Acolhimento: quando o usuário bate à porta
INTRODUÇÃO
A Política Nacional de Humanização (PNH) configura-se como um conjunto de
princípios e diretrizes traduzidas em ações nas diversas práticas de saúde. Na
PNH é atribuído ao termo humanização os seguintes aspectos: valorização dos
diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários,
trabalhadores e gestores; fomento da autonomia, do protagonismo, de co-
responsabilidade na produção de saúde e de sujeitos(1).
O acolhimento, enquanto diretriz da PNH, aponta para questões de organização e
prática do trabalho, enfatizando a dimensão ética e política na postura dos
profissionais em contato com a clientela, bem como a reformulação do modelo
assistencial e de gestão, no intuito de facilitar o acesso as ofertas do
serviço, flexibilizar e ampliar a clínica, favorecer o cuidado interdisciplinar
e incluir outras abordagens na compreensão das demandas dos usuários e dos
processos de saúde-adoecimento(2).
Nesta perspectiva, o acolhimento é considerado um processo, resultado das
práticas de saúde e produto da relação entre trabalhadores de saúde e usuários,
ensejando posturas ativas por parte dos trabalhadores para com as necessidades
do usuário e resgatando a humanização e o respeito com o outro(3).
Entretanto, a mudança das estratégias não necessariamente atinge uma
transformação real no nível das ações, valores, significados e práticas, com as
quais os sujeitos se encontram envolvidos em seu cotidiano(1). Neste sentido, a
dinâmica de organizar o processo de trabalho das equipes de saúde, considerando
as necessidades verbalizadas e não verbalizadas dos usuários, requer a cada
encontro trabalhador-usuário um agir centrado na singularidade - que orienta o
quê e como fazer - convidando a equipe a uma expertise no saber-fazer saúde,
exigindo que a mesma faça uso de outras tecnologias que possibilitem a
incorporação do usuário nos atos de saúde produzidos, ao tempo em que estimula
e potencializa a autonomia do sujeito na produção do cuidado em saúde(4).
A inserção do acolhimento nas práticas de saúde tem proporcionado o
aprofundamento de uma questão extremamente importante e delicada, que é
vivenciada no interior das unidades de saúde, a relação trabalhador/usuário,
visto que a adoção da postura de acolher favorece uma maior intimidade entre
esses dois sujeitos.
Nesse contexto, o interesse em pesquisar sobre o acolhimento sob a ótica da
relação trabalhador/usuário emergiu da atuação das pesquisadoras em uma Unidade
Docente-Assistencial, localizada no município de Salvador-Bahia, e que já tem
implantado o acolhimento nas suas diversas práticas.
A unidade de saúde na qual este estudo foi desenvolvido, estando atenta para
investir constantemente no aprimoramento das práticas de saúde, de modo a
torná-las efetivamente usuário-centradas, tem proposto ações e projetos para
promover o acolhimento das demandas dos usuários. Considerando a relevância de
envolver todos os atores neste processo, esta pesquisa teve por objetivo
analisar a percepção do usuário de uma unidade docente-assistencial sobre o
acolhimento.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo exploratório descritivo, de natureza qualitativa. Fizeram
parte do estudo os usuários de uma unidade de saúde docente-assistencial,
localizada em um bairro periférico da cidade de Salvador-BA, pertencendo ao
Distrito Sanitário de Pau da Lima, que atua em consonância com a Estratégia de
Saúde da Família -ESF, prestando atendimento a 4.000 famílias, sendo campo de
estágio para alunos de diversos cursos na área de saúde, bem como para duas
pós-graduações em Saúde da Família.
Para seleção dos sujeitos foram adotados os seguintes critérios: ser maior de
18 anos de idade e estar cadastrado na unidade há mais de um ano. Participaram
do estudo 12 sujeitos.
Os usuários foram convidados a participar da pesquisa enquanto aguardavam
atendimento. As entrevistas foram realizadas individualmente, em uma sala
reservada da unidade, a partir de um roteiro de entrevista, com duração média
de 15 minutos, gravadas em aparelho MP3 e logo após transcritas em sua íntegra
pelas pesquisadoras.
