Modos de produção de subjetividade do enfermeiro para a tomada de decisões
INTRODUÇÃO
A subjetividade se expressa no comportamento, no desejo, nas atitudes, na
linguagem e na percepção de mundo dos indivíduos(1). No fazer do enfermeiro e
das demais categorias de enfermagem, emergem diferentes modos de subjetividade
(2). O trabalho da Enfermagem possui características que o identifica, assim
como a seus trabalhadores: a forma como os seus saberes estão constituídos; os
instrumentos e objetos de trabalho; as formas de organização e submissão; e os
movimentos no ambiente de cuidado. E é, na realidade cotidiana, que os
trabalhos em saúde e em enfermagem (re)configuram essas características,
permitindo a (re)construção da identidade profissional(3). As mutações da
subjetividade não funcionam apenas no registro das ideologias, mas, no próprio
coração dos indivíduos, em sua maneira de perceber o mundo, de se articular com
o tecido urbano, com os processos de trabalho e com a ordem social, suportes
dessas forças produtivas(1).
Assim, emerge a importância de refletirmos acerca do significado do cuidado de
enfermagem na dimensão humana, resgatando a subjetividade que permeia esse
processo. Para tanto, é imprescindível considerar todas as formas de
manifestação da subjetividade do enfermeiro, em especial o comportamento e as
atitudes que são traçados, principalmente, a partir das decisões que envolvem o
processo de cuidar. Frente a essas colocações, é pertinente o seguinte
questionamento: Quais os modos de produção de subjetividade para o processo de
tomada de decisão do enfermeiro, na implementação dos cuidados de enfermagem?
Nessa perspectiva, pode-se considerar que as decisões tomadas pelos enfermeiros
constituem-se como a principal manifestação da sua subjetividade. Os
comportamentos, resultantes da tomada de decisões refletem diretamente no
processo de cuidar em enfermagem, constituindo-se, assim, na materialização da
subjetividade do enfermeiro. Nesse sentido, o presente estudo teve como
objetivo analisar os modos de produção de subjetividade do enfermeiro para a
tomada de decisões que envolvem o processo de cuidar da Enfermagem.
REVISÃO DA LITERATURA
A noção de subjetividade é definida como o conjunto das condições que torna
possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de
emergir como território existencial e autorreferencial, em adjacência ou em
relação de delimitação com uma alteridade, ela mesma subjetiva(1). Na
Enfermagem, a noção de subjetividade se estende por todos aqueles que estão
envolvidos na produção cotidiana do cuidado, usuários, trabalhadores, equipes,
gestores, familiares, que se encontram em territórios específicos, no momento
das interações necessárias ao cuidar(4).
Nesse sentido, a noção de subjetividade não está relacionada somente no
indivíduo. A individuação é apenas um dos múltiplos processos que projetam a
subjetividade do indivíduo. A individuação do corpo, por exemplo, pode ser
encontrada em diferentes componentes de subjetivação, como no nome próprio de
cada indivíduo. Outros componentes da subjetivação, tais como a produção da
fala, das imagens, da sensibilidade e do desejo, não se relacionam à
representação do indivíduo. Essa produção é adjacente a uma multiplicidade de
agenciamentos sociais e de mutações de universos de valor e de história(1).
Assim, seria conveniente definir a noção de subjetividade, renunciando,
totalmente, à ideia de que a sociedade e os fenômenos de expressão social são o
resultado de um simples aglomerado ou somatório de subjetividades individuais.
Ao contrário, é a subjetividade individual que resulta de um entrecruzamento de
determinações coletivas de várias espécies, não só sociais, mas econômicas,
tecnológicas, de mídia e tantos outros processos da constituição da
subjetividade(1).
As características da configuração profissional do enfermeiro também são
resultados de um processo de produção de subjetividade presente no âmbito dessa
profissão. A história da constituição da Enfermagem como profissão contribuiu
para a instituição de uma cultura de subjetivação que foi agregada ao âmbito da
prática de cuidados, a partir de modos de produção da subjetividade que
determinam manifestações importantes desses profissionais na tomada de
decisões, o que define o estabelecimento de relações de cuidado, de interações
com a equipe de saúde e, principalmente, orientam as práticas de cuidado.
