A família na Unidade de Pediatria: convivendo com normas e rotinas hospitalares
INTRODUÇÃO
A inserção da família no ambiente hospitalar, considerando-se seus direitos e
deveres, tem demandado novas formas de organização na dinâmica do cuidado de
enfermagem. No caso da internação pediátrica, para se prestar um cuidado
integral à criança, torna-se imprescindível voltar a atenção para as
necessidades da família, desenvolvendo, assim, uma proposta de cuidado centrado
na díade criança-família(1).
Frente à necessidade de hospitalização, o familiar cuidador pode apresentar
sensação de incapacidade, dependência, insegurança e descontrole devido à
condição da criança. À medida que precisa se adequar às normas e rotinas
impostas pela instituição hospitalar(2), tende a negar-se, podendo ter sua
condição de sujeito e autonomia afetadas.
Estudo acerca das relações estabelecidas pelas enfermeiras com a família
durante a hospitalização infantil evidenciou que essas profissionais não
contemplam suas necessidades, pois são objetivas, sucintas, formais e
unilaterais. As relações estabelecidas pelas enfermeiras com a família não
contemplam as necessidades da família de solidariedade, aproximação, empatia,
estabelecimento de vínculos, responsabilizações e acolhimento que contribuiriam
para que essa se sinta segura e fortalecida diante do processo de
hospitalização de sua criança. Verificou-se que o processo de trabalho é
realizado com predominância do foco nos interesses da Enfermagem. Percebe-se
que a equipe delega cuidados à família sem priorizar sua coparticipação, nem
negociar as ações de cuidado à criança a serem realizadas(1).
A experiência da internação no hospital, em razão das características e
rotinas, muitas vezes rígidas e inflexíveis, pode gerar, no familiar cuidador,
desconforto, impessoalidade, dependência da tecnologia, isolamento social,
falta de privacidade, rompendo bruscamente com seu modo de viver, que inclui
suas relações e seus papéis, comprometendo sua capacidade de escolher, decidir,
opinar e expressar-se(3).
Ao entrar para o mundo do hospital, as famílias passam a ser governadas por
normas e rotinas impostas pelos profissionais como uma forma de organizar o
processo de trabalho e harmonizar as funções dos diversos setores que coabitam
no hospital. Evidencia-se que essas se apresentam como mecanismos de poder
disciplinar, com vistas a padronizar a atuação da família no hospital. A
disciplina produziria a modelagem e controle dos corpos, ferramenta que norteia
todo o processo de construção do poder e normatização das condutas(4).
Na visão foucaultiana, há, em qualquer sociedade, diversas situações em que o
corpo se apresenta preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem
limitações, proibições ou obrigações(5). Micro poderes perpassam todo o corpo
social, acarretando transformações e modificações nas condutas dos indivíduos.
O corpo social, ao longo dos séculos, se consolidou como fabricado,
influenciado por uma coação calculada, esquadrinhado em cada função corpórea,
com fins de automatização, incorporando nos corpos características de
docilidade. Assim, é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser
utilizado, que pode ser transformado, aperfeiçoado, adestrado, sendo utilizado
como uma poderosa ferramenta de controle(5).
A disciplina dos familiares cuidadores da criança, no hospital, obtida por meio
do cumprimento das normas e rotinas impostas, não visaria o aumento de suas
habilidades, nem aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que os
torna obedientes e úteis, facilitando o trabalho da equipe de saúde. As normas
e rotinas seriam, portanto, métodos que permitiriam o controle minucioso dos
familiares, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma
relação de docilidade-utilidade. Nesse sentido, a imposição das mesmas pode
gerar conflitos, comprometendo o cuidado à criança hospitalizada, tornando o
familiar cuidador da criança fragilizado(2).
A negociação do cuidado à criança entre o familiar cuidador e a equipe de
enfermagem não tem sido uma tarefa fácil. Frente às normas e rotinas, o
familiar pode sentir sua vida invadida pela imposição dos deveres
institucionais diversos a suas crenças, valores e hábitos de vida e seu
contexto social/familiar. No hospital há espaços definidos, vinculados às
regras, normas e regulamentos que direcionam o trabalho da equipe. As regras
formais existentes e instituídas devem ser respeitadas, mas deveriam ser
reconstruídas a partir da realidade de cada família, como forma de contemplar
suas individualidades. No entanto, nem sempre há a flexibilização dessas normas
e rotinas, ocorrendo impasses normativos.