A análise do material empírico apreendido na coleta de dados foi realizada com
base na proposta da análise de conteúdo, norteada por Bardin, sendo desdobrada
em: pré-análise, exploração do material; tratamento, inferência e interpretação
dos dados(5). No primeiro momento, as autoras fizeram a transcrição na íntegra
das falas, digitação do material com posterior leitura flutuante para
organização dos dados. Na etapa seguinte foram destacadas as unidades de
registro, com o objetivo de identificar mensagens explicitas e significações
não aparentes nas falas dos usuários sobre o acolhimento na unidade de saúde.
Por fim, foi realizada a interpretação dos dados, o que permitiu a emergência
de 4 categorias temáticas referentes ao conceito, dimensões, expectativas e
críticas dos participantes sobre a proposta de acolhimento implementada, que
foram discutidas com o que a literatura apresenta e o que foi encontrado no
campo de estudo.
Todos os sujeitos participantes foram informados acerca dos objetivos do
estudo, conforme a Resolução nº 196/96 do CNS e assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido. Para manutenção do anonimato dos sujeitos
foram atribuídos nomes fictícios de flores. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê
de Ética e Pesquisa da Escola Bahiana de Medicina e Saúde, sob o protocolo n°
83/2009, de 30 de julho de 2009.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os participantes do estudo tinham média de idade de 42 anos (variando entre de
25 e 67 anos). A maioria dos entrevistados eram do gênero feminino (11), com
tempo médio de cadastro de 5 anos, podendo ser divididos em dois grupos em
relação ao grau de escolaridade: 7 apresentavam o segundo grau incompleto e 5
afirmaram ter ensino fundamental incompleto.
A percepção dos usuários da unidade docente-assistencial expressas nas
entrevistas possibilitou a apreensão de 4 categorias, que serão apresentadas a
seguir.
A. Acolhimento na compreensão do usuário
O acolhimento é uma ferramenta tecnológica de intervenção, pautado em uma busca
pela universalidade do acesso e na avaliação de risco, com definição de
prioridades, que representa um importante avanço no sentido da humanização da
atenção(6) e envolve também questões de organização e prática do trabalho(2).
Geralmente, dois modos de acolhimento, denominados "formal" e "informal" podem
ser encontrados na Atenção Primária à Saúde (APS). O primeiro consiste no
atendimento programado e individual dos usuários, com ações, metodologias e
espaço definidos. Já o acolhimento denominado informal é o que não predispõe
horário e nem local específico, sendo o usuário atendido pelo profissional que
no momento apresentar-se disponível(7).
Nas falas dos entrevistados esses aspectos surgiram na definição dos mesmos
sobre a operacionalização do acolhimento, destacando-se a dimensão espacial, a
busca de resolutividade das demandas dos usuários no momento em que as mesmas
surgem, bem como a postura proativa na atenção e resolução coletiva das
questões apresentadas.
Acolhimento é o espaço que se reúne pacientes com os profissionais,
para discutir e tentar resolver os problemas do paciente. (Amor-
perfeito)
Ver na hora com o que a pessoa está, saber o que é, e tratar o que
ela está queixando. (Magnólia)
Além disso, o acolhimento é relacionado tanto à ação clínica quanto às outras
atividades desenvolvidas na APS, como a atenção domiciliar, não sendo pontual e
específica para um sujeito, mas, acontece de forma ampliada ao contexto social
e relacional, percebida a partir de relações de confiança no interesse,
envolvimento e responsabilidade dos profissionais com o bem estar dos sujeitos,
de acordo com os entrevistados.