MÉTODO
Este manuscrito apresenta delineamento qualitativo, do tipo exploratório, que
teve como cenário um hospital de grande porte, localizado no extremo sul do
estado do Rio Grande do Sul. Os participantes do estudo foram doze enfermeiros
atuantes nessa instituição, que atuavam ativamente, durante o período da
pesquisa, ou seja, não se encontrarem em qualquer tipo de afastamento da
instituição.
Para a coleta de dados, realizada em dezembro de 2011, utilizou-se a técnica do
grupo focal, que se propõe a investigar um tema em profundidade, permitindo que
se construam novas ideias e respostas sobre o tema em foco, a partir de
diferentes olhares e opiniões que são manifestados pelos participantes do grupo
e, ao mesmo tempo, são elaboradas certas percepções, ainda mantidas na latência
(4). Foram realizados três encontros focais, com duração de, aproximadamente,
duas horas.
Para conduzir os encontros focais a pesquisa contou com um moderador e a
colaboração de um observador não participante para auxiliar no registro dos
dados. Para conduzir as sessões focais, utilizou-se guias de tema, que
consistiram em roteiros para a condução dos encontros, contendo os objetivos e
as questões disparadoras necessárias para alcançá-los. Nesse estudo, foram
analisadas as respostas dos participantes às seguintes questões disparadoras:
Como você percebe a relação entre as suas decisões e o seu comportamento na
prática de cuidados? De que forma as decisões interferem no seu comportamento,
frente às práticas de cuidado? Você considera que o enfermeiro assume o papel
de decisor na prática de cuidados? Que situações exigem a tomada de decisão do
enfermeiro? Todas as decisões que você toma, você implementa? Que dificuldades
você encontra para implementar as decisões?
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
instituição na qual a pesquisa foi desenvolvida, com o protocolo número 008/
2011. Formalizou-se a participação dos enfermeiros no grupo focal, a partir da
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Também, garantiu-se a
confidencialidade das informações, sem divulgar o nome dos participantes em
qualquer fase do estudo. Para a identificação das falas dos enfermeiros,
utilizou-se o código "ENF", seguido do número de ordenamento dos participantes
(ENF 1, ENF 2, ENF 3... ENF 12).
O registro dos dados ocorreu por meio da gravação em áudio das sessões, e por
meio do diário de campo, nos quais foram registradas as expressões e
manifestações dos participantes, a partir das percepções do moderador e dos
registros do observador não participante. Para o tratamento dos dados,
inicialmente, foi realizada a transcrição literal das gravações em áudio
obtidas nas três sessões focais.
O conjunto de dados formado pelas transcrições e pelo diário de campo foi
submetido à análise de conteúdo que se compôs de três grandes etapas: pré-
análise; exploração do material; e tratamento dos resultados e interpretação.
Inicialmente, realizou-se a leitura flutuante e a elaboração de indicadores que
fundamentaram a interpretação. Em seguida, os dados foram codificados, a partir
das unidades de registro. Na última etapa, categorizou-se os dados, ou seja, os
elementos foram classificados, segundo suas semelhanças e suas diferenciações,
com posterior reagrupamento, a partir das características comuns. Para tanto,
adotou-se a análise por categorias temáticas, por meio do desmembramento do
texto em unidades, que foram categorizadas em classes de equivalências(5),
considerando as perspectivas teóricas apresentadas pelo referência adotado(1)
para abordar os modos de produção de subjetividade do enfermeiro nas tomadas de
decisões que envolve o processo de cuidar.
RESULTADOS
A partir do relato dos enfermeiros participantes do estudo, foram identificados
modos de produção de subjetividade que condicionam quatro comportamentos que
prevalecem no processo de tomada de decisões que envolvem o cuidado de
enfermagem: Modo de produção da subjetividade que determina um comportamento de
autoproteção; Modo de produção da subjetividade que determina um comportamento
de redundância; Modo de produção da subjetividade que determina um
comportamento dominante; e o Modo de produção da subjetividade que determina um
comportamento proativo, apresentados a seguir.