A família frente à internação hospitalar da criança vivencia a hegemonia
institucional que se diferencia da sua experiência subjetiva. Passa a se
deparar com o prescrito e o normatizado, dificilmente flexível, mesmo em meio à
complexidade dos fatos. A imposição das normas no contexto hospitalar revela
relações às vezes de submissão(6).
Para Foucault, no entanto, o poder deve ser exercido, existindo apenas na forma
de ação(7). Por isso, mesmo que esteja presente nas relações pessoais, não deve
ser compreendido como um fenômeno de dominação de um ser sobre o(s) outro(s)
(7). Nessa perspectiva, as normas e rotinas hospitalares não podem ser formas
de dominação ou submissão da família frente à equipe ou instituição hospitalar.
As relações de poder devem ser analisadas como circulantes, que se estabelecem
em cadeia. Tais relações nunca estão localizadas aqui ou ali, nunca estão nas
mãos de alguns, nunca são apropriadas como uma riqueza ou um bem. Elas
funcionam e se exercem em rede(7).
Assim, o respeito à autonomia das famílias deve ser exercido pela equipe de
saúde. Conquista-se autonomia, como forma de poder, através da libertação
ocorrida por meio do exercício individual de práticas de liberdade. A família
ao ser estimulada pode adquirir uma libertação socialmente possível. Entende-se
que toda prática de liberdade ou autonomia pode ser vista nas relações de poder
(8).
As normas e rotinas elaboradas com o intuito de organizar o processo de
trabalho da equipe não podem ser fontes de sofrimento, de sujeição e
desestrutura familiar, mas de qualificação do cuidado(9-10). Por isso,
necessitam ser elaboradas, levando-se em conta, além de disciplinar a
participação da família no setor, também suas necessidades individuais como
forma de humanizar a assistência.
Nesse sentido, a questão que norteou este estudo foi: como o familiar cuidador
da criança no hospital vem convivendo com as normas e rotinas? Objetivou-se,
pois, conhecer, na visão foucaultiana, como o familiar cuidador da criança
convive com as normas e rotinas no hospital.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo descritivo com abordagem qualitativa, orientado pelo
método da Teoria Fundamentada nos Dados(11). Neste método, a coleta e a análise
de dados constituem-se num processo sistemático, no qual os dados são
analisados comparativamente. Buscou-se descrever o fenômeno investigado,
possibilitando conhecer os problemas vivenciados procurando conhecer e
descrever as experiências vividas, comportamentos, emoções e sentimentos dos
participantes(11).
Foi realizada na Unidade de Pediatria de um Hospital Universitário do sul do
Brasil, no segundo semestre de 2011. Esta unidade tem como campo de atuação o
ensino, a pesquisa, a extensão e a assistência à saúde. Foram participantes do
estudo 18 familiares cuidadores de crianças internadas no setor, no período de
coleta de dados; 15 familiares foram distribuídos em três grupos amostrais e
três na validação dos dados. Como critério de inclusão, utilizou-se ser
cuidador significativo da criança e prestar-lhe cuidados diretos no hospital
durante a realização da coleta dos dados.
Os dados foram coletados por meio da entrevista em profundidade única com cada
participante, gravada e a seguir transcrita. Foram questionados acerca de suas
vivências frente às normas e rotinas no hospital. Essas foram agendadas
previamente com cada familiar, realizadas na sala de prescrição da Unidade de
Pediatria, gravadas e transcritas para análise.
Após cada entrevista procedeu-se à codificação aberta dos dados, em que as
falas foram minuciosamente detalhadas, através do exame do conteúdo, linha por
linha, após a digitação das gravações feitas com os sujeitos do estudo, de
forma a elaborar os códigos (unidades de análise). Esses foram agrupados por
similaridades e diferenças e designados em subcategorias e categorias(11).
Após, foi realizada a Codificação axial na qual as categorias foram
relacionadas entre si. Na Codificação seletiva, as categorias foram
relacionadas envolvendo causa, fenômeno, contexto, condições intervenientes,
estratégias de ação/interação e consequências, construindo o modelo
paradigmático(11).
Os princípios éticos da pesquisa envolvendo seres humanos, conforme a Resolução
196/96, foram seguidos(12). O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de
Ética da Universidade Federal do Rio Grande/FURG, sob o número 133/2011. Todos
assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias, ficando
uma cópia com cada participante. Foram identificados pela letra F seguida do
número da entrevista, como forma de garantir seu anonimato.