Acolhimento é atender toda a família, porque não é só a mim que
atendem bem, acolhem todos de dentro da minha família. (Lótus)
Se precisar, eles vão lá no domicílio saber como a gente está. É um
acompanhamento bem mais do que de perto. [...] Eu sei que as pessoas
se preocupam comigo. (Prímula)
Trata-se, portanto, de uma proposta voltada para melhoria das relações
estabelecidas, a partir da procura espontânea do usuário ao serviço, momento no
qual ocorre o encontro com os profissionais de saúde, o processamento e busca
de resolução de sua demanda, quando possível(2), reconhecendo os limites e
potencialidade de cada nível de atenção, favorecendo o acesso aos serviços a
partir da necessidade de saúde do usuário, a articulação das redes de
referência e contra-referência, e a efetivação da responsabilidade contínua,
mesmo quando o cuidado ultrapasse o nível de complexidade de seu serviço,
conforme apontado no depoimento a seguir:
Mas eu tenho pressão alta e diabetes, e um dia meu açúcar subiu muito
e eles me levaram para consulta. [...] Um dia passei mal aqui, e a
equipe me levou até lá na emergência de São Marcos. A moça foi até lá
comigo para me deixar. (Gardênia)
Apesar de o acolhimento ainda estar em processo de construção, já existe um
reconhecimento por parte dos profissionais que o mesmo amplia vínculos e
melhora a compreensão sobre as necessidades dos usuários(1). O vínculo requer a
confiança do usuário em relação aos trabalhadores, no sentido dos últimos serem
capazes de equacionar os problemas de saúde, e não só isso, capazes de escutar,
orientar e auxiliar em outros aspectos do cotidiano da vida, inclusive no apoio
ao manejo de obstáculos(6). Além disso, envolve um grau de afetividade
manifestada na expressão corporal e nos modos de comunicação verbal, conforme
destacado pelos usuários:
No meu ver é receber bem, dar atenção, a palavra já diz, é um gesto
de carinho acolher a pessoa. (Dália)
[...] é você ser bem atendido. É um jeito diferente de atender, de
conversar. (Jasmin)
Aponta-se, portanto, para a importância da valorização dos sujeitos e do
processo contínuo de construção e fortalecimento de vínculos, a partir da
escuta qualificada e interessada sobre as demandas apresentadas pelos usuários.
Trata-se, neste sentido, de reduzir os mecanismos que produzem relações
automatizadas e pontuais, para estimular encontros promotores de maiores graus
de autonomia e cuidado ampliado, no sentido de atender ao princípio da
integralidade.
B. Portas abertas: equipe que acolhe
Uma vez que a demanda por cuidados de saúde envolve múltiplos saberes e
fazeres, a unidade de saúde na qual este estudo foi desenvolvido conta com um
quadro ampliado de profissionais, o que permite a organização de equipes
multidisciplinares para uma atenção integral dos sujeitos e famílias atendidas.
Algumas falas apontam para a postura acolhedora de diversos membros da equipe,
portanto, não restrito aos profissionais de nível superior, como produtora do
acolhimento na unidade:
Toda vez que venho me consultar, todos são atenciosos, encaminham bem
as consultas, seja médico, estudante, outras profissões, tudo [...].
(Anêmona)
Aqui as atendentes são boas, os médicos são bons; se a gente for
olhar, até a moça da limpeza é educada. Todos são bons. (Lótus)
Na atuação das equipes interdisciplinares estudadas por alguns autores
confirmou-se o potencial para a realização de mudanças que beneficiam os
usuários e os trabalhadores, bem como a reorganização no modo de fazer
assistência à saúde, a partir dos micro-espaços de trabalho e devido à
conjugação de vários destes fatores: vínculo, acolhimento, humanização da
assistência e melhora no acesso dos usuários aos profissionais e aos serviços
de saúde(8). Tais aspectos também foram relatados por Dália e Amor Perfeito:
Aqui tem nutrição e enfermagem. Pra mim, que sou diabética é muito
bom. (Dália)
Aqui tem coisas que a gente não acha com facilidade por aí. Antes, a
gente tinha que ir para fora. Agora tem pediatra. Até preventivo já
faz. (Amor Perfeito)
Como principal porta de entrada, a unidade estudada conta com um espaço de
educação em saúde, conhecido como Humaniza-SUS. Neste espaço, onde começou a
ser implementada a primeira proposta de acolhimento há pelo menos 6 anos, os
usuários são informados sobre a ESF, a organização do serviço e as ações
desenvolvidas pela equipe. Participam de um momento de educação em saúde, fazem
a avaliação antropométrica e aferição da pressão arterial e recebem orientação
sobre sua condição de saúde. Por fim, é realizada uma escuta individual,
sensível às demandas dos usuários, para agendamento da consulta,
reaproveitamento de vagas ociosas ou atendimento às pequenas urgências.
