História da saúde da criança: conquistas, políticas e perspectivas
INTRODUÇÃO
As crianças por muitos anos foram tratadas da mesma forma que adultos, sem
nenhuma consideração pelos aspectos relacionados ao crescimento e
desenvolvimento infantil. Nesse contexto, foram colocadas no lugar de infante
(quietinhos, tradução livre do francês), sem voz, como objetos da esfera
doméstica. A infância não era percebida pela família e nem pelo Estado como uma
etapa do ciclo vital, com necessidades singulares(1). Entretanto, no decorrer
dos séculos a criança pas-sou a ser vista socialmente, com particularidades
significativas que exigiram transformações sociais, econômicas e políticas.
Transformações ocorridas na Europa, durante o século XVIII, conduziram ao
estabelecimento de novas relações de poder entre Estado e sociedade,
principalmente com o advento da Revolução Industrial, que levou à substituição
do trabalho individual e manufatureiro pela produção baseada no uso de
máquinas. Isto ocasionou a necessidade cada vez maior de mão-de-obra, surgindo
as primeiras políticas públicas de saúde, voltadas em sua essência, ao controle
social, serviços de saneamento e de saúde(2). Consequentemente, o modo de
produção capitalista, que fez o aumento da população tornar-se objeto do
Estado, que tinha como meta a expansão da produtividade e o fortalecimento do
exército, esteve diretamente relacionado à estruturação e evolução dos serviços
de saúde(3).
Deste modo, o reconhecimento da criança enquanto ser biopsicossocial, assim
como, seus direitos enquanto cidadão foi se delineando ao longo da história,
paralelos a assistência à saúde a este segmento populacional, o qual passou por
transformações e ainda permanece em constante construção.
Vislumbrando a apreensão dessas transformações, o presente artigo tem por
objetivo descrever e refletir sobre os aspectos relacionados à história social
e às políticas públicas de assistência à saúde da criança no Brasil.
A HISTÓRIA SOCIAL DA CRIANÇA
A criança, ao longo dos anos, evidenciou inúmeras transformações e ocupou
diferentes posições na sociedade. Essas transformações a levou a enfrentar
diversas situações de vida e de saúde para, finalmente, depois de muitos anos,
ser considerada sujeito social com características particulares(1).
No século XI, a criança era mundialmente percebida apenas como um adulto em
miniatura, sem características ou particularidades individuais, principalmente
pelo fato de não possuir a linguagem bem desenvolvida. Pelo deslumbramento
religioso configurado na imagem do menino Jesus, em anjos e na figura morta, a
criança passou a ser notada entre os adultos, mas ao mesmo tempo, permaneceu
anexa a estes, envolvida em jogos ou trabalho. Sua imagem, por volta do século
XV, começou a ser retratada por pintores da época, não por fazer parte de um
grupo que necessitasse de atenção específica da sociedade, mas por sua beleza e
graciosidade(1,4).
No Brasil, essa realidade não se mostrou diferente. O período colonial, por
exemplo, foi marcado por muitas barbáries que contribuíram efetivamente para os
altos índices de Mortalidade Infantil (MI), os quais se mantinham próximos a
70%. As crianças eram vistas como um instrumento para as famílias, agentes
passivos, amedrontadas pelos cruéis castigos físicos, permanecendo
constantemente submetidas ao serviço e ao poder paternos, quando não
abandonadas em casas de caridade ou hospitais(5-6).
Como se não bastasse a indiferença e as crueldades a que essas crianças eram
submetidas, as precárias condições sanitárias e sociais colaboraram com o
processo de adoecimento, pois, muitas viviam em um único cômodo, sem arejamento
ou sol, colaborando para o quadro crítico da morbimortalidade infantil(1,4).
Ainda neste período, as mulheres, no processo de parturição, eram assistidas
por parteiras inexperientes e, em seguida, suas crianças eram cuidadas por
escravas, denominadas amas-secas. Estas por sua vez, devido a sua condição na
sociedade da época, se alimentavam mal, apresentavam péssimas condições de
higiene e seus lares eram desprovidos de saneamento básico. Todos esses fatores
possibilitavam a transmissão de doenças e favoreciam o adoecimento das crianças
(1,5).
