Acesso ao cuidado à saúde da criança em serviços de atenção primária
INTRODUÇÃO
Uma sociedade que apresenta um serviço sólido de Atenção Primária à Saúde (APS)
aduz sistemas de saúde eficientes, qualitativos e equitativos para atender a
toda população, estando dentre esta as crianças. Com essa compreensão, entende-
se que os serviços de APS devem ser considerados portas prioritárias ao cuidado
à saúde da criança, esgotando todas as possibilidades de atenção à saúde antes
de encaminhá-las a outras esferas de atenção(1). Contudo, é fundamental que
estas portas permaneçam abertas às famílias, para que não encontrem barreiras
aos atendimentos, sejam, geográficas, financeiras, culturais, políticas,
físicas, organizacionais e de linguagem(2).
Garantir acesso a serviços de qualidade é uma das mais destacadas
responsabilidades dos sistemas públicos universais de saúde, na perspectiva de
viabilizar não apenas a atenção a problemas de saúde agudos e crônicos, mas
também articular ações de promoção de saúde e prevenção de agravos(1).
Tem-se constatado no Brasil importantes transformações no fazer saúde ao longo
dos anos, mediante um sistema de saúde universal, acessível e igualitário, o
Sistema Único de Saúde (SUS)(3-4), traduzindo-se em expressiva redução na
Mortalidade Infantil (MI). Muito embora ainda se observe que, apesar das
inúmeras políticas públicas de saúde voltadas à saúde da criança, poucas ações
concretas se efetivaram, predominantemente para o período neonatal, responsável
por 70% das mortes precoces. Se considerarmos que mais de 60% destas mortes
poderiam ter sido evitadas por ações sensíveis à APS, por meio do amplo acesso
a serviços de saúde de qualidade e resolutivo, fica evidente que as ações em
saúde não têm sido realizadas em sua plenitude(5-8).
Nesse sentido, depara-se com o constante desafio em eximir barreiras que
impedem o acesso das pessoas aos serviços de saúde(2). Somado a esse desafio,
ressalta-se que, pelo fato das famílias apresentarem diferentes necessidades,
as equipes de trabalho em saúde devem tomar consciência da responsabilidade na
construção de redes de apoio social, a fim de estruturá-las de forma equitativa
para garantir possibilidades de acolher e cuidar de seus seguimentos e
construir o coletivo(1).
A partir desses contextos, o objetivo deste estudo foi o de reconhecer o
atributo acesso da APS para a resolução dos problemas de saúde apresentados por
crianças menores de um ano no município de Cascavel-PR, a partir dos relatos de
pais e cuidadores.
REVISÃO DA LITERATURA
A criança é um sujeito cujo processo saúde-doença é determinado socialmente, ou
seja, a criança pertence a um grupo social representado por sua família e suas
condições de vida interferem em seu perfil epidemiológico(9). Essa compreensão,
ao longo dos anos, não fazia parte das políticas sociais, assim como o Estado
não se responsabilizava pela saúde infantil.
Nessa perspectiva, as autoridades públicas passavam para as famílias a
responsabilidade moral e econômica com cuidados medicalizados para a criança,
eximindo-se de responsabilidades para promover, prevenir, curar e cuidar da
saúde das crianças em todo mundo. A família era um instrumento nas mãos do
governo, pois representava um sujeito de necessidades, consciente do que
queria, mas inconsciente na forma de querer(4), quadro que se repetia no
Brasil.
Passaram-se longos anos para que essa situação começasse a ter mudanças, em
nosso país isso veio a ocorrer mediante a Constituição de 1988, que delineou em
suas diretrizes o aces-so universal ao sistema de saúde, considerando que saúde
é direito de todos e, dever do Estado proporcionar condições para sua plenitude
(3). Nesse sentido, possibilitou a reformulação dos serviços de saúde na busca
de ações de abordagem coletiva e preventiva, em desdenho às ações individuais e
curativas, caracterizadas pela medicalização contemporânea. E como pano de
fundo, a APS se desenhou como caminho de atenção preferencial para o acesso aos
serviços de saúde(1).
Pode-se definir a APS como um inextricável conjunto de propostas assistenciais
divididas de forma equitativa a toda população, com vistas a resolver uma
diversidade de problemas comuns, por meio da oferta de ações preventivas,
curativas, reabilitadoras e paliativas. Para a construção dessas ações, é
preciso apresentar como base a extensão e o seguimento de atributos essenciais,
a saber, atenção ao primeiro contato (acesso); longitudinalidade, integralidade
e coordenação. No entanto, para sua efetivação em saúde, é fundamental que tais
atributos permaneçam articulados, somados inclusive aos demais atributos
complementares, família, comunidade e cultura(2).