Outra porta de entrada para o serviço é a recepção da unidade, espaço onde
marcadamente a relação usuário-serviço toca a acessibilidade, por constituir-se
em um local que historicamente foi símbolo de poder e de desencontros no
contexto da unidade de saúde. Nesse sentido, o acolhimento enquanto postura/
atitude impacta na necessidade de pensar a (re)organização do trabalho
realizado neste espaço, considerando não só a possibilidade dos problemas
enfrentados pelos trabalhadores do serviço, bem como a condição humana frente a
demanda reprimida e a situação de vulnerabilidade apresentada pelo usuário que
busca o serviço(9). Apesar das dificuldades neste setor, a presença da postura
de acolhimento foi sinalizada, conforme fala abaixo:
Atende a gente com paciência, tratam bem, conversa, pergunta o que
está sentindo, o que não está. Atende com calma, entendeu? [...]
Trata com amor, com cuidado, respeita
o paciente, né? Está ótimo, não tenho o que falar. Tanto faz aqui,
como do lado de lá. Eles atendem bem, tem boa vontade. [...] (Cravo)
Entretanto, o trabalhador que está na recepção do centro de saúde,
frequentemente, não vai ter soluções para todas as demandas, devido ao limite
de serviços oferecidos no local, a não identificação das opções que existem, às
dificuldades de encaminhamento para a rede, a não colaboração da equipe, ou
mesmo devido à natureza dos problemas que fogem ao seu alcance(8).
Apesar de ser um lugar de conflito, gerador de angústia e ansiedade, os
sujeitos entrevistados perceberam que há um empenho dos profissionais da
recepção para atender às demandas dos usuários, para informar, orientar e
justificar os limites existentes, mesmo quando extrapolam o espaço da recepção.
O pessoal da recepção é informativo, muito atencioso [...] Em
qualquer lugar, até na rua mesmo, elas são muito gentis, receptivas,
atendem com interesse. [...] Na marcação da consulta, nos remédios,
pode ser que falte, mas, o pessoal diz o porque, que não depende só
deles. A medição da pressão tem gente disponível [...] Eu me sinto
muito amparado. Em outros postos, eu ia e me sentia completamente
perdido, não sabia como funcionava. Ninguém sabia dar uma informação.
(Jasmin)
No intuito de diminuir os tensionamentos presentes na recepção, organizar o
fluxo dos usuários na unidade, ampliar o acesso, acolher as demandas dos
usuários e estabelecer equipes de referência, a unidade implantou a Gerência
Acolhedora em março de 2009, que tem como objetivo acolher a demanda expressa
pelo usuário que busca o serviço, utilizando-se dos equipamentos disponíveis na
unidade. Dentre as ações da equipe interdisciplinar, destaca-se o
reaproveitamento de vagas ociosas por critérios de risco e o atendimento às
demandas emergentes, encaminhamento adequado para a rede de referência os casos
que exijam atenção especializada.
Primeiro, eles colocam quem está precisando mais, eu acho certo.
(Magnólia)
Qualquer hora que chegue aqui atende. Tive pressão elevada, minha
filha teve febre, eu vim aqui e atendeu. Nos outros lugares, não é
assim não. (Amarílis)
Em algumas experiências que buscam reverter a lógica do atendimento de quem
chega primeiro, para aquele que mais precisa tem sido observada que a
priorização dos casos passa a ser motivo de conflito de interesses entre o
individual e o coletivo e entre gerações, já que idosos e crianças têm lugar
prioritário no cuidado(10). A priorização de casos, seja por critério de risco,
seja por geração, é compreendido como ruptura do acolhimento por alguns
usuários, sendo apontado como motivo de insatisfação.