Outro agravante eram as precárias condições nutricionais e de vestimenta a que
as próprias crianças eram submetidas, sendo que, a alimentação e o vestuário
adulto eram prioritários entre as comunidades da época(1). Com isso, acentua-se
o processo de adoecimento infantil e, quando isso acontecia, eram levadas
tardiamente aos médicos.
No século XVII a criança começou a ocupar espaço no âmbito social, pois é neste
período que as famílias demonstraram sentimentos de carinho e amor ao infante.
A sociedade passou a perceber que a criança representava o centro para as
famílias, inclusive plausível de mudanças físicas e mentais. Nessa mesma época
foram encontrados os primeiros registros da linguagem infantil(1).
Entretanto, mesmo com o reconhecimento e importância do cuidado infantil, o
abandono permaneceu por muito tempo como uma prática aceita pela sociedade. No
século XVIII, entre os motivos de abandono pode-se evidenciar a extrema
pobreza, o nascimento de um filho sem um casamento, o abandono de filhos de
escravas para que estas pudessem ser mães de leite para os filhos das famílias
da elite, adoecimento ou morte dos pais. Nesses casos, as crianças eram
deixadas em um local chamado Roda dos Enjeitados, ou, Rodas dos Expostos, ou,
Rodas. Estes artefatos cilíndricos eram fixados em instituições de caridade ou
hospitais, possibilitando uma abertura interna ou externa quando rodados, onde
as crianças eram deixadas e, o anonimato de quem as deixava era mantido(4-5).
Nesse mesmo período, a cada 100 crianças livres que nasciam no Brasil, cinco
eram abandonadas, ou seja, expostas nas Rodas e um terço eram consideradas
ilegítimas. Desse modo, os ilegítimos e os expostos somavam 40% dos bebês
nascidos vivos. Essa exposição de crianças apresentou uma elevação bastante
grave, principalmente entre os anos de 1850 e 1860(5).
Os sistemas de Rodas pertenciam às instituições caritativas que acolhiam todas
as crianças abandonadas. Estas instituições buscavam de forma precária, cuidá-
las oferecendo-lhes abrigo e alimentação. As crianças menores eram alimentadas
por amas de leite que recebiam uma pequena quantia para amamentar os
desvalidos. Estas crianças eram entregues às amas, que as mantinham em suas
casas, mas também eram desprovidas de instalações e condições de higiene
adequadas. Quando as meninas cresciam, eram devolvidas às instituições
caritativas, para em seguida, serem encaminhadas às Casas de Recolhimento, as
quais preconizavam o cuidado para manter a integridade da moça e os bons
costumes, e ensinar-lhes tarefas domésticas, garantindo-lhes assim, um
casamento. Já os meninos, quando não encaminhados às instituições militares,
geralmente eram deixados à sua própria sorte nas ruas(5).
Em um contexto geral, no período do Brasil Colônia, nem a Igreja ou o Estado
assumiram a responsabilidade pela criança abandonada. Foi a sociedade
organizada ou não, que se preocupou com a sorte destes pequeninos desvalidos e
sem família. Assim, a história da criança abandonada brasileira se dividiu em
três fases, a saber, Caritativa, até meados do século XIX; Filantrópica, até a
década de 1960 e Estado do Bem Estar Social, últimas décadas do século XX, fase
esta em que a criança torna-se sujeito de direito(5).
Outra forma de separação das crianças dos pais aconteceu no século XIX com base
nas concepções higienistas de proteger as crianças de suas próprias famílias,
pois estas necessitavam ser cuidadas, amparadas e educadas por colégios
internos ou internatos, prevenindo os males e evitando as mortes prematuras(6).
As iniciativas para redução da MI apresentaram pouco sucesso neste período,
visto que os índices permaneceram elevados. As famílias pouco entendiam o seu
papel junto à criança. Vagarosamente começaram a compreender que a própria
família deveria ajudar a criança a tornar-se homem ou mulher, pois se constitui
em espaço de sobrevivência e evolução para as crianças, servindo de matriz para
a formação de um adulto(7). Assim, a família é o primeiro grupo social do qual
a criança faz parte, promovendo um ambiente indispensável para prover a
sobrevivência e proteger integralmente a criança. No entanto, esta pode ser
afetada pelo incremento socioeconômico e pelos impactos de interferências
gerados por políticas e ações do Estado. Para tanto, a condição de
vulnerabilidade social - a pobreza, não pode ser considerada a única causa que
leve à perda ou abandono de um filho(8).