A atenção ao primeiro contato, contexto desse estudo, relaciona-se ao acesso ao
serviço e sua utilização; ou seja, sua unidade estrutural versus sua unidade
processual, independente do problema de saúde que afeta as pessoas ou do número
de vezes que procura os serviços(2). Em outras palavras, significa a
acessibilidade e a utilização de um conjunto de serviços diante de cada novo
problema ou novo episódio que faz com que a população busque atenção à saúde
(1).
Ações em saúde na APS com estas dimensões denota um contexto amplo de saúde,
carreadas pelo cuidado integral, mediante o seguimento de elementos essenciais
para cuidar, como: movimento, interação, alteridade, plasticidade, projeto,
desejo, temporalidade, não-causalidade e responsabilidade(10).
A APS é o ponto de atenção no sistema de saúde que oferece a entrada a esse
sistema para as novas necessidades e problemas, proporcionando atenção sobre a
pessoa e sua família no decorrer do tempo e em todas as condições. Assim,
solidificar o aces-so ao conjunto de ações e serviços de saúde na APS envolve o
desmonte de barreiras que dificultam ou impedem esse acesso(2).
Com a implantação, em 1991, pelo Ministério da Saúde (MS), do Programa de
Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e, em 1994, do Programa Saúde da Família
(PSF), este atualmente denominado Estratégia Saúde da Família (ESF), permitiu-
se maior aproximação dos serviços de saúde com as famílias e a comunidade,
buscando reorganizar e reestruturar estes serviços pela transformação do modelo
hegemônico centrado na medicalização para um modelo focado na promoção da saúde
e na participação comunitária(1). Por meio destas ações, a expectativa para o
acesso integral à saúde das crianças no Brasil começou a ser potencializado,
assim como essa estratégia foi assumida pelo governo como meio de fortalecer a
APS.
No período transcorrido desde a implantação da ESF, políticas voltadas à saúde
da criança foram sendo criadas. Em junho de 2011 foi lançada pelo MS a Rede
Cegonha, a qual envolve uma rede de cuidados com vistas a garantir o acesso
seguro e com qualidade na atenção à mulher em todo seu ciclo reprodutivo, bem
como garantir a criança acesso, segurança e o cuidado integral ao nascimento,
crescimento e desenvolvimento(11). Esta ação governamental é parte da política
da Rede de Atenção à Saúde (RAS) criada pela Portaria Ministerial nº 4.279/
2010, que visa superar o sistema de saúde fragmentado vigente; a promoção da
integração sistêmica de ações e serviços de saúde com provisão de atenção
contínua, integral, de qualidade, responsável e humanizada; incrementar o
desempenho do sistema, em termos de acesso, equidade, eficácia clínica e
sanitária; e eficiência econômica para promover a resolutividade nas redes de
atenção(12). Vislumbra-se então que, as políticas de saúde da criança têm
prioridade na atual conjuntura do sistema de saúde do país.
As RAS devem ser resolutivas, ou seja, solucionar 85% de problemas comuns à
saúde, proporcionar acesso, ser coordenadoras de fluxos e contra fluxos,
instrumentos e informações nas redes, ser responsável pela saúde dos usuários
adscritos nas redes e equipes de APS(1). Para iniciar a operacionalização das
RAS, em 2012 a Secretaria Estadual do Paraná implantou no estado a Rede Mãe
Paranaense, com o objetivo de reorganizar os cuidados materno-infantis.
A construção das redes de atenção à saúde da criança e à saúde familiar
estrutura-se e solidifica-se por meio de um con-junto de elementos
tecnocientíficos e subjetivos, os quais direcionam as ações para o cuidado com
as pessoas. Esta forma de cuidar deve ser iniciada no âmbito familiar, mas ao
mesmo tempo, ser consolidada por ações nos serviços públicos de saúde,
estipulando como porta de entrada para as ações acessíveis e resolutivas, a APS
(1-2).
A compreensão de que precisamos refere-se à soma de esforços para ofertar às
crianças acesso universal aos serviços de saúde, bem como a construção de
metodologias para alcançar tais objetivos. Entre essas metodologias pode-se
elencar o acolhimento como uma ferramenta essencial em prol a esse olhar para
com a criança, e, a classificação de risco, a qual dinamiza o processo de
cuidado e garante acesso e resolutividade à saúde da criança.
METODOLOGIA
Utilizou-se nesta pesquisa a abordagem qualitativa, com base no referencial
metodológico da hermenêutica-dialética. O referencial da hermenêutica envolve a
compreensão, interpretação e significação dos fenômenos. Abarca ainda, a
estrutura de horizonte, em que o conteúdo é singular e apreendido a partir do
todo de um contexto, por um movimento de ir e vir entre as partes e o todo(13).
Enquanto que a dialética apresentase na contraposição de ideias por meio do
diálogo, como proposta de argumentação dos contextos de acesso no processo de
adoecimento infantil.