RESULTADOS
A análise dos dados gerou três categorias: A adesão a normas e rotinas como
expressão da normalização dos sujeitos, O discurso como espaço para a
resistência e A transgressão como espaço de resistência.
A adesão a normas e rotinas como expressão da normalização dos sujeitos
As normas e rotinas são instrumentos administrativos utilizados pelos
profissionais da equipe de enfermagem para organizar o processo de trabalho e
disciplinar o comportamento dos familiares cuidadores no setor. Fazem parte da
cultura hospitalar e visam a estabelecer horários, dietas, visitas, cuidados.
Mas, algumas famílias parecem reconhecer e aceitar, sem manifestar
resistências, a existência de normas e rotinas para o funcionamento do setor.
Olha já passei por outras normas até mais rígidas, no Hospital U,
onde eu nem poderia estar sentada na cama da criança como estou
agora. Por isso, acho aqui bem tranquilo, pois fui informada de tudo
o que pode e o que não pode, dos horários a serem cumpridos. Nós
acabamos cumprindo e obedecendo porque as entendemos como
necessárias. (F1)
Acho importante, quando nos disseram que não poderia trazer comida;
não trazer a mamadeira, devido à higienização em um local infectado
como o hospital. Não queremos prejudicar a saúde de nossos filhos.
(F7)
Algumas famílias expressam aceitação e adaptação às normas e rotinas,
aparentemente reconhecendo-as como importantes, evitando manifestar
resistências, numa aparente normalização de seus corpos a uma sociedade
normatizada.
Como é um hospital tem que ter normas. A gente não pode chegar
fazendo o que quer. Tem que ter hora para tudo: horário da
alimentação, de desligar a televisão. Nós estamos aqui é pela doença
e não é para o meu bem estar. (F3)
Acho importante porque tudo que é livre demais não dá certo, vira
baderna. Para manter a unidade em ordem, com tantas pessoas
convivendo junto se não houver disciplina haverão conflitos
desnecessários.(F6)
O discurso como espaço para a resistência
Algumas famílias, no entanto, reconhecem encontrar-se em situação de
vulnerabilidade devido à doença da criança, requerendo compreensão e apoio, o
que justificaria seus movimentos de resistência a normas instituídas,
mobilizando-se para sua modificação, seja através de argumentação, diálogo ou
negociação:
Após sete dias dormindo na cadeira eu não aguentava mais. Me doía
tudo. O guri doente e eu muito nervosa. Resolvi me deitar no berço
com o meu filho. Elas me veem aqui dormindo no cantinho com meu filho
e não falam nada. Eu durmo, mas deixo ele na beira do berçinho de
grades, facilitando com que a enfermeira coloque o termômetro e
consiga atender ele. É preciso compreensão com as nossas
necessidades. (F4)
Algumas famílias não têm como se adequar a estes horários. Acho que é
preciso que se permita o pai poder vir no horário da visita, entrar
em outro horário. Ele trabalha, cuida dos outros filhos em casa e não
é fácil. Assim, ele só consegue vir à noite e nem é todos os dias. Eu
preciso que deixem ele entrar. Me sinto muito sozinha e abandonada.
(F5)
É necessário avaliar cada caso e facilitar a vida das pessoas. Eu sei
que se fizer o que cada um quer pode virar bagunça, mas tem que
avaliar cada caso e facilitar a vida da gente. Apoiar a gente. (F7)
Assim, referiram como importante a flexibilização das normas e rotinas, de modo
a que as necessidades especiais de cada família e criança pudessem ser
atendidas, favorecendo sua adaptação no hospital:
São elaboradas para atender a necessidade delas (equipe). Elas não
comem nos horários que a gente tem que comer aqui. Temos que receber
visitas só naquele horário. Acredito que a gente tinha que ser
ouvida. Tinham que se colocar no nosso lugar. (F10)
A gente já está num ambiente estranho. Tem que comer cedo, dormir
cedo. Levantar cedo. À noite não se dorme nunca. Os horários são
muito rígidos. Fica muito difícil se adaptar aqui. (F4)
Reconhecem, ainda, que a adaptação de normas e rotinas, para atender suas
necessidades específicas, não comprometem a organização e a normalidade no
setor, pois decorrem de um processo de negociação com os profissionais da
equipe, preservando os espaços de liberdade tanto das famílias como dos
profissionais.
Queriam que eu descesse para comer. Mas meu filho não pode ir junto.
