com janelas envidraçadas, sem grades de
proteção, em toda a extensão lateral da sala. Essas janelas permaneciam abertas
durante o horário comercial, em face da temperatura ambiente, pois não havia
climatização na sala.
Evidências da temperatura e umidade relativa do ar alta no ambiente foram
detectadas mediante a visualização de colônias de fungos nos documentos. Sinais
de temperatura e umidade relativa do ar baixas no acervo também foram
percebidos, pois alguns documentos apresentavam-se distorcidos e ressecados.
Essas ocorrências derivam também da ausência de climatização do ambiente,
tornando-o vulnerável às frequentes oscilações de temperaturas (extremamente
nocivas para os documentos), pois todos os materiais encontrados nos acervos
são higroscópicos, isto é, absorvem e liberam umidade muito facilmente e,
portanto, se expandem e se contraem com as variações de temperatura e umidade
relativa do ar(17).
A ausência de climatização do ambiente também prejudica o controle da qualidade
do ar (aspecto essencial para a conservação de acervos), uma vez que os
poluentes contribuem significativamente para deterioração dos documentos.
Portanto, as janelas abertas durante o horário de expediente do acervo
facilitavam a entrada de poluentes externos como o dióxido de enxofre, óxidos
de nitrogênio e o Ozônio, os quais provocam reações químicas, com a formação de
ácidos que causam sérios danos aos materiais.
Apesar das vidraças das janelas estarem protegidas por filmes e persianas,
havia intensa entrada de luz natural no ambiente pelo fato das mesmas
permanecerem abertas. Qualquer exposição de luz, mesmo que por pouco tempo, é
nociva ao documento e o dano é cumulativo(17). Na área externa às janelas,
observou-se um pátio gramado, com algumas árvores frutíferas. Havia entrada de
fuligens e poeira na sala através das janelas abertas. Os danos derivados da
exposição à luz se evidenciaram através da identificação de documentos escritos
e fotográficos com sinais de esmaecimento, com implicações diretas relativas à
legibilidade. Em termos de iluminação artificial, constatou-se a necessidade de
diminuição da intensidade da luminosidade.
Assim, foram realizadas reformas e adequação da área física para a instalação
do Centro de Memória. Tal reforma não comportou acréscimo de área construída,
consistindo em isolamento da área do acervo, substituição de estrutura do piso
para a instalação de arquivos deslizantes, recuperação de materiais de
acabamento e adequação das instalações existentes, com destaque para a criação
de espaços para: o arquivo histórico / permanente; o arquivo intermediário; a
sala para higienização dos documentos, a consulta do usuário; a guarda de
pertences dos usuários; e os banheiros.
A adequação da área física comportou o trancamento das janelas e colocação de
filmes protetores. O ambiente foi climatizado e por medidas de segurança
promoveu-se a instalação de circuito interno de TV. Além disso, o acesso ao
acervo passou a comportar apenas uma porta de entrada.
Para o desenvolvimento do Subprojeto II - Documentos textuais: tratamento
técnico do acervo, estudos foram realizados com vistas à definição de rotinas
de tratamento destinadas a desacelerar os processos de degradação e aumentar a
vida útil do suporte dos documentos. Também foram definidas as normas que
deveriam orientar a utilização do acervo.
No que se refere ao diagnóstico pormenorizado das condições de conservação dos
documentos textuais constatou-se que os documentos escritos foram submetidos,
parcialmente, a algum tipo de organização que teve como objetivos garantir as
condições de adequadas de conservação, organização e acesso. Não obstante,
verificou-se a necessidade imperiosa de implementar intervenções relativas a
higienização, estabilização (mediante retirada de agentes que danificassem os
documentos como clipes, grampos, fitas adesivas, entre outros) e restauração
daqueles com comprometimentos como manchas de excrementos de insetos e rasgos
que pudessem comprometer a sua leitura. Os documentos foram armazenados em
caixas de material neutro apropriadas. Também foram colocadas capas de material
neutro em cada documento.