Às vezes, eles deixam passar gente que não chegou primeiro na frente
da gente. Como pode? (Amarílis)
Não é incomum a associação que o usuário faz entre resolutividade e satisfação
pessoal, quando na verdade, acolher a necessidade do outro não deve estar
associado à satisfação, já que tanto os profissionais quanto os serviços de
saúde apresentam inúmeras limitações(7). Salienta-se, portanto, a importância
de compartilhamento de informações sobre a forma de organização do serviço,
seus limites e potencialidades, bem como dos critérios de decisão e resolução
de conflitos, de modo a reduzir tensões, aumentar os canais de comunicação
entre os sujeitos e favorecer a cogestão do processo de acolhimento.
Neste sentido, o acolhimento, além de ampliar o acesso dos usuários ao SUS,
potencializa os profissionais de saúde e gestores na construção de espaços
democráticos, éticos e reflexivos para a construção de um novo modelo
assistencial, e possibilita o estímulo e fortalecimento da autonomia e
cidadania, além de corresponsabilização na produção do cuidado à saúde(11),
individual e coletiva.
Reconhecendo, portanto, as barreiras de acesso e resolutividade, e considerando
o acolhimento um conjunto formado por atividades de escuta, identificação de
problemas e intervenções para seu enfrentamento, outras ações são desenvolvidas
na Unidade para atender a este objetivo, tais como: o acolhimento em saúde
bucal; acolhimento em psicologia; aconselhamento nutricional coletivo; linhas
de cuidado e clínica ampliada para pacientes hipertensos e/ou diabéticos, para
gestantes e crianças, entre outros. Trata-se de iniciativas para reduzir a
demanda reprimida, desenvolver ações de educação em saúde, atenção às demandas
a partir de critérios de risco e potencializar as ações coletivas.
O termo acolhimento é comumente concebido na prática como espaço para
"recepção" ou "triagem". Tal divergência exige a necessidade de um debate sobre
as formas de abordagem do acolhimento sob a ótica de cada profissional de saúde
e a relação deles com os usuários que buscam a unidade e a influência do mesmo
para a produção do cuidado em saúde, sendo necessário destacar que a
resolutividade do serviço dialoga com as práticas de acolhimento adotadas, ao
contribuir para a constatação de efetividade do atendimento perante a demanda
do usuário(9).
Desse modo, o acolhimento constitui-se como uma atividade oferecida pela
unidade, não impedindo que se estabeleça uma relação acolhedora em todos os
espaços e momentos da produção de serviços de saúde, entre a equipe e os
usuários, tanto aqueles representados pela demanda espontânea, quanto àqueles
que não procuram o serviço, mas também necessitam de atenção.
C. Acolhimento como elemento de responsabilização, corresponsabilização e
resolutividade: caminhos para a construção do vínculo
O acolhimento é um processo em que trabalhadores e instituições tomam para si a
responsabilidade de intervir em uma dada realidade, em seu território de
atuação, a partir das principais necessidades de saúde de sua população. Neste
sentido, a responsabilidade da equipe envolve uma postura compromissada desde a
organização do serviço até as ações clínicas, conforme sinalizado na fala
abaixo:
Em outros postos que eu já aventurei, às vezes, não tem nem médico.
Aqui raramente isso acontece, e quando acontece, o pessoal organiza
para você ser atendido no outro dia, ou, o mais próximo possível.
(Jasmim)
Cada trabalhador tem responsabilidade na superação dos fatores limitantes que
se apresentam, empreendendo esforços para construir alternativas dentro do
contexto de sua realidade(10). Na unidade em estudo, a gerência acolhedora
facilitou a negociação entre as demandas dos usuários e a capacidade de
atendimento da equipe, bem como a busca de alternativas não definidas nos
protocolos, mas, isto já acontecia em ações individuais dos membros das equipes
e no Humaniza-SUS.