Só foi possível identificar mudanças concretas nos índices de MI quando a
sociedade tomou consciência da situação da criança e os serviços públicos se
responsabilizaram pelas mesmas. Assim, teve início o trabalho efetivo de
elaboração de políticas públicas e investimentos na saúde materno-infantil, com
ações educativas de vigilância e preventivas, focadas na criança e na família.
AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE DA CRIANÇA NO BRASIL
A proposta de uma política pública de saúde resulta de processos históricos,
lutas e reinvindicações, na qual a população e os governantes estão envolvidos
e emerge por meio de debates sobre os direitos humanos num contexto global ou
local(9), bem como, para diversos seguimentos como a saúde da criança.
Na década de 1920, as autoridades públicas e privadas demonstraram preocupação
com o adoecimento infantil, deixando de ser apenas preocupação de entidades
caritativas. Especificamente em 1920, a criança, por ser considerada dependente
dos trabalhadores das indústrias, recebia assistência médica de acordo com as
propostas impostas pelos médicos contratados por proprietários destas
indústrias. Nessa época, iniciaram-se discussões a respeito do aleitamento
materno, visto que, se as crianças menores permanecessem doentes, aumentaria o
número de faltas entre trabalhadoras nas indústrias. Para tanto, o estímulo ao
aleitamento materno teve como meta reduzir o adoecimento infantil para que suas
mães cumprissem com a jornada de trabalho proposta(10-12).
Entre 1930 e 1940, iniciaram-se os programas de proteção à maternidade, à
infância e à adolescência, todos submetidos às propostas do Departamento
Nacional da Criança (DNCr). Foram instituídas algumas ações de vigilância e
educativas, envolvendo a mulher em todo ciclo gravídico-puerperal. Não
obstante, as ações instituídas à saúde da criança apresentaram apenas o caráter
curativo e individualizado, sendo desenvolvidas em hospitais privados ou
centros médicos de grandes indústrias(10-11). Essas ações iniciaram com foco
voltado à diminuição do absenteísmo das mães no trabalho e sua evolução ocorreu
atrelada às relações de poder entre as entidades patronais e a administração
pública.
Neste contexto, por muitos anos o Ministério da Educação e o Ministério da
Saúde (MS) permaneceram interligados, desenvolvendo ações e estratégias para a
saúde da criança. Somente em 1953 ocorreu o desmembramento desses ministérios.
Após a divisão, o MS assumiu a responsabilidade do DNCr. Entre os seus
primeiros passos, cabe destacar a destituição do DNCr, em 1969, e a criação, em
1970, da Coordenação de Proteção Materno-Infantil, a qual apresentou como
proposta o planejamento, orientação, coordenação, controle e fiscalização das
ações de proteção à maternidade, à infância e à adolescência(11). Nesse período
os índices de MI encontravam-se altos, pois alcançavam números preocupantes
chegando a 120,7/1000 Nascidos Vivos (NV), sendo que a criança era assistida
apenas em questões pontuais decorrentes das condições agudas de saúde(13).
Na década de 1970, foi implantado o Programa Nacional de Saúde Materno-
Infantil, apresentando como objeto a redução da morbimortalidade entre crianças
e mães. Iniciaram as ações com caráter preventivo, porém, pautadas em métodos
centralizadores que desconsideravam a diversidade regional existente no país
(10-11). No fim dessa década, a Coordenação de Proteção Materno-Infantil passou
a chamar-se Divisão Nacional de Saúde Materno-Infantil (DINSAMI), tornandose
responsável, em nível central, pela assistência à saúde da mulher, da criança e
do adolescente(11). No entanto, não se observaram grandes mudanças nos índices
de MI no fim desta década, pois se contabilizava 113/1000 NV(13).