Modo de produção da subjetividade que determina um comportamento de
autoproteção
Os enfermeiros relatam que o objetivo principal das decisões sempre é
implementar as ações de cuidado com eficiência e segurança para o paciente.
Todavia, afirmam que as possíveis consequências pessoais também fundamentam as
decisões, determinando assim o modo de produção da subjetividade que determina
um comportamento de autoproteção.
No momento de decidir, a gente sofre influência de todos os lados. A
gente pensa no outro. Mas, a gente pensa, também, no eu. (ENF 1)
Eu acho que a gente pensa no paciente e pensa na gente, também. (ENF
2)
Os nossos critérios na decisão levam em conta a preocupação com o
paciente [...] Chegou um paciente do bloco, sem a enfermeira me
comunicar, antes. O leito nem estava limpo e eu não tinha outro
espaço seguro para colocar o paciente. Decidi voltar ele para o
bloco. A família ficou de cara. E a enfermeira do bloco discutiu
comigo. Mas, o que eu ia fazer? Deixaria um técnico, ali, ao lado
dele e ele abandonaria os demais pacientes. E, se o paciente cai no
corredor? Imagina uma hipotensão e, aí, o familiar vai dizer: Passou
mal porque chegou do bloco e ficou no corredor. Quem seria a
responsável? Eu, claro. (ENF 4)
Observa-se, de igual forma, que o comportamento de autoproteção pode ser
resultado da defensiva à intensa mobilização de processos emotivos que fazem
parte da esfera micropolítica de produção de subjetividade do enfermeiro.
Segundo os participantes, em situações de decisões mais delicadas e
específicas, há uma intensa manifestação de sentimentos, que podem interferir e
limitar no seu comportamento decisor.
Também, tem toda aquela emoção que pode envolver o processo de
decisão. E, aí, a gente pode dizer que ela vai interferir sim, com
certeza. (ENF 3)
Às vezes, eu não me sinto bem, cuidando daquela paciente, tomando
decisões sobre o cuidado, porque tem a mesma idade da minha mãe e a
mesma situação de doença [...] e te traz lembranças de alguma coisa,
que pode até limitar a decisão. (ENF 1)
Sinto que é muito mais difícil perder uma paciente jovem do que um
paciente idoso. E isso interfere no que tu vais priorizar nos
cuidados. Pode limitar a tua tomada de decisão, o teu envolvimento,
sem negligenciar nada, mas, também, pensando em te proteger. (ENF4)
Esse modo de produção da subjetividade, que determina um comportamento de
autoproteção, leva à tomada de decisões incompletas. Segundo os enfermeiros,
nessas situações é mais seguro e cômodo decidir por não decidir,
negligenciando, muitas vezes, algumas decisões que pertencem a sua esfera de
competência.
As decisões que a gente toma têm por objetivo favorecer a prática de
cuidado e a equipe. Mas, também, tem como objetivo nos proteger.
Proteger o nosso trabalho como enfermeiro. E algumas decisões que a
gente decide por não decidir, também, tem esse objetivo, de nos
proteger. (ENF 7)
Esse sentimento, decidir por uma coisa, por justamente saber que, de
novo, tu vais ter que brigar e bater o pé. Tu até sabes quais são os
possíveis resultados de algumas decisões. Por isso, tu te recolhes.
(ENF 5)
A gente estava falando de proteção. E decidir por não decidir,
também, faz parte. A gente pode sair da linha de conforto, a partir
de uma decisão. Então, eu posso, às vezes, não querer colocar em
prática aquela minha decisão. Essa decisão pode tirar a gente da zona
de conforto. (ENF 6)
Os participantes relatam que a repercussão pessoal das decisões desponta nesse
processo. Por isso, decidir por não decidir acaba sendo um comportamento de
autoproteção, especialmente naquelas situações que podem tirar o profissional
da zona de conforto.
Modo de produção da subjetividade que determina um comportamento redundante
O modo de produção da subjetividade que determina um comportamento de
redundância envolve a tomada de decisões sobre ações assistenciais que já foram
decididas e já estão estabelecidas nas rotinas do trabalho. Segundo os
enfermeiros, essa percepção está relacionada à importância e à centralidade que
são conferidas à prescrição médica no fazer da Enfermagem.