A população para o estudo se compôs de famílias de crianças menores de um ano
atendidas em Unidades de Pronto Atendimento (UPA) de Cascavel-PR no ano de
2010, dentre estas, 16 participaram da pesquisa. A seleção dos sujeitos
aconteceu de maneira aleatória a partir da amostra sistemática do banco de
dados do projeto bicêntrico desenvolvido pela Universidade Estadual do Oeste do
Paraná e pela Universidade Federal de Santa Maria.
Buscou-se contemplar famílias das quatro regiões geográficas em que o município
está dividido, quais sejam: Norte, Sul, Leste e Oeste. E ainda buscaram-se
crianças que foram atendidas ao longo de todo o ano na UPA, obtendo-se uma
distribuição sazonal heterogênea dos atendimentos. Considerou-se como critérios
de inclusão: cuidadores residentes na área urbana do município; possibilidade
de contato telefônico prévio; cuidadores de crianças menores de um ano.
O município de Cascavel, cenário desta pesquisa, em 2013 ofertava os seguintes
serviços à população para atendimento à saúde: 36 Unidades Básicas de Saúde
(UBS); 13 equipes de saúde da família (em todas as modalidades); um hospital
geral público. Para o atendimento de urgência e emergência, disponibilizava de
dois Postos de Atendimento Continuado (PAC), conhecidos nacionalmente por UPA,
os quais atendiam, além da população geral, crianças na faixa etária de zero a
treze anos incompletos. A média de atendimento é de 40.000 crianças/ano por
unidade, 3.000/mês e de 100/dia. Com base nesses dados, emergiu a necessidade
de entender o porquê da procura das famílias pelo atendimento nas UPA, visto
que, em sua maioria, os problemas de saúde infantil são evitáveis e de
resolução em 85% na APS.
A coleta de dados teve início nos setores de arquivo das UPA e, seguiu nas
residências das famílias, compreendendo o período de março a maio de 2012.
Ressalta-se que, a busca pelos sujeitos encerrou-se mediante o alcance dos
objetivos propostos, ou seja, a partir do momento que estes geraram constructos
as questões iniciais, entendeu-se que a coleta estava finalizada. Por tratar-se
de pesquisa de abordagem qualitativa, a totalidade das entrevistas não foi
considerada essencial para a proposta metodológica, mas fez parte da prática
compreensiva da pesquisa(14).
A coleta de dados foi dividida em três fases, na seguinte ordem: inquérito
domiciliar, Mapas Falantes (MF) e entrevista semiestruturada. Os MF
representaram as ferramentas de reconstrução dos caminhos percorridos pelos
cuidadores em busca de atenção à saúde da criança, criando um momento de
interação durante as entrevistas(15).
O referencial teórico para análise envolveu o atributo acesso da APS(2) somado
ao referencial do cuidado integral, delineados pelos elementos para cuidar(10).
O conteúdo para análise foi obtido pelo ordenamento das entrevistas, da leitura
interpretativa, da compreensão ampla dos dados, para finalmente descrever-se
temas e subtemas para discussão(13), a saber: Aconselhamento familiar ao buscar
atenção à saúde da criança; Ausência de acolhimento ao primeiro contato;
Presença de classificação de risco para atenção à saúde da criança; Barreiras
que impedem o acesso à atenção à saúde.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), sob o Parecer nº 495/2010,
atendendo as normas da resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e
Pesquisa envolvendo seres humanos.
RESULTADOS
Aconselhamento familiar ao buscar atenção à saúde da criança
Muitas mães se consideram despreparadas no adoecer do filho, para tanto, ao
buscar atenção à criança, o aconselhamento familiar torna-se bastante
valorizado. Contudo, em determinadas situações, a decisão tomada mediante este
aconselhamento não representa o cuidado preferencial para à saúde da criança
naquele momento.
[...] como é minha primeira filha, a gente fica desesperada sem saber
o que fazer, eu acabei ligando para minha mãe e ela me disse para ir
direto ao hospital [refere-se a UPA]. (sujeito 1)
Dessa forma, ao buscar o cuidado, as famílias partem para uma porta não
prioritária aos serviços de saúde, conduzindo-se diretamente a serviços de
urgência e emergência.
A Figura_1 a seguir representa como ocorreu a busca por atenção à saúde de uma
criança no momento do adoecer.
Figura 1 MF construído pelo sujeito 12 representando a busca por ajuda
familiar, em seguida, em serviços de pronto atendimento
Ausência de acolhimento ao primeiro contato
Acolher as pessoas que necessitam significa prestar um atendimento de forma
educada, humanizada, ética e resolutiva. Na presente pesquisa houve um cuidador
que relatou sentir-se acolhido pelo serviço de APS.