Com vistas a mudar a assistência à saúde da criança no país e em busca do
cuidado integral, por volta dos anos de 1980, identificou-se como necessidade o
acompanhamento do processo de crescimento e desenvolvimento de todas as
crianças. Assim, o MS elaborou o Programa de Assistência Integral à Saúde da
Mulher e da Criança (PAISMC), no qual os serviços deveriam estar preparados
para resolver todos os problemas que poderiam afetar a saúde materno-infantil.
Para tanto, estabeleceu-se, nesse período, cinco ações básicas para o
atendimento às crianças brasileiras: aleitamento materno e orientação familiar
sobre a alimentação em situação de desmame; estratégias para o controle das
afecções respiratórias agudas; imunização básica; controle efetivo das doenças
diarreicas e, por último, o acompanhamento profissional do crescimento e do
desenvolvimento infantil(10-11).
De forma geral, nas décadas de 1980 e 1990, houve muitas conquistas sociais no
âmbito da saúde, por meio da Constituição Federal de 1988, das Leis Orgânicas
Municipais e, posteriormente, as Leis Orgânicas 8.080 e 8.142 de 1990, as quais
contribuíram profundamente para delinear as transformações no modelo de saúde
brasileiro(12), bem como no que diz respeito à saúde da criança. Esse conjunto
de ações proporcionou um declínio importante da MI, pois nesta época (1990) os
índices alcançaram 47,7/1000 NV(13), contudo, ainda existia um longo caminho a
percorrer.
O sistema de saúde no Brasil, por muitos anos, manteve a saúde da criança
interligada à saúde materna pela Política de Atenção à Saúde Materno-Infantil.
A partir de 1984, o Brasil implantou o Programa de Assistência Integral à Saúde
da Criança (PAISC) como estratégia de enfrentamento às adversidades nas
condições de saúde da população infantil, especificamente no que se refere à
sua sobrevivência. Foi criado com o objetivo de promover a saúde, de forma
integral, priorizando crianças pertencentes a grupos de risco e procurando
qualificar a assistência e aumentar a cobertura dos serviços de saúde. As ações
abrangiam acompanhamento do crescimento e desenvolvimento; incentivo ao
aleitamento materno; controle das doenças diarreicas e das Infecções
Respiratórias Agudas (IRAs) e a imunização(14).
A seguir, em 13 de julho de 1990, foi aprovada a Lei n° 8.069, que dispõe sobre
o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a partir do qual, os mesmos
passaram a adquirir de amplos direitos de proteção de integridade física e
psicológica, lazer e bem-estar, devendo ser amparados pela família, comunidade
e Estado(12).
Com a implantação em 1991, do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS)
e, em 1994 do Programa Saúde da Família (PSF) pelo MS, é que a saúde da criança
foi efetivamente potencializada. O PACS inspirou-se nas vivências de prevenção
de doenças pela aproximação com a comunidade, proporcionando a comunicação e a
orientação como meta para reorganizar os serviços de saúde. Já a implantação do
PSF, inicialmente concebido como um programa de saúde e, posteriormente,
ampliado para uma estratégia de governo, denominada Estratégia Saúde da Família
(ESF), buscou reestruturar os serviços de saúde de cada município, pela
transformação do modelo hegemônico centrado na medicalização para um modelo
focado na promoção da saúde e na participação comunitária. Esta nova forma de
fazer saúde descaracteriza a passividade das pessoas e assume a vinculação
responsável entre uma equipe de saúde interdisciplinar e sua população(15).
Paralelamente, em 1991, foi instituído o Programa de Assistência à Saúde
Perinatal (PROASP), cujo principal objetivo era a atenção perinatal, enquanto
responsável pelos cuidados à unidade mãe-feto e ao recém-nascido. Esta proposta
organizou a assistência perinatal a fim de regionalizar este atendimento;
prover a melhoria da qualidade da assistência ao parto; o incremento da
qualidade da assistência ao recém-nascido; instituindo o alojamento conjunto e
incentivando o aleitamento materno(3).