Boa parte das nossas decisões nasce a partir de um mando chamado
prescrição. E nós, passamos boa parte do nosso tempo e do nosso dia
em função disso. (ENF 5)
O problema é o que a gente prioriza no nosso fazer, no cuidado [...]
e a valorização do nosso trabalho [...] O cuidado de Enfermagem, às
vezes, ele é menos visto pelos próprios enfermeiros. Muitos
enfermeiros cobram dos técnicos que eles vejam e cumpram o que está
na prescrição médica. (ENF 1)
Por que o nosso trabalho tem que começar pela prescrição
médica? [...] Eu vejo que temos que passar a ver nas entrelinhas das
prescrições médicas. Se for estar prescrito passar sonda
nasoentérica, podemos decidir junto com todas as decisões necessárias
ao procedimento, os cuidados posteriores, como estabelecer a troca da
fixação da sonda e cuidados com a alimentação. (ENF 4)
Os participantes destacam a ênfase dedicada a outras atividades, em detrimento
das práticas de cuidado de domínio da Enfermagem que, por vezes, não são
priorizadas. Por outro lado, os Enfermeiros afirmam que decidir sobre as
decisões já estabelecidas, inclusive aquelas presentes na prescrição médica, é
considerado um comportamento adequado, desde que as decisões sejam direcionadas
para a esfera dos cuidados de enfermagem.
Modo de produção da subjetividade que determina um comportamento dominante
Outro modo de produção da subjetividade que permeia o processo de tomada de
decisões do enfermeiro tendencia a um comportamento dominante em todas as
situações e decisões que envolvem as práticas assistenciais e gerenciais. Os
enfermeiros afirmam que há um intenso envolvimento e controle nas situações de
cuidado, o que, segundo eles, favorece o processo de tomada de decisões.
Decidir, também, envolve controlar tudo. E tu, como enfermeira tem
essa possibilidade. Por exemplo, eu, lá, na minha unidade, eu estou
escutando, estou cuidando tudo que se fala, eu estou vendo tudo e
estou observando. Isso facilita, no momento das minhas decisões. (ENF
7)
Exatamente. E o controle da unidade, tu sabes tudo, tudo que está
faltando ou tudo que está acontecendo, te dá um controle e te deixa
mais claras e mais nítidas as alternativas de decisão. Pena que nem
sempre conseguimos enxergar esse lugar que ocupamos na nossa unidade,
frente à nossa equipe e demais profissionais. (ENF 12)
E o pior que a gente decide e faz tudo. Mas, a gente não assume e
valoriza essa imagem que, de certa forma, nos coloca como o centro
das decisões da nossa unidade. (ENF 2)
Conforme os enfermeiros, ser responsável e presenciar todas as situações e
interações do ambiente de cuidados, os coloca em uma posição importante no
cenário assistencial. Todavia, admitem que não há percepção nem valorização
dessa imagem centralizadora das decisões, principalmente, entre os próprios
enfermeiros.
Modo de produção da subjetividade que determina um comportamento proativo
A partir do relato dos enfermeiros, foi possível identificar um modo de
produção da subjetividade que determina um comportamento proativo. Esse modo de
subjetivação faz com que o enfermeiro assuma continuamente o papel de decisor,
valorize essa posição e utilize essa perspectiva para qualificar e fundamentar
suas práticas de cuidado.
Tudo que vamos decidir e definir no cuidado depende da nossa
sensibilidade. O enfermeiro precisa desenvolver essa habilidade de
decidir e, principalmente, ter consciência das suas decisões, o que
elas vão repercutir. O cuidado nos coloca em situações de decisão. Eu
preciso pensar o que eu vou fazer e como vou fazer e por que. (ENF
10)
A nossa capacidade de decidir, também, está na capacidade e
sensibilidade de perceber as coisas. Isso é sensibilidade. Ver o
problema. Seja ele clínico, quando eu preciso decidir por uma
intervenção rápida e eficaz de cuidado. Ou, seja ele de causa
interpessoal, ligado aos problemas pessoais entre os trabalhadores.