Vou deixar ele sozinho? Conversei com a enfermeira e expliquei que
estava dois dias sem comer e que não tinha como cumprir esta regra.
Ela falou com a moça que serve a comida e ela me trouxe no quarto. Eu
acho que vão trazer o almoço, também. Acho que não prejudicou em nada
o trabalho delas. Fiquei assim bem discreta. A gente conversou,
combinou e funcionou assim. Me senti respeitada! (F9)
No dia da cirurgia dele, na sala de cirurgia, eu fui, ali, e pedi
para a chefe de enfermagem para outra pessoa ficar junto comigo.
Expliquei que eu estava com muito medo. Mesmo não sendo a norma ela
deixou. A minha mãe ficou junto comigo. A gente ficou bem quietinhas
para não chamar a atenção. Foi tão bom. Eu não me senti tão sozinha.
A minha mãe, ali comigo. Foi tão importante isso. Eu me senti [chora]
mais humana. Eu estava com tanto medo, tanto medo. Então, tem a
norma, mas tem também a nossa necessidade e a sensibilidade. (F12)
A transgressão como espaço de resistência
Algumas famílias, frente à imposição de normas e rotinas, cuja justificativa de
sua necessidade e importância não se mostra suficientemente clara, parecendo
situar-se apenas na busca da sua obediência e submissão, mostram-se
resistentes, optando por transgredi-las. Reconhecem que algumas normas e
rotinas instituídas tornam as relações entre a equipe de saúde e as famílias
impessoais e burocratizadas, interferindo na autonomia da família como
cuidadora de seu filho.
Não cumpro, tudo que não pode que eu preciso, eu trago escondido: a
alimentação, a visita. É escondida. Nos sentimos sozinhas o dia
inteiro no hospital. Precisamos conversar um pouco e desabafar os
problemas que a criança está passando. (F6)
São inflexíveis, pois se nos veem com alimentação não deixam entrar
no hospital, inclusive, barram e tiram a sacola. O horário de visita
é a mesma dificuldade tendo que descer um para subir o outro e,
ainda, uma visita rápida para não ser retirado do quarto. Acho que é
muita burocracia, pois a gente está aqui para cuidar o filho doente.
Fazem isso para manter a gente na linha e garantir a ordem, mas é
muita bobagem. Tem coisa que podia ser diferente. (F9)
Referiram sentir-se negligenciadas, pois as normas e rotinas não parecem
contemplar suas necessidades. Assim, podem recusar-se a cumpri-las, seja
burlando-as, transgredindo o instituído, seja obedecendo ao que lhes é exigido,
porém com manifestações de protesto por ter que fazê-lo.
Não cumpro. Hoje veio uma vizinha minha e me trouxe alimentos
escondidos. Escondi no armário para conseguir me alimentar melhor.
Não gosto de fazer isso, mas não tem a possibilidade de ficarmos
somente com a comida do hospital. Eu amamento. Eu preciso estar me
alimentando. Eu me escondo para comer. Me sinto negligenciada no
momento em que mais preciso de ajuda. (F10)
Eu cumpro, mas protesto. Reclamo muito porque quem sabe do que eu
preciso sou eu e aí não pode isso, não pode aquilo. É muito difícil
se adequar. Come-se às cinco da tarde e depois só se vai comer de
novo ás oito da manhã. Á noite inteira acordadatemos fome. (F6)
DISCUSSÃO
No hospital, as famílias passam a conviver com as normas e rotinas necessitando
adaptar-se(13). O ambiente hospitalar possui normas e regras específicas às
quais as famílias são submetidas. Precisam adaptar-se aos horários das
refeições; ao uso de um banheiro comunitário e à falta de privacidade, a
conviver com a realização de procedimentos invasivos e dolorosos em seus
filhos. Tais situações aumentam sua vulnerabilidade, podendo contribuir para
sua despersonalização no setor, dificultando seu enfrentamento da situação
vivida(14).
Apesar de reconhecidas como necessárias, com vistas à organização do processo
de trabalho, as normas e rotinas, muitas vezes, têm sido utilizadas como um
instrumento de poder dos profissionais sobre as famílias. Na sociedade
contemporânea, estamos submetidos a um tipo de poder disciplinar capaz de gerir
todo um grupo social, com interesses que vão moldar e normalizar condutas. O
poder que visa disciplinar os corpos os investe e os produz conforme uma ordem
moral, social, política, produtiva e normativa(15).