Com o intuito de garantir o direito da criança à assistência humanizada e com o
objetivo de incentivar, promover e apoiar o aleitamento materno, em 1995, o MS
lançou a Iniciativa Hospital Amigo da Criança (IHAC). Uma das estratégias deste
programa foi assegurar o pagamento de 10% a mais sobre a assistência ao parto
aos Hospitais Amigos da Criança vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS)(16).
O modelo assistencial da prática obstétrica e neonatal, por muito tempo, esteve
centrado no modelo biomédico, hospitalocêntrico e nas práticas curativas. Ainda
na atualidade, tal modelo, que se tornou hegemônico, traz, como consequências,
dicotomias, como o distanciamento entre o saber científico e o saber popular
(4). A IHAC emergiu como meio de integrar a assistência, proporcionando
autonomia para a mãe e bebê, principalmente, no que se refere ao parto
humanizado; aleitamento materno e consequentemente na redução de doenças e MI.
Em decorrência da diversidade regional existente no país, em 1996, foi adotado
principalmente pelas regiões norte e nordeste do Brasil, a Atenção Integrada às
Doenças Prevalentes na Infância (AIDPI), surgindo como estratégia para o
seguimento da atenção à saúde da criança em sintonia com a atenção primária na
perspectiva de uma avaliação dos desencadeantes que afetam a saúde infantil,
almejando a qualidade da assistência. Essa nova abordagem teve origem na
Organização Mundial de Saúde (OMS) e Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF), e apresentava como objetivo a promoção rápida e significativa da
redução da MI no Brasil. Centralizou-se em um conjunto de doenças de maior
prevalência na infância, tratando-a na coletividade(11,17). A AIDPI resultou em
um declínio importante da MI nos estados do norte e nordeste brasileiro,
entretanto, tais estados ainda permaneciam com índices elevados quando
comparados aos demais estados do país(18).
No final da década de 1990, foi estruturado o Programa de Apoio à Implantação
dos Sistemas Estaduais de Referência Hospitalar para Atendimento à Gestante de
Alto Risco, quando ocorreu a organização do atendimento a essa gestante. Foram
destinados recursos específicos para a compra de materiais e equipamentos, bem
como, para o treinamento dos profissionais, com o objetivo de integrar e
melhorar a qualidade da assistência no pré-natal e do vínculo entre o pré-natal
e o parto(3,16).
Em consideração ao grande número de nascimentos prematuros e nascimentos com
baixo peso anualmente em todo mundo, cerca de 20 milhões de crianças e, ao fato
de que as principais causas de mortes infantis serem originárias do período
perinatal e prematuridade (cerca de 40%), o MS lançou, pela Portaria
Ministerial n° 693 de cinco de julho de 2000, a Norma de Atenção Humanizada do
Recém-Nascido de Baixo Peso – o Método Canguru. Esta proposta de atenção
permitiu o maior contato, ou seja, o contato pele a pele do bebê com sua mãe,
de forma crescente e com liberdade de tempo, o qual proporciona uma maior
participação da família nos cuidados com o recém-nascido, obtendo melhores
resultados em sua recuperação(19).
Ainda no início dos anos 2000, foi criado e implantado o Programa Nacional de
Humanização do Pré-Natal e Nascimento, por meio da Portaria nº 569/2000, tendo
como base a garantia do direito à cidadania, portanto, ao acesso, por parte das
gestantes e dos recém-nascidos, à assistência à saúde nos períodos pré-natal,
parto, puerpério e neonatal, tanto na gestação de baixo como de alto risco,
assegurando a integralidade da assistência(3). Destaca-se que em setembro de
2000, o Brasil assumiu, internacionalmente, com mais 189 nações, a meta dos
Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM) em reduzir dois terços da MI até
o ano de 2015(20), ou seja, apresentar em 2015 um índice de MI de 15,9/1000 NV.
Em 2004, o MS lançou a Agenda de Compromissos para a Saúde Integral da Criança
e Redução da Mortalidade Infantil, a qual postulava como diretrizes ações que
tinham o intuito de fortalecer o nascimento saudável, o crescimento e
desenvolvimento, o combate a distúrbios nutricionais e às doenças prevalentes
na infância. Para aprimorar tais ações, o MS propôs linhas de cuidado, as quais
permitiram uma visão ampliada dos usuários em todas as dimensões. Essa forma de
organizar a assistência aproxima e articula os três níveis de atenção à saúde,
primário, secundário e terciário, indicando, proporcionalmente, a construção do
cuidado integral à saúde das crianças(21).