Minha sensibilidade para isso é o ponto chave, na maneira como eu vou
decidir. (ENF 2)
A sensibilidade para perceber os problemas e identificar as
alternativas. A sensibilidade que envolve até os critérios para
elencar as nossas prioridades de decisões. A tua primeira conduta e
qual é a tua segunda conduta? É, também, sensibilidade. (ENF 7)
O modo de produção da subjetividade que determina um comportamento proativo é
caracterizado pela sensibilidade apurada do enfermeiro para conduzir os
processos de tomada de decisões na implementação dos cuidados de enfermagem.
Segundo os participantes, há maior sensibilidade para identificar os problemas
e alternativas de decisão, avaliar as consequências e implementar as decisões,
tanto na área clínica, quanto as situações que envolvem conflitos
interpessoais.
DISCUSSÃO
Os comportamentos no processo de decisão são determinados por modos de produção
da subjetividade que são permeados por agenciamentos coletivos de subjetivação
que, em algumas circunstâncias e contextos sociais, podem se individuar. Assim,
a subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes
tamanhos, sendo essencialmente social, assumida e vivida pelos indivíduos em
suas existências particulares.
Especificamente, considerando o processo de tomada de decisões do enfermeiro
nas ações de cuidado, pode-se identificar que os modos de subjetividade oscilam
entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, a ponto de suas
decisões serem exclusivamente condicionadas pelos agenciamentos sociais,
resultando no comportamento de autoproteção, de redundância e de dominação; ou
uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos
componentes da subjetividade, produzindo um processo de singularização que
resulta no comportamento proativo do enfermeiro(1).
O modo de produção da subjetividade que determina o comportamento de
autoproteção faz com que o enfermeiro mantenha percepções valorativas,
apoiando-se em sistemas conceituais inefetivos, a fim de obter uma
autopercepção favorável(1). Nesse modo de subjetivação, o enfermeiro considera
a repercussão pessoal das decisões, optando, muitas vezes, por abster-se e
fragilizar-se, comportamentos profundamente ligados aos agenciamentos sociais
controlados pelo sistema capitalista.
Defensivamente, os enfermeiros limitam o seu envolvimento no processo de tomada
de decisão, numa tentativa de autoproteção, frente aos processos emotivos e às
dificuldades que podem ser encontradas na percepção de problemas, na
identificação de alternativas de cuidado e na avaliação das ações
implementadas. Não assumir algumas decisões, principalmente, em situações nas
quais o resultado já é previsível, pode ser configurado como um comportamento
de autoproteção correspondente às forças subjetivas que reprimem a manifestação
do desejo.
O comportamento de autoproteção tem como base as racionalidades funcional,
pragmática e objetiva, controladas pelos agenciamentos sociais. Essas
racionalidades exacerbam os apelos produtivos da sociedade de mercado, que
centraliza, única e exclusivamente, no trabalhador, a responsabilidade dos
resultados das decisões, camuflando os demais aspectos que pertencem à
macropolítica e que, também, influenciam nesse processo, tais como: as
condições de trabalho, a estrutura das instituições de saúde e os materiais
humanos disponíveis(1).
Frente às decisões que levam à perplexidade, esse modo de subjetivação provoca
a fragilidade, que corresponde à tendência da adoção de uma posição meramente
defensiva, provocada pelo medo da marginalização, processo pelo qual o
indivíduo é submetido, caso ouse criar territórios singulares, de compreensão e
superação desses processos emotivos. Assim, esse processo de subjetivação tem a
função de definir coordenadas semióticas, que se infiltram no comportamento dos
indivíduos, fazendo com que suas funções e capacidades sejam controladas,
impedindo e bloqueando a expressão do desejo(1).
Perpetua uma situação complexa da enfermagem frente à sociedade, uma vez que
essa área necessita demonstrar a sua importância técnica, mercadológica e
social no interior de uma equipe de saúde, em que enfrenta a sobreposição de
atividades com outros profissionais, em muitas situações(7). Assim, no âmbito
do cuidado, a invisibilidade do enfermeiro perpassa pelo desconhecimento da
riqueza das suas atribuições, da sua sensibilidade e da sua habilidade,
características que permitem o envolvimento e participação nas situações de
decisões para determinar as ações assistenciais nas práticas de saúde(8). E
isso fere a identidade do enfermeiro, mormente pela ideologia negativa, em face
da autonomia profissional no pensar e agir, nas intervenções e decisões que
envolvem o âmbito do cuidado de enfermagem(9).