Ah, eu não tenho que reclamar não, elas [recepcionistas e
enfermeiras] são bem educadas, eu não tenho do que reclamar. (sujeito
15)
Embora tenha se observado serviços que acolham seus usuários, pode-se perceber
neste estudo a excedência de serviços que deixam de acolher as crianças e suas
famílias no adoecimento.
Eles [profissionais de saúde] atendem assim bem, não é 100%, do jeito
que você gostaria. Ficam lá muito de papo, conversando, às vezes você
está ali no balcão um tempão esperando. [...] se você chegou ali no
balcão é porque precisa de alguma coisa. Elas estão lá dentro de
papo, conversando, dando risada, e, você fica ali, esperando,
terminarem o assunto para daí vir te atender. (sujeito 6)
[...] outro dia minha mãe marcou consulta, foi, estava chovendo.
[...] chegou e deu o papelzinho [...] no papel estava a hora que foi
marcada a consulta. Ela [mãe] chegou aqui em casa chorando, eu
perguntei o que aconteceu, ela dis-se: "Fui ao posto, fiquei até
agora esperando [...]". Ficou esperando e ninguém a atendeu, porque
olharam para ela [...] e perguntaram o que ela estava esperando. Eu
chego [UBS] e já vou falando, mas como ela, [...] não sabe ler, o
rapaz falou que a consulta era pra tal hora, ela foi naquele horário
[...]. Onde já se viu, deixar a pessoa esperando, porque olha e vê
que é uma coitada [...]. (sujeito 7)
Salienta-se que as famílias apresentam um outro olhar para esta recepção nos
serviços de saúde e compreendem a importância de serem acolhidas pela equipe
interdisciplinar. Inclusive, percebem que para serem acolhidas, este
atendimento não precisa resultar em consultas médicas, mas em um diálogo ou
escuta, pois na concepção dos cuidadores isto seria o suficiente, muitas vezes,
para resolver o problema que os afligem em relação à suas crianças.
[...] às vezes a pessoa está precisando só de conversar um pouco
[...]. (sujeito 12)
[...] precisamos de atenção, principalmente porque você chega, eles
[médicos] nem olham para sua cara, na cara do bebê. Vivenciei isso
[fica pensativa], [...] não posso generalizar. (sujeito 13)
Presença de classificação de risco para atenção à saúde da criança
A classificação de risco é um processo que dinamiza o atendimento às pessoas
que necessitam de atenção imediata. Em inúmeros momentos neste estudo emergiram
a questão classificação de risco, percebida pelos cuidadores principalmente
mediante a priorização de atendimento as crianças que apresentavam hipertermia.
[...] quando viram que a febre estava muito alta, elas
[recepcionistas] a colocaram para ser uma das primeiras a ser
atendida [...]. (sujeito 1)
[...] se tiver muito ruinzinho, com muita febre vai ao pronto
atendimento. (sujeito 7)
Contudo, percebeu-se a deficiência de alguns serviços em relação à temática,
pois de acordo com o relato de um cuidador, mesmo no momento em que a criança
apresentou dificuldades para respirar, esta não recebeu o atendimento imediato
que necessitava por não estar hipertérmica.
[...] a criança tem que está muito, muito ruinzinha, às vezes, eles
[profissionais da saúde] encaixam, mas eu não consegui.
[...] ela [filha] tinha dificuldade de respirar, naquele dia ela não
estava com febre, mas estava tossindo, eu não consegui, me mandaram
ao pronto atendimento. (sujeito 14)
Dessa forma, para alguns cuidadores a classificação de risco é deficiente, uma
vez que, considera apenas o estado febril para agilizar o atendimento.
Inclusive, estes cuidadores relatam que buscam atenção à saúde quando as
crianças estão hipertérmicas, pois o atendimento será moroso nas demais
situações em unidades de urgência e emergência, ou mesmo impedido nas UBS.
[...] a maioria é pela febre, eu não levo assim se não estiver com
febre, eu vou esperar assim quantas horas, chego lá com 38 ou 38 e
pouquinho eu sou atendida em 20 minutos. Mas sem febre umas duas
horas ou mais. Acho deficiente essa classificação (de risco) [...].
(sujeito 16)
Ressalta-se que nos momentos em que as famílias não conseguem o atendimento
procurado nas unidades de APS pelo fato da criança não apresentar hipertermia,
os profissionais de saúde que as atendem sugerem que busquem serviços de
pronto-atendimento. Contudo, as famílias não recebem qualquer tipo de
encaminhamento, tampouco o serviço de trans-porte sanitário.