Considerando que a criança demanda atenção integral de forma acolhedora e
contínua, as linhas de cuidado propostas pelo MS organizaram-se para atendê-las
de forma global, assim como às suas famílias, e foram dispostas da seguinte
maneira: Ações da saúde da mulher: atenção humanizada e qualificada; Atenção
humanizada e qualificada à gestante e ao recém-nascido; Triagem neonatal: teste
do pezinho; Incentivo ao aleitamento materno; Incentivo e qualificação do
acompanhamento do crescimento e desenvolvimento; Alimentação saudável e
prevenção do sobrepeso e obesidade infantil; Combate à desnutrição e anemias
carenciais; Imunização; Atenção às doenças prevalentes; Atenção à saúde bucal;
Atenção à saúde mental; Prevenção de acidentes, maus-tratos/violência e
trabalho infantil; Atenção à criança portadora de deficiência(22).
Com o objetivo de estabelecer uma estratégia nacional para promoção, proteção e
apoio ao aleitamento materno, em 2008, o MS lançou a Rede Amamenta Brasil,
adotando como proposta de atuação a educação crítico-reflexiva dos
profissionais de saúde, abrangendo Unidades Básicas de Saúde (UBS), focado na
ESF(23). O estudo(24) realizado no interior de São Paulo, apontou que as UBS
que aderiram a Rede Amamenta Brasil, aumentaram significativamente a
prevalência de aleitamento materno em crianças menores de seis meses.
Em 2009, o MS mediante a Portaria Ministerial nº 2.395/2009 institui a
Estratégia Brasileirinhos e Brasileirinhas Saudáveis, a qual além de priorizar
o cuidado integral à criança no nascimento e à mãe enfatiza a qualidade de vida
das crianças brasileiras. Para isso, devem ser estimuladas suas habilidades
físicas, afetivas, cognitivas e sociais, pela oferta de cuidados ampliados, os
quais seguem além da sobrevivência. Devem-se estabelecer relações por meio de
políticas transversais e ações comuns entre diversos setores ministeriais, como
a educação, o judiciário, a segurança e a ação social(25).
Finalmente, em junho de 2011 foi implantada, pelo MS, a Rede Cegonha, a qual
envolve uma rede de cuidados com vistas a garantir segurança e qualidade
assistencial à mulher em todo seu ciclo reprodutivo, bem como garantir à
criança segurança e o cuidado integral ao nascimento, crescimento e
desenvolvimento. Entre suas ações a Rede Cegonha propõe ampliar o acesso,
acolhimento e melhoria da qualidade do pré-natal; oferta de transporte adequado
no período do pré-natal e no momento do parto; vinculação da gestante à unidade
de referência para assistência ao parto, obtendo-se sempre vaga para a gestante
e para o bebê; realização de parto e nascimento seguros, por práticas
humanizadas e eficientes de atenção; acompanhante no parto, de livre escolha da
mulher; atenção integral à saúde da criança de 0 a 24 meses com qualidade e
resolutividade e, por último, acesso ao planejamento reprodutivo(26).
Esta ação governamental é parte da política das Redes de Atenção à Saúde (RAS)
lançada pela Portaria Ministerial nº 4.279/2010 que visa superar o sistema de
saúde fragmentado vigente; a promoção da integração sistêmica de ações e
serviços de saúde com provisão de atenção contínua, integral, de qualidade,
responsável e humanizada e incrementar o desempenho do sistema, em termos de
acesso, equidade, eficácia clínica e sanitária; e eficiência econômica para
promover a resolutividade nas redes de atenção(27), vislumbra-se então que, as
políticas de saúde da criança têm prioridade na atual conjuntura do sistema de
saúde do país.