O modo de produção da subjetividade que determina um comportamento de
redundância envolve a tomada de decisões sobre ações assistenciais que já foram
decididas e já estão estabelecidas, principalmente, aquelas definidas na
prescrição médica. Esse modo de subjetivação tem como finalidade fortalecer a
produtividade e o controle da instituição, a partir de equipamentos sociais e
de dispositivos políticos, culturais e econômicos, que definem a esfera de
alcance das decisões e dos comportamentos dos indivíduos(1).
A Enfermagem é uma prática social que responde, fielmente, às exigências
definidas pelas organizações econômicas, políticas, sociais e ideológicas das
instituições hospitalares. Assim, o modo de produção de subjetividade que
determina um comportamento redundante, também, corresponde à prevalência do
modelo biomédico de atenção à saúde na organização dos serviços de saúde, na
sistematização da assistência e no próprio senso comum. Nesse contexto, a
percepção, acerca das atribuições da Enfermagem, acaba sendo a de dar
sustentação às práticas médicas, constituindo-se de um trabalho complementar a
esta categoria profissional, assim sendo reconhecida pela sociedade e, muitas
vezes, até pelos próprios enfermeiros(10).
O processo envolvendo decisões já estabelecidas, inclusive aquelas presentes na
prescrição médica, é considerado um comportamento adequado, desde que as
decisões sejam direcionadas para a esfera dos cuidados de enfermagem. A
redundância implica uma produção de subjetividade em série, que direciona o
comportamento permanente de manter-se em um mesmo ponto, ou seja, permite a
delimitação da esfera de decisões e das suas amplitudes no comportamento. Não
se trata de um movimento unilateral de poder como entidade que subjuga o
indivíduo, mas modos de subjetivação capitalísticos que definem coordenadas
semióticas determinadas, docilizando e naturalizando práticas e discursos dos
profissionais(1).
No processo de tomada de decisões do enfermeiro, há uma tendência a um
comportamento dominante, em todas as situações que envolvem as práticas
assistenciais e gerenciais. Inevitavelmente, a tomada de decisão está presente
em todas as fases do processo de trabalho da Enfermagem. Em um estudo realizado
em uma unidade de internação clínica britânica, foi observado que, em um
período de apenas três horas, o enfermeiro esteve envolvido em,
aproximadamente, doze situações de tomada de decisões. As decisões estavam
voltadas para a prática de cuidados diretos e indiretos ao paciente, tais como:
decidir e realizar curativo com cobertura oclusiva de três dias, em paciente
com úlcera por pressão em região sacral; decidir comunicar a possibilidade de
alta de um paciente, a partir dos resultados laboratoriais; decidir que
informações devem ser transmitidas aos familiares dos pacientes; e decidir
sobre a suspensão da alta de um paciente, por algumas horas, para orientá-lo
sobre o esquema medicamentoso no domicílio(11).
O comportamento de domínio e de controle são elementos subjetivos presentes no
trabalho do enfermeiro e nas suas ações de cuidado, com o objetivo de favorecer
a cura dos corpos individuais, através da organização do cuidado, do ambiente
terapêutico e dos agentes de enfermagem. Nesse modo de subjetivação, o controle
é o principal instrumento para o domínio do espaço, do tempo e dos
trabalhadores, e para a definição dos papéis e das inúmeras relações que se
dão, em especial, no sentido do domínio e subordinação(12), inclusive sobre o
comportamento do enfermeiro que, ao assumir todas as decisões apresentadas nas
demandas de cuidado, se torna produtivo economicamente.
Nesse sentido, o capitalismo não se traduz, unicamente, no registro dos valores
de troca, valores que são da ordem do capital, das semióticas monetárias ou dos
modos de financiamento. A perspectiva capitalista, também, manifesta-se por
meio de um modo de controle da subjetivação, como grandes máquinas produtivas
de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de cada ser
humano perceber o mundo(1).