[...] diziam [profissionais de saúde] que eu tinha que procurar o PAC
[...]. Não, nada, nada, nada de encaminhamento. [...] o transporte
sempre eu fui atrás. [...] nunca, não, nunca, nada [refere-se à
disponibilização do transporte sanitário]. (sujeito 16)
Barreiras que impedem o acesso à atenção à saúde
Garantir acesso aos serviços de saúde ainda representa um constante desafio ao
sistema de saúde brasileiro, mesmo após a Constituição de 1988. No Brasil, é
possível encontrar inúmeras barreiras para o acesso, decorrente da expressiva
diversidade regional e desigualdade social.
Neste estudo evidenciaram-se barreiras geográficas e funcionais. Salienta-se
que a barreira geográfica citada teve como pano de fundo barreiras funcionais,
levando a família a buscar outro serviço para melhor atendê-la. Dessa forma, ao
buscar atenção à saúde da criança em outra região do município, este cuidador
deparou-se com dificuldades para se locomover neste trajeto distante.
[...] você vai ali [Unidade de Saúde da Família (USF) do bairro que a
cuidadora reside] e nunca tem ficha, agora mesmo, já faz meses que
não tem médico [...]. [...] O posto do bairro mais próximo é bem
longe, é outro bairro, fica difícil ir. [...] vai a pé, são duas
subidas bem fortes para ir até lá, ou você pega um ônibus e vai até o
terminal, e do terminal você pega outro ônibus [...]. Faz uma volta
bem grande, bem demorada, ou tem que pagar um carro para levar.
(sujeito 6)
Vale ressaltar que, o serviço de APS que a família optou por não frequentar
refere-se a uma USF. O argumento apresentado relacionou-se a dificuldade para
se conseguir atendimento curativo, bem como, dificuldades para o acesso aos
programas de prevenção de doenças, como é o caso do Programa Nacional de
Imunizações (PNI).
[...] tem os horários para vacinar [...], porque às 17 horas fecha o
posto [USF]. [...] conforme você vai no horário que eles estiverem
atendendo, preparando as fichas para os médicos, você também não
vacina. Já voltei sem fazer a vacina, porque era horário do médico
[...]. (sujeito 6)
No entanto, o relato a seguir de um cuidador que frequenta uma UBS contrapõe-se
ao anterior que se referia a uma USF.
[...] todas as vacinas consegui ali [UBS]. (sujeito 9)
As barreiras funcionais, relativas à organização e disponibilização dos
serviços de saúde, apresentaram as maiores lacunas em relação ao atributo
acesso. Na presente pesquisa, estas foram aduzidas principalmente pela forma
como organizam os agendamentos de consultas, pois no momento em que as famílias
procuraram, dificilmente conseguiram atendimento em serviços de APS devido aos
agendamentos, necessitando buscar atenção em serviços de pronto atendimento.
[...] uma febre muito alta [...] você vai pegar ficha no dia de manhã
para levar no outro dia à tarde? [...] se você está numa situação que
precisa de uma emergência, vai ter que ir ao pronto atendimento
[...]. (sujeito 7)
Era agendado na sexta para o resto da semana, você vai adivinhar
quando a criança ficava doente [...]. (sujeito 16)
No tocante aos agravos à saúde do filho, muitos cuidadores, diante de barreiras
para o acesso aos serviços públicos, procuraram serviços privados em busca de
resolutividade ao problema de saúde apresentado.
[...] eu vou direto ao pronto atendimento, ou às vezes, até pago
consulta para ele [filho]. Quando vejo que está muito [ruim] pago
[...]. (sujeito 13)
A realização de consultas vinculadas a uma cota pré-estabelecida por
profissional caracterizada por "fichas" (grifo nosso), também foi elencada
pelos cuidadores como um problema para o acesso ao atendimento à saúde da
criança.
[...] não tem como atender porque as agendas estão todas cheias, tem
uma cota certa já. [...] toda vez que a gente vai nunca tem médico,
nunca consigo. [...] tem vezes que só tem 12 fichas e já tem mais de
20 esperando, nunca dá [expressa indignação]. (sujeito 8)
Tem apenas 32 senhas para o pediatra para semana inteira. [...]
imagina quantas pessoas que não tem [...] é pouca consulta. Pra gente
então piorou [refere-se à consulta ginecológica]. (sujeito 9)
Somado a dinâmica de agendamentos e distribuição de cotas para consultas, outro
problema evidenciado pelas famílias relacionou-se aos horários e dias de
atendimento dos serviços de APS, seja para consultas imediatas ou para
acompanhamento ao crescimento e desenvolvimento infantil.
Saio da minha casa e vou direto ao pronto atendimento, porque no
posto de saúde é difícil ir, criança gosta de ficar doente no final
de semana [risos], e no posto de saúde também tem que pegar ficha
para outro dia [...]. (sujeito 8)
[...] algumas vezes eu a levei [refere-se à puericultura], algumas
vezes. Nem todas [...], por causa do horário, é complicado levar
[...]. (sujeito 14)
Emerge ainda nos relatos que se a criança for acompanhada pelas consultas
preventivas e de promoção da saúde, o acesso à consulta médica torna-se mais
simples e eficiente.