Através do uso de normas e rotinas, obtém-se o controle dos corpos, realiza-se
a sujeição das forças e se impõe uma relação de docilidade-utilidade. O poder
disciplinar, na visão foucaultiana, visa à formação de uma relação que torna o
corpo humano tanto obediente quanto útil, constituindo uma política de
coerções, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus
comportamentos(16).
Usam-se, assim, normas e rotinas no hospital, para que os familiares cuidadores
comportem-se como se quer. O uso do poder disciplinar tem por alvo atuar sobre
os indivíduos em sua singularidade. É o poder de individualização que tem como
instrumento a vigilância permanente, classificatória, permitindo distribuir os
indivíduos, julgá-los, medi-los, localizá-los e, por conseguinte, utilizá-los
ao máximo.
Nesse contexto, evidenciou-se que a família reconhece a necessidade de normas e
rotinas no hospital, passando a conviver com elas em prol da criançapodendo
submeter-se sem questionamentos e estranhamentos, numa expressão de uma dócil
normalização anterior de submissão a normas e ordens. A organização do processo
de trabalho supõe a existência de normas e rotinas que possibilitem a
convivência pacífica de diferentes pacientes, familiares e profissionais neste
contexto, objetivando o cuidado da criança com qualidade e harmonia,
preferentemente sem resistências e conflitos .
A hospitalização da criança torna o familiar cuidador vulnerável
emocionalmente, submetendo-o a mudanças em suas rotinas, gerando angústias e
sofrimento(17). Tendo em vista sua vulnerabilidade emocional, apresenta-se como
facilmente domesticável. Evidencia-se que o poder não existe, o que existe são
as relações de poder que se estabelecem na sociedade, aqui objetivadas pelas
normas e rotinas impostas.
Os regimes de poder se efetivam também no hospital por meio de mecanismos de
vigilância e controle. A descrição de tais mecanismos tem como referência um
domínio institucional no qual o poder disciplinar é exercido por meio da norma
produzida(8). A punição e a vigilância são mecanismos de poder utilizados para
docilizar e adestrar as pessoas para que essas se submetam às normas
estabelecidas nas instituições. A vigilância é uma tecnologia de poder que
incide sobre os corpos dos indivíduos, controlando seus gestos, suas
atividades, sua aprendizagem, sua vida cotidiana(8).
Na concepção foucaultiana, os dispositivos do poder disciplinar, no caso as
normas e rotinas institucionalizadas no hospital, caracterizam-se pela minúcia
e pelo detalhe. Nesse sentido, o corpo será submetido a uma forma de poder que
irá desarticulá-lo e corrigi-lo através de uma nova mecânica do poder. A
disciplina irá determinar as distribuições do indivíduo no espaço e seu
comportamento. Tais técnicas são aplicadas em hospitais, permitindo observar e
vigiar o indivíduo no espaço. Dessa forma, o uso de normas e rotinas facilita o
sistema de vigilância e controle dos indivíduos. O espaço é organizado de forma
que priorize e privilegie os interesses da equipe de saúde(8).
Em estudo acerca do conflito no exercício gerencial do enfermeiro no âmbito
hospitalar verificou a necessidade de construírem-se novas formas de gerenciar
em enfermagem, desenvolvendo-se práticas mais interativas e dialógicas, nas
quais os conflitos não podem ser negados, mas trabalhados e minimizados(8).
Diante da discordância de normas e rotinas, podem ocorrer resistências na luta
contra as diversas formas de subjetividade e submissão. As lutas de resistência
são lutas que ocorrem pela busca da autonomia e liberdade.
Percebeu-se que as transgressões às normas impostas parecem ser realizadas com
o objetivo de aproximar a rotina hospitalar da domiciliar, tornando o período
de internação menos desconfortável tanto para a criança quanto para sua
família. Verificou-se que as famílias esperam que, durante a hospitalização do
seu filho, os profissionais se solidarizem com elas, flexibilizando as normas e
rotinas adaptando-as a suas necessidades(6), possibilitando-lhes trazer do
ambiente externo ao hospital alimentos para sua subsistência, dormir em
instalações adequadas, usufruir de horários flexíveis para a visita, tornando a
hospitalização menos traumática.
Nessas situações, percebe-se a presença de ações de resistência e busca por
espaços de liberdade e participação. Porém, quando os espaços de diálogo e
negociação em busca dessa flexibilização não são construídos, a família pode
sentir-se vulnerável e desamparada, com dificuldades de adaptação e de
aquisição de habilidades e competências para o cuidado à criança.