Assim, o enfermeiro passa a ser reconhecido como um profissional polivalente,
ao qual são atribuídas inúmeras tarefas, colocando este profissional em uma
posição central no cenário assistencial. Todavia, não há a percepção nem
valorização dessa imagem centralizadora das decisões entre os profissionais, em
especial para favorecer o processo de tomada de decisões. Nos discursos dos
enfermeiros parece estar ausente a percepção das posições de poder e a
necessidade de inserção social e política no campo da saúde(10).
A origem desta invisibilidade do trabalho da Enfermagem pode ser buscada na
própria evolução histórica da profissão que, primordialmente, era exercido
apenas como caridade. Ademais, o resultado das decisões tomadas pelos
enfermeiros na prática de cuidados nunca constituíram objeto de estimativa: em
duração, número de doentes atendidos, tipos de cuidados realizados, sua
penosidade, dentre outros. É um trabalho inestimável, idealmente de tão grande
valor que se torna impossível compará-lo a qualquer outro(13).
Sendo assim, as práticas de cuidados mantêm um valor econômico que oscila entre
o dom gratuito e o reconhecimento social e econômico. Esse panorama demonstra o
controle dos agenciamentos sociais e capitalísticos sobre os modos de produção
de subjetividade que permearam a constituição histórica da Enfermagem. A
própria essência do lucro capitalista, desse ponto de vista, não se resume
apenas ao campo da mais-valia econômica, mas, também, à tomada de poder da
subjetividade.
Dessa forma, o capital, como modo de semiotização, constitui-se em equivalente
geral para as produções de poder. Em busca dessa dupla mais-valia: econômica,
por meio do dinheiro, e de poder, por intermédio da cultura-valor, é que se
mobilizam as elites dominantes(1). A atuação do enfermeiro é valorizada e
reconhecida, quando possibilita o respeito entre os profissionais de saúde e
confiabilidade pela equipe; o atendimento de necessidades e resolução de
problemas pela clientela; e pela organização institucional, quando há retorno
social e financeiro advindos da atuação racional e eficaz do profissional(8).
O modo de produção da subjetividade que determina um comportamento proativo se
constitui como um processo de singularização, que se diferencia dos modos de
subjetivação de autoproteção, redundância e dominante. O feeling apurado do
enfermeiro se torna a fonte principal de agenciamento dos processos de tomada
de decisões, se traduzindo em um território para a singularização, no qual há a
possibilidade do desenvolvimento de estratégias inovadoras e conscientes para
as ações de cuidados. Nesse sentido, é possível desenvolver modos de
subjetivação singulares, a partir da recusa dos modos preestabelecidos e de
manipulação. Os processos de singularização, são subsidiados por modos de
sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção e modos de
criatividade, que produzam uma subjetividade singular(1).
A prática do enfermeiro é permeada de condições adversas, mas, também, de
conquistas, pois os saberes que subsidiam a profissão podem ser constantemente
construídos, desconstruídos e reconstruídos, possibilitando o desenvolvimento e
a abertura de novos caminhos, que contemplem o exercício de cidadania e o
desenvolvimento de suas competências e a autorrealização pessoal e
profissional. Esses novos espaços, também, podem viabilizar a busca da
satisfação das necessidades humanas individuais e coletivas, contribuindo para
o reconhecimento e valorização profissional, a partir da instalação de modos de
subjetividade fundamentados em uma perspectiva libertadora, solidária e
emancipatória(14).
Esse modo de subjetividade, que promove um comportamento proativo, envolve
indivíduos que não aceitam mais serem meros objetos do sistema ou coniventes
com valores diferentes dos seus. Ao contrário, envolve indivíduos que se sentem
capazes e motivados para participar, intervir e mudar o sistema social, com a
capacidade de colocar-se fora do cinturão ideológico e separar os seus
ambientes internos e externos, com o intuito de compreendê-los melhor e de
atuar sobre ambos de maneira sistêmica. Envolve indivíduos capazes de perceber
o todo, que não restringem suas decisões apenas pelos ditames da racionalidade
funcional ou da sociedade de mercado, pois conseguem distinguir a identidade
individual da integridade social. Envolve indivíduos autônomos na relação com o
empregador porque têm consciência crítica de seu valor e da interdependência
existente entre ambos(7).