[...] pela puericultura é mais fácil conseguir a consulta, se ela
[filha] tem um problema, vamos supor, eles têm conhecimento, ela
[enfermeira] conversa, explica, e ela mesma encaixa. (sujeito 14)
A falta de profissionais para atendimento às crianças também foi descrito pelas
famílias como um agravante ao acesso.
[...] falta mais enfermeiros, médicos. Sabe, o atendimento é ótimo,
mas precisa de mais gente, em número de pessoas trabalhando. (sujeito
1)
Ressalta-se que estas barreiras que impedem ao acesso não se resumem apenas a
consultas médicas, mas ao atendimento a todos profissionais da equipe
multidisciplinar.
[...] tentei agora conversar com a assistente social, porque eu
precisaria colocar meu filho numa creche. [...] eu nem consegui falar
com ela, já fui duas vezes procurá-la e não estava. (sujeito 12)
Por fim em relação a barreiras, os cuidadores compreendem que, muitas vezes o
acesso aos serviços de APS fica prejudicado devido à alta demanda de pessoas
que buscam atendimento.
[...] aqui para o posto do bairro, pertencem vários bairros, são
bastantes bairros, torna-se bastante gente mesmo. (sujeito 3)
[...] conseguir marcar [consulta] para ela [filha] é só com sorte
[leve sorriso] que consegue. [...] porque às vezes a gente chega lá
[no posto] e tem muitas crianças doentes [...]. (sujeito 15)
DISCUSSÃO
O adoecer de uma criança representa um momento difícil para a família. Não se
pode considerar apenas que uma criança está doente, mas que uma família é capaz
de adoecer juntamente com a criança. Portanto, os serviços de saúde na esfera
da atenção primária devem se responsabilizar de forma ampla por essa família
que adoeceu e lhes garantir acesso, uma vez que, a dinâmica familiar será
modificada pelo adoecer do filho. Dessa forma, ressalta-se a importância do
cuidado ser inicializado na APS, pois nessa esfera de atenção, tem-se
importantes ferramentas que se aliam ao cuidado para propor resolutividade e
felicidade as pessoas, como a proximidade e a responsabilização com os usuários
que necessitam ser cuidados(1,16).
Para tanto, o uso de estratégias como visitas domiciliares, reuniões e grupos
comunitários e a interlocução com as demais entidades da comunidade podem
representar importantes caminhos para o seguimento à saúde e o atendimento a
agravos à saúde da criança e de sua família(1-2).
Os serviços de APS são considerados ordenadores do acesso universal e
igualitário aos serviços de saúde. Uma vez iniciada a atenção em serviços que
não caracterizam a APS, dificilmente se terá o seguimento do cuidado, tornando
o acesso moroso por impor-lhe inúmeras barreiras; o vínculo entre usuário e
profissional ficará prejudicado; o cuidado não será integral devido à ausência
de responsabilização e falta de continuidade; e, o serviço será descoordenado
fazendo com que as pessoas que necessitam de atenção direcionem-se a serviços
que não podem lhes propor o cuidado desejado(1-2).
Como se evidenciou no presente estudo, no adoecer das crianças, devido à
morosidade em se obter resolutividade e pela imposição de barreiras
organizacionais para o atendimento, as famílias buscam serviços de pronto
atendimento para resolver o problema de saúde apresentado pelo filho.
Inclusive, quando estas buscam por apoio ou aconselhamento familiar, este
também sugere esse itinerário, ou seja, busca por atenção à saúde em serviços
de urgência e emergência.
Mediante a intensa demanda espontânea, os serviços de urgência e emergência
acabam tonando-se pouco resolutivos e incapazes de responsabilizar-se pela
continuidade do cuidado à criança(1). Acrescida a esta não responsabilização
tem-se a ausência da temporalidade para o cuidado nestes serviços,
principalmente, pelo fato de atenderem as crianças apenas em condições agudas,
não dispondo de alternativas para garantir-lhes o seguimento do cuidado(1,10).
Outro agravante descrito pelas famílias relacionou-se à falta de acolhimento
nos serviços de APS. O acolhimento pode ser definido como a atenção a criança e
a família de forma humanizada, responsável, ética e resolutiva. Para tanto é
necessário receber, compreender, ouvir, solidarizar-se com o outro. Este
atendimento não precisa perfazer uma consulta médica para resolver o problema
que afeta a criança, mas em diálogo e escuta, o que resultaria na satisfação
familiar (1,17-18).