As RAS devem ser resolutivas, ou seja, solucionar 85% dos problemas comuns à
saúde, ser coordenadoras de fluxos e contrafluxos de usuários, instrumentos e
informações nas redes, serem responsáveis pela saúde dos usuários adscritos nas
redes e nas equipes de Atenção Primária à Saúde (APS)(15). Um serviço de saúde
organizado em redes, de forma horizontal, como o proposto pelas RAS, com vistas
a resolver os problemas de saúde apresentados pelas crianças desde sua
concepção, engloba inclusive a atenção direcionada à sua família, pois toda
criança pertence a uma família, independente da configuração desta, seja
tradicional ou não, cuja organização é resultante do contexto sociocultural e
econômico que ela está inserida e não apenas biológica do homem.
Inserida na Rede Cegonha, em 2013, o MS instituiu a Estratégia Amamenta e
Alimenta Brasil com o propósito de integrar a Rede Amamenta Brasil e a
Estratégia Nacional para Alimentação Complementar Saudável (ENPACS). Para
tanto, busca intensificar a promoção do aleitamento materno e alimentação
saudável para crianças menores de dois anos e fortalecer as ações assistenciais
a partir da qualificação no processo de trabalho dos profissionais da saúde
(28).
Nesse contexto, a partir das diferentes necessidades e direitos familiares,
equipes de trabalho interdisciplinares devem tomar consciência da
responsabilidade na construção de redes e apoio sociais as famílias, a fim de
estruturá-las para garantir possibilidades de acolher e cuidar de seus
seguimentos e construir o coletivo(8,15). A construção das redes de atenção à
saúde da criança e à saúde familiar estrutura-se e solidifica-se mediante um
conjunto de elementos técnicos, científicos e subjetivos, os quais direcionam
as ações para o cuidado com as pessoas. Essa forma de cuidar deve ainda ser
iniciada no âmbito familiar, mas ao mesmo tempo, deve ser consolidada pelas
ações desenvolvidas nos serviços públicos de saúde.
Ao analisar os índices de MI no Brasil desde a década de 1990, verifica-se que
antes do prazo o país já atingiu uma das metas propostas nos ODM, ou seja, em
2011 apresentou um índice de MI de 16/1000 NV e reduziu dois terços à
mortalidade para crianças menores de cinco anos até 2015(20). Essa queda foi
possível pelas importantes mudanças ocorridas ao longo do século XX, no que
tange à melhoria nas condições de vida da população (pobreza, a educação das
mulheres, a urbanização e a fertilidade), intervenções de outros setores, ou
seja, transferências de renda e saneamento básico, as políticas públicas
implementadas, incluindo a qualificação do acesso da população aos serviços de
saúde, em todas as regiões geográficas) e os avanços do conhecimento em saúde e
seus determinantes(16,18,25-26,29-30).
Todavia, considerando que tanto no Brasil e quanto no mundo, a mortalidade
concentrou-se e ainda concentra-se no período neonatal, principalmente
decorrente de agravos perinatais, tal fato nos leva a perceber que a equidade
proposta nas diretrizes do SUS não está sendo praticada integralmente. Somado
as falhas na equidade percebem-se as diferenças regionais em termos de MI, pois
é possível observar dados bastante diferenciados entre as regiões do Brasil,
caracterizados pela extrema diversidade regional existente e pelas condições
sociais(16,18,25-26,29).
Outra problemática evidenciada, na saúde da criança, relaciona-se às morbidades
e hospitalizações por causas evitáveis no país. Entre as causas predominantes
de morbidades que acometem crianças menores de quatro anos no Brasil, há a
predominância de afecções respiratórias, seguidas por doenças infecciosas ou
parasitárias, doenças do aparelho digestivo, por causas externas e, as doenças
do aparelho geniturinário. Destaca-se que, tais doenças poderiam ser evitadas a
partir de um conjunto de ações sensíveis e resolutivas ainda na APS(31).
Esse cenário de morbidades por causas evitáveis mostra que, estratégias
governamentais implementadas por meio de políticas públicas, poderiam
possibilitar ainda mais a redução nas causas que levam ao adoecimento infantil
mediante ampla cobertura à prevenção de doenças como: imunização; saneamento
básico; ações educativas; cuidado com o meio ambiente; entre outros. Nesse
sentido, a falta de ações de caráter preventivo e de promoção da saúde faz com
que mortes evitáveis continuem acontecendo(18), associada à vulnerabilidade em
que se encontra a APS refletindo assim, no aumento dos índices de
hospitalizações por causas evitáveis(31).