Não tem vaga? Vai e conversa com o médico, para ver o que pode fazer
[...] Hoje mesmo, eu queria saber como é que faz para arranjar um
atendimento com o clínico de última hora, e já me falaram do
reaproveitamento de vagas. (Tulipa)
Nunca saí sem resposta daqui. [...] Sempre que eu preciso, eu conto
[...] coloca como extra, dá um jeito de arrumar uma vaguinha, a gente
nunca recebe um não totalmente. (Anêmona)
O diálogo e o vínculo apresentam-se como ferramentas importantes para a
percepção de acolhimento dos usuários entrevistados. A capacidade de diálogo
entre trabalhadores da saúde e destes com os usuários permite a construção de
maneira corresponsável de um serviço resolutivo, que atenda as necessidades de
todos esses atores, bem como relações que produzam ou fortaleçam a autonomia
dos usuários(10). Para Cravo,
Teve uma vez que eu cheguei para procurar uma informação e o pessoal
procurou saber, me respondeu com educação. [...] Às vezes fica cheio,
todo mundo querendo ter sua vez, e o pessoal tenta ajudar, tem
paciência, fala como é, o que tem que fazer. (Cravo)
A responsabilização da equipe também foi citada na fala de Lótus, que
identificou a resolutividade nas orientações recebidas sobre a rede de
referência.
[...] eles respondem de uma forma esclarecedora, caso não seja
atendido aqui, indicando pra outro lugar, caso tenha necessidade e a
depender do tipo do problema, da necessidade [...]. (Lótus)
Esta relação poderia se chamar de responsabilidade coletiva, a qual pode ser
promovida por meio de processos comunicacionais eficientes, construindo uma
rede de influência que provoque um movimento de formação de determinada
harmonia nos níveis de envolvimento e comprometimento de todos os interessados
(10). Os usuários entrevistados apontaram para a importância da
corresponsabilidade dos atores, inclusive de seus pares, para melhor
atendimento das necessidades de saúde da população.
Cada um faz seu papel. Como tem profissional ruim, tem também os
pacientes. Porque tem uns pacientes aí que, por favor! O paciente
depende do médico e o médico depende do paciente, mas, às vezes, o
paciente é ignorante, quer chegar e ser logo atendido, passar na
frente dos outros e não deve ser assim. (Amor Perfeito)
Mas é cada um pensando no seu, né? Todo mundo querendo resolver o seu
problema. E aí não dá, né? Senão, vira bagunça. (Cravo)
Os indivíduos só assumem uma postura ativa a partir do momento em que se
entendem como sujeitos no processo, portadores de direitos e de potencial para
contribuir. Vale destacar que, ao focalizar a questão da corresponsabilidade na
gestão e no cuidado em saúde no âmbito da ESF, se reconhece a sua vinculação
com a temática mais ampla da participação social(12).
D. Entraves no acolhimento: limites, especificidades e conflitos na
intersubjetividade
O vínculo favorece o cuidado integral por democratizar e horizontalizar as
práticas em saúde, na medida em que constrói laços afetivos, confiança,
respeito e a valorização dos saberes dos usuários/família/trabalhadores de
saúde(13).
É esperado que pessoas se vinculem ou se dirijam aos serviços de saúde, na
medida em que esses representam parte do sistema de cuidados socialmente
criados e dos mecanismos sociais que elas dispõem para recomposição de suas
vidas frente aos processos de saúde-doença. Contudo, é certo que inúmeras
necessidades vividas por essas pessoas não se exprimem como demandas aos
serviços de saúde(14).
Acolher uma demanda como uma necessidade de saúde dependerá dos atores em cena,
da construção do objeto de ação, da forma como este processo se realiza e das
possibilidades de negociação. Desta forma, as propostas da PNH promovem
possibilidades de humanização do trabalho no SUS, como geram novas exigências,
capazes de sobrecarregar ainda mais os profissionais de saúde, caso estes não
estejam instrumentalizados para lidar com o aumento de demanda gerada(15).
Vale destacar que a disposição para esta postura ética não se constitui em uma
capacidade absoluta e apriorística do ser humano, ou, em algo que possa ser
controlado por um trabalho consciente e voluntário e/ou por mecanismos
gerenciais. Além disso, é importante levar em consideração que a disposição
para olhar o outro não se distribui uniformemente entre os diversos
trabalhadores de saúde de um mesmo serviço, e também não se manifesta de um
mesmo modo para um mesmo sujeito, a cada dia e diante de cada caso. Tal
disposição depende, em grande medida, do processo de identificação que se
estabelece entre o trabalhador e o sujeito de quem deve cuidar, a quem deve
assistir(16).