Assim, dados do estudo revelaram estratégias não dialógicas utilizadas pelos
familiares cuidadores para resistir às imposições, transgredindo normas e
rotinas que não atendiam suas necessidades. Na visão foucaultiana, as
resistências ao exercício de poder também tomam parte e se apresentam no
contexto social. O poder não se exerce senão sobre sujeitos livres e enquanto
são livres têm diante de si um campo de possibilidades no qual muitas condutas,
muitas reações e diversos modos de comportamento podem ter lugar(18).
Verifica-se, assim, que o poder funciona estabelecendo relações. Os efeitos de
dominação exercidos pelo poder não devem ser atribuídos a uma apropriação, mas
a táticas, a técnicas, a funcionamentos(8). Em outras palavras, o poder
disciplinar expressa o conjunto das posições estratégicas utilizadas e que pode
ser manifestado e às vezes até reconduzido pelos dominados. Se o poder apenas
se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é
porque produz efeitos positivos a nível do saber(19). Entende-se assim que as
formas de resistência das famílias às normas e rotinas configuram-se como a
busca por espaços de liberdade e autonomia.
Considera-se o contexto hospitalar como espaço tanto para práticas de liberdade
como de resistência. Como um ponto de partida, acredita-se que o
desenvolvimento dessas práticas possam colaborar com o sujeito numa
possibilidade de recriação de si e de emergência de novas formas de
subjetivação.
Nesse contexto, para que cumpram seu objetivo, normas e rotinas no hospital
devem ser elaboradas, considerando as necessidades da criança e seus familiares
cuidadores na unidade, qualificando seu cuidado, pois, assim, tornam-se
instrumentos essenciais à humanização do cuidado. Na visão foucaultiana, à
medida que o ser exerce poder, constrói também formas de saber que podem gerar
efeitos sobre este poder, refletido na capacidade de aprender e adquirir
habilidades. O poder, quando exercido, desenvolve saber e, ao mesmo tempo, o
saber origina efeitos de poder(8).
Acreditam-se necessários novos estudos acerca do uso de instrumentos
administrativos pelos profissionais da equipe de enfermagem como formas de
disciplinar o processo de trabalho ao mesmo tempo garantindo a humanização da
assistência prestada no setor ao se compartilhar o cuidado à criança com sua
família.
CONCLUSÕES
Procurou-se conhecer, a partir de uma visão foucaultiana, como o familiar
cuidador da criança convive com as normas e rotinas no hospital. Verificou-se
que algumas famílias tendem a se adaptar, pois entendem a necessidade de
organização do trabalho da equipe. No entanto, outras reconhecem a importância
da flexibilização das normas e rotinas, de forma que as mesmas atendam às
necessidades especiais de cada família e criança, favorecendo sua adaptação no
hospital.
A integração da família no processo de cuidado da criança na unidade de
internação hospitalar é uma competência que requer ser desenvolvida pelos
profissionais da equipe de enfermagem/ saúde, flexibilizando as normas e
rotinas. Essa é uma estratégia que se apresenta como possibilidade para um
cuidado mais efetivo, singular e prazeroso no qual tanto famílias como
profissionais possam sentir-se valorizados, competentes e plenos.
Necessita-se instituir práticas cuidativas embasadas no diálogo, na negociação
e na participação dos usuários junto aos trabalhadores. Os enfermeiros, ao
elaborarem normas e rotinas, necessitam vislumbrar uma gestão participativa,
que possibilite ao familiar cuidador da criança co-participação na tomada de
decisões acerca do processo saúde e doença de seus filhos, vivenciando no
hospital um ambiente de aprendizado e de cuidado, reconhecendo-se, também como
sujeitos cuidados.
Assim, enfatiza-se a relevância do uso das normas e rotinas como instrumentos
administrativos e forma de organização da unidade de pediatria, e não como
instrumento de sujeição e de busca de obediência do familiar cuidador, numa
expressão de poder disciplinar na visão foucaultiana. O processo de trabalho
não pode ser organizado tendo como foco apenas os interesses dos profissionais
da equipe de saúde/equipe de enfermagem, necessitando contemplar o atendimento
das necessidades da criança e seu familiar cuidador, tornando-se importantes o
uso de normas e rotinasque possibilitem à família práticas e espaços de
liberdade, autonomia e resistência.