Essa forma de fazer e pensar saúde foram percebidos entre os cuidadores, pois
ao relatarem que em determinados momentos as pessoas apenas precisam ser
ouvidas e, o simples fato de olhar para a criança a ser cuidada, denota a
percepção do ser humano além do caráter biológico, pois o reconhece como
indivíduo com subjetividades e direitos, que pertence a uma família que também
precisa ser cuidada. Esta percepção opõe-se ao olhar simplesmente biológico,
que impõe apenas cura, ou seja, o cuidado fragmentado, medicalizado e pouco
resolutivo(1-2,8,17). Em análise aos elementos do cuidado tem-se nesta questão
a ausência do desejo, alteridade e essencialmente a falta de interação entre
famílias e profissionais(10).
Outro aspecto destacado pelas famílias, que também evidencia o reducionismo do
modelo hegemônico da atenção à saúde, refere-se à classificação de risco. O
reconhecimento da classificação de risco como processo que otimiza o cuidado
para as crianças que necessitam prioritariamente é percebido pelas famílias.
Entretanto, estas consideram que outros sinais além da hipertermia devem ser
valorizados para a classificação de risco. Segundo o protocolo de atendimento
das redes de atenção à urgência e emergência, a criança febril é classificada
como prioridade dois (laranja), significando que a criança tem um risco
potencial de perder a vida ou função de membro, devendo ser atendida no máximo
em 10 minutos. Para tanto, esta deverá receber um transporte regulado através
do Serviço Móvel de Atendimento ao Usuário (SAMU), com acesso imediato aos
serviços de emergência devendo ser iniciado onde o usuário se apresentar(19).
Ainda constam neste protocolo sinais e sintomas elencados aos cuidados
prioritários, como: dor média a intensa, dificuldade respiratória,
sangramentos, alteração de consciência, entre outros(19). Dessa forma,
verificou-se a inconsistência no atendimento a uma criança neste estudo, pois,
segundo a cuidadora, a criança apresentava dificuldade respiratória e não
recebeu o atendimento no serviço que procurou, no caso, um serviço de APS. A
unidade encaminhou a família ao serviço de urgência, alegando não ter mais
consultas disponíveis para o dia. Primeiramente, a criança deveria ter sido
avaliada, pelo médico ou enfermeiro, classificado o risco e, frente à
impossibilidade de resolução nesse ponto da atenção, deveria ter sido acionado
o serviço de transporte sanitário ou SAMU para transportar a criança e família
à UPA.
Salienta-se que, para ter acesso aos serviços de saúde, seja na APS ou no
atendimento emergencial, é essencial rechaçar barreiras que dificultam ou
impeçam o cuidado. O acesso universal à saúde, independente de barreiras, foi
garantido a todos os cidadãos brasileiros mediante a Constituição Federal de
1988(3-4). A partir do SUS, muitos grupos populacionais puderam receber atenção
a sua saúde, no entanto, esta ação ainda não foi consolidada de forma integral.
No Brasil, devido à intensa diversidade regional e desigualdade social, para
muitas pessoas o acesso aos serviços de saúde está muito longe de ser
alcançado. Este fato pode ser evidenciado pelos altos índices de mortes entre
crianças consideradas redutíveis por ações simples desenvolvidas pela APS,
chegando a uma redutibilidade de mais de 60%(5-8).
No presente estudo, barreiras financeiras não foram mencionadas pelos
cuidadores. Todavia, a barreira geográfica foi descrita, mas o que se torna
preocupante é que esta busca por atenção em um serviço distante aconteceu pelo
fato de que o serviço de sua comunidade impôs-lhe barreiras organizacionais
para o acesso, de caráter preventivo e curativo. A grande problemática desta
situação é que esta cuidadora reside em uma região que dispõe de uma USF. Dessa
forma, o foco da ESF para fortalecer a APS deve seguir as diretrizes de atenção
programática contínua, como exemplo o PNI, o que não foi observado. Embora a
unidade tenha recebido o título de ESF a transformação no processo de trabalho
não aconteceu.
Relembrando a proposta matricial da ESF, sua implantação teve prioridade por
consolidar os princípios do SUS, entre eles o acesso universal. Nessa forma de
pensar, o acesso deveria ser facilitado em áreas com USF, por considerar entre
suas perspectivas a proposta de proximidade às pessoas, reorganizando os
serviços mediante ações de promoção da saúde e prevenção de doenças,
transformando a percepção do modelo biológico para um modelo amplo de saúde, a
clínica ampliada(1,17). Ao refletir sobre clínica ampliada não se deve
considerar apenas o cenário do médico diante de uma mesa examinando uma pessoa
que se encontra doente. Sua concepção deve ir além à expressão de doenças, mas
expandir-se a problemas comuns as pessoas que devem ser atendidas por um grupo
interdisciplinar para sua resolução(17).