Às vezes, você vai procurar uma informação, um não sabe, o outro já
sabe. [...] Semana passada mesmo fui marcar, fiquei lá, não me
informaram nada. Aí chegou a pessoa que levou as desistências daqui
para lá. Levou algumas pessoas, e quem estava lá ficou sem informação
nenhuma. (Amor Perfeito)
Além disso, as especificidades de cada serviço e a singularidade de cada
sujeito que o vivencia influenciam na percepção de acolhimento e nas relações
estabelecidas. No caso em estudo, por se tratar de uma unidade docente-
assistencial, os usuários são atendidos pelos estudantes de medicina e aguardam
enquanto o mesmo recebe orientações do docente. Esse processo gera um tempo de
espera, que para alguns é incômodo, para outros não.
Não gosto muito porque demora. [...] Fico ansiosa para ser atendida
logo. Porque já sei que, quando chego aqui eu espero, espero, espero
[...]. (Amarílis)
[...] nós pacientes é que temos que ser mais pacientes. A gente sabe
que o aluno depois da avaliação leva para o professor, então, demora
um pouco. Mas, as pessoas reclamam demais. Quase todos reclamam.
(Jasmin)
Se por um lado, a unidade tem buscado alternativas para ampliar o atendimento
aos usuários, o agendamento/atendimento por demanda programada também é
apontado como um dificultador da acessibilidade.
A gente veio aqui em setembro para marcar, e aí só marcou para
novembro. Só isso que eu acho chato, entendeu? Demorado. (Cravo)
Ainda como ponto dificultador para alguns entrevistados, identificamos a
dificuldade de acessibilidade em outros espaços, como apontado por Acácia, que
chega a sugerir a ampliação dos serviços prestados na unidade.
Aqui, o que não tem ainda é laboratório. Mas, também, não temos
espaço ainda pra isso né? [...] Por enquanto, só está faltando
cardiologista. (Acácia)
Nesse contexto, percebe-se que muitos são os entraves que ocupam o trabalho
cotidiano do gerente e o empenho desprendido por eles para a resolução dos
problemas, canalizando assim, a maior parte da sua atenção(17).
Por fim, compreendemos que a assistência integral à saúde depende também da
articulação da rede de serviços, como forma de garantir um encaminhamento
seguro e resolutivo, considerando que cada nível de atenção à saúde atende a
uma determinada complexidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo aponta que os processos de trabalho construídos para gerar maior
acolhimento na unidade são percebidos pelos usuários entrevistados como
mecanismos que promovem maior acessibilidade ao serviço e resolutividade de
suas demandas. Entretanto, esses investimentos são limitados pelas dificuldades
da rede de referência, especificidades da atenção básica, em especial numa
unidade docente-assistencial, e na humanidade dos sujeitos envolvidos.
O processo de mudança das práticas de saúde pode gerar resistências entre os
gestores, profissionais e os próprios usuários, porque exige maior esforço para
a conformação dos atores envolvidos, gera conflitos de interesses, e revela,
muitas vezes, a descrença e o não compartilhamento dos conhecimentos, valores e
ideais que norteiam a proposta.
É importante que este processo ocorra, para além das ações burocráticas, na e
pela intersubjetividade dos sujeitos que (re) produzem práticas de cuidado.
Caso contrário, corre-se o risco de consolidar regras e normas que engessam as
ações e constroem práticas mais uma vez estereotipadas, descontextualizadas e
acríticas.
Neste sentido, convidam-se os profissionais de saúde a um encontro com o outro
e consigo mesmo. A proposta de acolhimento implica, também, no reconhecimento
dos próprios limites enquanto profissional - sujeito e na auto-reflexão sobre a
forma que estabelecemos, mantemos e interrompemos o contato com estes outros
sujeitos.
Diante desse contexto é preciso estar atento para outro risco: o de
individualizar o problema e culpabilizar o profissional de saúde pela
"desumanização" dos serviços. Cabe, portanto, aos gestores promover condições
de trabalho apropriadas e estímulo à formação continuada, constituir de fato
uma rede de referência funcional, divulgar o potencial dos serviços e da PNH,
dentre outros, de modo a permitir a atenção integral e qualificada.