Assim, aponta-se, ainda, como desafios para a redução da morbimortalidade
infantil no Brasil, a redução da alta frequência de cesarianas, os abortos
ilegais e os partos prematuros, além de investimentos para a redução das
desigualdades regionais e socioeconômicas presentes em um país continental(30).
É possível notar que todas as ações direcionadas à saúde da criança requerem
transformações para mudar o panorama descrito. Visto que, não foram observadas
ações efetivas por parte das políticas públicas, principalmente voltadas ao
período perinatal. Mesmo com a redução dos índices de MI, a morbimortalidade
nesta faixa etária ainda é considerada elevada no Brasil e no mundo e está
relacionado às complicações perinatais e à prematuridade. Reconhece-se que mais
de 60% de mortes precoces poderiam ter sido evitadas pelo acesso em tempo
adequado a serviços de saúde de qualidade e resolutivos(18,22). Assim como, a
manutenção da morbidade relacionada à baixa resolutividade de acometimentos à
saúde infantil considerado evitável, também se mantém elevada.
Nessa perspectiva, nota-se a urgência em implantar ou implementar políticas com
vistas a melhorar a assistência ao segmento populacional infantil. Diante deste
universo, percebe-se a não resolutividade dos problemas de saúde por parte dos
serviços públicos no que se refere à saúde da criança, pois deficiências no
acompanhamento ao crescimento e desenvolvimento da criança podem gerar uma
condição crônica de saúde para esta faixa etária, uma vez que, existe um
aumento progressivo da morbimortalidade por condições crônicas de saúde no
Brasil. A ascendente complexidade epidemiológica observada nos serviços de
saúde do país é decorrente de uma agenda não concluída de doenças infecciosas,
desnutrição e dificuldades na saúde reprodutiva, somados ao inextricável
conjunto de doenças crônicas e seus fatores de riscos e ao aumento gradativo
dos problemas de saúde por causas externas(15).
As estratégias governamentais não implementadas em sua totalidade no contexto
da APS, remetem ao modelo assistencial vigente focado na atenção às doenças
agudas e no atendimento às demandas espontâneas. Esse modelo converge a
dificuldades de articulação entre os serviços de saúde e no seguimento a
doenças crônicas, bem como na consideração dos determinantes sociais que
interferem no processo saúde-doença da criança e da população(15).
CONCLUSÃO
A evolução histórica da participação da criança na sociedade, assim como os
cuidados à saúde voltados a essa população, apresentou avanços, tendo como
reflexo a redução da MI e implantação de diversas políticas públicas de saúde.
Entretanto, como historicamente este fato é recente, muitas ações ainda
precisam ser pontuadas, discutidas em profundidade, reorganizadas e pactuadas
para que estes avanços possam realmente refletir as reais necessidades da
população infantil.
A assistência à saúde da criança ainda encontra-se em processo de construção,
juntamente com assistência à saúde em geral, em um movimento de mudança
paradigmática do modelo centrado na patologia e na criança, para um mode-lo de
construção de redes, em prol da inclusão da família e da integralidade do
cuidado. Assim, ainda existem lacunas e limites no cuidado à criança, nas
relações organizacionais e administrativas, no fortalecimento das políticas
públicas estaduais e municipais, no modelo de processo de trabalho e no
processo continuado de educação em saúde.
Os profissionais de saúde envolvidos no cuidado à criança devem desenvolver
suas atividades, tendo por base implementar as políticas públicas vigentes que
garantam a qualidade da atenção à população infantil. Esta atuação inclui,
desde a qualificação do aconselhamento para uma vida sexual saudável com os
adolescentes, destaque para o espaço escolar como campo de promoção da saúde,
passando pelo pré-natal, parto e cuidados imediatos com o recém-nascido,
buscando a diminuição dos agravos no período perinatal.
Para tanto, é preciso investir na qualificação da formação de recursos humanos
para esta área, com ênfase nas políticas públicas, tendo em vista à promoção e
prevenção em saúde e, por conseguinte, à melhor qualidade de vida dessa
população.