Foram tratadas 482 caixas-box de documentos textuais (aproximadamente 67 metros
lineares de documentos). O tratamento previsto inicial era de 60 metros
lineares, porém algumas caixas estavam vazias e, para complementação, foram
tratadas mais 25 caixas de documentos. Além destas, foi acrescentado o
tratamento de mais 27 caixas de documentos, uma vez que só foi possível o
tratamento de 43 fitas de vídeo (Subprojeto IV - Tratamento técnico do acervo
documental fonográfico)(18).
Foram tratados (higienizados, organizados, classificados) também 19 exemplares
de Anais de Congressos, 70 exemplares de dissertações ou teses, 39 exemplares
da revista Annaes de Enfermagem, além de outras 24 obras raras. No que concerne
a obras raras, os dados foram inseridos no sistema, contemplando nove classes,
em conformidade com a técnica arquivística, assim descrita: "Informações sobre
Pesquisas e Pesquisadores em Enfermagem, Prêmio Enfermeira do Ano, Obras de
Referência / Manuais Técnicos, Guias de Referência, Monografias, Normas/
Documento/Histórico, Biografias e a revista Annaes de Enfermagem(18).
No tocante ao desenvolvimento do Subprojeto III - Tratamento do acervo
documental iconográfico, foram tratadas 543 fotografias de diversos eventos e
personalidades. Observou-se que as fotografias já possuíam uma prévia
descrição, com a identificação de alguns dos presentes na composição
fotográfica, bem como algumas anotações no verso da fotografia como data, local
e evento. As fotografias foram higienizadas, sendo estabilizadas em suporte de
papel para uso específico de preservação e conservação de documentos e
armazenadas em caixas de material neutro.
Observou-se também a necessidade de digitalização de todo o acervo, para
posterior organização e classificação em consonância com técnica arquivística.
Essa estratégia facilitará a difusão do acervo, bem como sua preservação,
através da minimização dos riscos relativos à utilização inadequada pelos
usuários, bem como sua exposição dos efeitos nocivos da luminosidade, seja ela
natural ou artificial.
A etapa I do tratamento do acervo documental textual, iconográfico e
fonográfico envolveu a seleção de materiais, segundo a linha do tempo das
gestões das Presidentes da entidade e a periodização de 1926-1947; 1947-1972;
1972 a 2009. Nesta etapa de implantação do Centro de Memória, para viabilizar
sua execução com o orçamento disponível, priorizou-se o tratamento da
totalidade dos documentos correspondentes aos dois primeiros períodos. No
último período, pinçaram-se documentos pontuais segundo a classificação do
plano documentalista apresentado pela arquivista responsável pelo tratamento do
material(18).
A conclusão da etapa I comportou a execução de quatro subprojetos, gerando os
seguintes produtos: ambiente adaptado para a guarda do acervo, em condições que
asseguram sua preservação; documentos textuais, iconográficos e fonográficos
tratados, classificados, incorporados ao acervo e catalogados em banco de
dados, à disposição da comunidade científica da saúde e da sociedade, em geral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A compreensão da sociedade enquanto construção histórica remete a necessidade
de preservação da memória. Nesse processo, ao tempo em que o grupo tende a se
dotar de meios para além da finitude das pessoas e instituições, também
procedem ao controle das lembranças e, por conseguinte o controle da história
digna de ser contada.
A compreensão da importância atribuída pela Associação Brasileira de Enfermagem
como a guarda e preservação de seus documentos produzidos ao longo de várias
décadas sob a ótica de Pierre Bourdieu, no tocante ao conceito de habitus
proporcionou evidências de grande densidade cognitiva, as quais possibilitaram
a compreensão de estratégias de fabricação do simbólico pelas integrantes da
Associação Brasileira de Enfermagem, em estreita vinculação com as instituições
de ensino de enfermagem.
A preservação dos documentos históricos, lugares de memória, representa o
grande desafio para a enfermagem brasileira, pois o que está em jogo na memória
é a (re) construção e preservação da identidade profissional e institucional.
Nesse processo, os documentos precisam ser interpretados em conformidade com as
conjunturas que determinaram sua produção, veiculação e preservação.