Na presente realidade pode-se observar a presença de inúmeras barreiras
funcionais, dentre as quais dificultaram o cuidado as crianças, impedindo este
conceito amplo de saúde e clínica(2). Entre as barreiras, pode-se destacar: a
organização dos serviços relacionados aos dias e horários de atendimento; a
forma de agendamento de consultas com a equipe interdisciplinar; o número de
cotas para consultas médicas; escassez de profissionais para compor a equipe
interdisciplinar; e, alta demanda espontânea nas unidades de APS.
Tendo em vista que, um serviço de APS coordenado e com a proposta em dispor de
atenção qualificada e resolutiva ao grupo de pessoas em condições crônicas,
diminuiria consecutivamente a procura espontânea, inclusive em serviços de
urgência e emergência. Uma vez que se estas pessoas fossem acompanhadas por uma
equipe habilitada e responsável reduzir-se-ia expressivamente as agudizações
dos problemas de saúde. Ressalta-se que, o acompanhamento ao crescimento e
desenvolvimento infantil é fundamental para se evitar uma condição crônica e
suas agudizações, assim, se a criança receber a atenção necessária nos momentos
da puericultura, proporcionalmente a busca por consultas curativas diminuiria e
esta problemática da alta demanda seria resolvida(1).
Uma maior flexibilidade entre dias e horários nas unidades de APS também iria
favorecer a atenção às crianças, diante da necessidade das famílias
contemporâneas de que seus membros se engajem no mercado de trabalho para
contribuir com a renda familiar. Esta forma de organizar o serviço destacaria
entre os elementos para cuidar o movimento e a plasticidade, não olhando apenas
para o biológico, mas para uma amplitude de necessidades, as quais envolvem os
determinantes sociais, como habitação; educação; trabalho; saneamento; lazer;
segurança; entre outros(1,10).
A disponibilização de uma equipe interdisciplinar para atendimento eficiente em
tempo oportuno também deve ser considerada em serviços de APS, haja vista que
as comunidades têm aumentado ao passar dos anos. Profissionais em número
adequado abarca a elaboração de projetos para cuidar, os quais envolvem o
trabalho da equipe interdisciplinar e de gestores em saúde(10).
Conferiram-se ainda diante dos relatos dos cuidadores discrepâncias em relação
aos agendamentos entre as unidades de saúde, sendo que, a decisão e a forma que
as consultas são agendadas dependem exclusivamente dos profissionais inseridos
no cuidado. Além disso, em uma mesma unidade, a cada momento de mudança de
profissionais toda dinâmica da unidade de saúde pode ser mudada sem a
participação da população, representando a falta de alteridade entre os
profissionais na forma de fazer saúde em prol das necessidades das pessoas(10).
Ressalta-se que o fio condutor para grandes complicações em um modelo de saúde
como o nosso, centrado no biológico e na figura do médico relaciona-se ao
acesso a serviços e produtos ofertados para atender as necessidades das
crianças, uma vez que estas não podem ser consideradas homogêneas. As famílias
possuem interesses divergentes por terem condições particulares na garantia à
existência humana, ao mesmo tempo, é fato que sobreviver e ter acesso aos
recursos para garantir tal sobrevivência são necessidades intrínsecas a
qualquer sociedade.
Diante dos contextos apresentados nesta discussão, destaca-se que a presença e
o seguimento do atributo acesso na APS possibilitaria a certificação de
resolutividade e de qualidade da atenção à saúde das crianças(2).
CONCLUSÕES
A APS por ser considerada a porta prioritária aos serviços de saúde, não
poderia impor barreiras ao acesso, contudo, diante do cenário apresentado nesta
discussão, mediante a amplitude de barreiras ao acesso principalmente
organizacionais, as famílias desta realidade, optaram por inicializar
o cuidado em um serviço considerado não preferencial, os serviços de urgência e
emergência. Dessa forma, exibiram dificuldades em se alcançar a resolutividade
aos problemas de saúde dos filhos, pela falta de continuidade ao cuidado e a
não responsabilização.
Foram constatados serviços que deixam de acolher as famílias no adoecer do
filho, demonstrando precariedade na execução de ações e práticas relativas a um
olhar ampliado à saúde no momento de entrada aos serviços em busca de atenção à
saúde.
E por fim, ressalta-se o reconhecimento por parte das famílias e dos serviços
da importância da classificação de risco para otimizar o acesso imediato às
crianças que necessitam prioritariamente ser atendidas. No entanto, demonstrou-
se a fragilidade do serviço ao considerar apenas a hipertermia como sinal de
gravidade, embora esta faça parte das prioridades elencadas pelo MS, tendo em
vista que, outros sinais devem ser valorizados pelos profissionais da saúde
diante de agravos à saúde das crianças. Mostrando a necessidade de uso de
protocolos efetivos e que devem ser seguidos a risca, o que pode ser obtido por
meio da formação continuada dos profissionais de saúde que atuam nos distintos
pontos de atenção à saúde.