Assim, a função de autonomização corresponde à capacidade de operar seu próprio
trabalho e sua cartografia, de se inserir em níveis de relações de força local
e de fazer e desfazer alianças(1). Essa afirmação corrobora com a perspectiva
de que na Enfermagem a dimensão subjetiva precisa ser enfocada a partir da
necessidade da reconstrução coletiva das formas de interação, de comunicação e
de ação, para fortalecer tanto o trabalhador, quanto o usuário que procura os
serviços de saúde, a partir da reconfiguração da área relacional e das
identidades profissionais(15).
O processo de singularização da subjetividade permite que o indivíduo capte os
elementos da situação, que construa seus próprios tipos de referências práticas
e teóricas, sem ficar na posição constante de dependência, em relação ao poder
global, em nível econômico, do saber, técnico, das segregações e dos tipos de
prestígio que são difundidos. A partir do momento em que o indivíduo adquire
essa liberdade de viver seus processos, ele passa a ter uma capacidade de ler
sua própria situação e aquilo que passa em torno dele. Essa capacidade é que
vai lhe dar um mínimo de possibilidade de criação e permitir preservar
exatamente esse caráter de autonomia tão importante(1) para a consolidação de
modos de produção de subjetividade para a tomada de decisões do enfermeiro na
prática de cuidados.
Ademais, esses modos de produção de subjetividade do enfermeiro, apesar de
estarem contextualizados em cenários de tomada de decisão na prática de
cuidados, revelam, também, os modos pelos quais esses profissionais se
constituem como sujeitos nas relações sociais que permeiam o espaço de práticas
de cuidados de enfermagem. Nesse sentido, questiona-se: como é possível o
enfermeiro apresentar-se como sujeito do trabalho, se há um processo de
submissão, com diferentes intensidades, que influencia no comportamento desse
profissional, consolidando características de docilidade e obediência? A
configuração do enfermeiro como sujeito do seu trabalho pode estar relacionada
à negação e superação da cultura de submissão e abnegação, impregnada no
processo de profissionalização da Enfermagem?
As respostas para esses questionamentos podem ser encontradas, a partir da
instalação de modos de produção da subjetividade singularizados, que abarcam
elementos identificados no comportamento proativo do enfermeiro no processo de
tomada de decisões.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se, a partir do presente estudo, que os modos de produção de
subjetividade do enfermeiro podem condicionar e definir comportamentos que
prevalecem no processo de tomada de decisões na prática de cuidados. Os modos
de subjetividade evidenciados se diferenciam, de acordo com a natureza do
comportamento do enfermeiro, nas decisões que envolvem o processo de cuidar.
Nos comportamentos de autoproteção, de redundância e de dominação, identifica-
se uma relação de alienação e opressão. Por outro lado, evidencia-se um
processo de singularização, que resulta no comportamento proativo do
enfermeiro, no qual há reapropriação dos componentes da subjetividade, que
permite uma relação de expressão de criação nas tomadas de decisões, que
envolvem o processo de cuidar.
A produção de um novo tipo de subjetividade singularizada é aquela que encontra
as vias de sua especificação, seus próprios modos de referência e suas próprias
cartografias. O traço comum entre os diferentes processos de singularização é
um devir diferencial que recusa a subjetivação capitalística, ancorada pela
afirmação positiva da criatividade em uma espécie de resistência social.
Para tanto, é preciso mobilizar os agenciamentos sociais controlados,
principalmente, pelas instituições formadoras dos enfermeiros, buscando
delimitar estruturas pedagógicas para novas formas de produção de
subjetividade, que permitam a criatividade, a sensibilidade e a resistência.
Ademais, é importante que esses modos de produção de subjetividade do
enfermeiro permitam que este identifique as situações que exigem a sua tomada
de decisão, assuma o seu papel de decisor na prática de cuidados, e tenha a
autopercepção da relação entre as suas decisões e o seu comportamento na
prática de cuidados.