Prevalência e fatores associados à sintomatologia depressiva em idosos
residentes no Nordeste do Brasil
Introdução
Entre as várias alterações neuropsiquiátricas que acometem os idosos, a
depressão assume papel de destaque pelo forte impacto no sistema de saúde e sua
alta prevalência nessa população (Spear, 2002; Barcia e Alcântara, 2000).
Embora isso também seja verídico em outras faixas etárias adultas, a depressão
permanece um problema significativo encontrado por profissionais que trabalham
com o idoso (Guccione, 2002). Sobre a prevalência desses quadros em meio aos
idosos, diversos estudos apontam para valores entre 15% e 30%, de acordo com
local de moradia, situação socioeconômica e escala utilizada para a detecção
dos casos (Chattat et al., 2001; Barbosa et al., 2005).
A presença desse quadro em idosos desperta um especial interesse por sua
transcendência para a saúde, capacidade funcional e os distintos aspectos
psicossociais dessa população. Existe, nos estudos atuais, uma grande
controvérsia sobre o desenvolvimento da depressão em populações idosas, pois a
apresentação de seus sinais e sintomas nesse tipo de coletivo resulta na
dificuldade em diferenciar o que podemos considerar envelhecimento normaldos
processos patológicos. Confundir os sintomas de depressão com enfermidades
somáticas e ansiedade é comum em qualquer grupo de idade, mas parece ser um
problema especial em idosos, principalmente nos mais frágeis (Steffens, 2005).
Alguns autores afirmam que a aparente associação entre avanço da idade e
aumento do risco de desenvolvimento da demência e da depressão está relacionada
às mudanças na estrutura do córtex cerebral (Rozenthal et al., 2004). Na
atualidade, a etiologia da depressão é vista de forma ampla e integrada, dentro
de um contexto de inter-relação de numerosos problemas psicológicos, sociais e
físicos que muitas vezes mascaram o diagnóstico e dificultam o tratamento
(Snowdon, 2002; Steffens, 2005).
Além disso, os transtornos depressivos levam a uma importante repercussão sobre
a qualidade de vida dos idosos, razão pela qual sua detecção e seu tratamento
precoce podem contribuir favoravelmente para melhorar suas atitudes diante da
enfermidade e, principalmente, melhorar seu bem-estar (Barbosa et al., 2005).
Em virtude dos fatos, o conhecimento dessa condição e dos fatores a ela
associados constitui um passo essencial no processo de planejamento das ações
de saúde, pois pode contribuir para diminuição de internações hospitalares e
uso de medicamentos, melhora do estado funcional e, por fim, redução dos gastos
sanitários.
Sendo assim, este estudo objetiva analisar que variáveis associam-se à presença
de depressão em idosos que vivem na comunidade, contribuindo, portanto, para o
seu entendimento e favorecendo o planejamento de condutas eficazes para esses
indivíduos.
Métodos
Foi realizado um estudo transversal na cidade de Santa Cruz, localizada a 120km
de Natal, capital do Rio Grande do Norte, Região Nordeste do Brasil, no período
de julho a novembro de 2002. Enviado ao Comitê de Ética em Pesquisa local, o
trabalho foi submetido a avaliação e aprovado, de acordo com o parecer 84/02.
Essa aprovação garantiu o respeito à dignidade humana e o desenvolvimento da
pesquisa dentro dos padrões éticos. Além disso, todos os sujeitos assinaram o
termo de consentimento livre e esclarecido, onde constavam todas as informações
relevantes sobre sua participação no estudo.
A amostra foi composta por 310 idosos com 60 anos ou mais, residentes em
domicílios na zona urbana de Santa Cruz e cadastrados no Sistema de Informações
da Atenção Básica (SIAB), em dezembro de 2001, escolhidos de forma
probabilística aleatória sistemática. Aquele valor correspondeu a 10,09% da
população inicial de 3.070 idosos.
Levando em consideração a heterogeneidade do município e buscando a
representatividade da amostra, foram sorteados os bairros Paraíso, Conjunto
Cônego Monte (CCM) e Centro, que representaram o pior, o intermediário e o
melhor estrato socioeconômico. Por buscar a prevalência de idosos com
depressão, todos os indivíduos selecionados aleatoriamente foram avaliados,
independentemente de sua condição física ou mental. Todas as entrevistas foram
conduzidas nos domicílios dos idosos.
Para a avaliação foi elaborado um questionário multidimensional que constou dos
seguintes itens:
aspectos sociodemográficos: idade, sexo, cor, escolaridade, estado civil,
atividade laboral, atividade nas horas livres e tamanho da família;
aspectos de saúde física: autopercepção de saúde, patologias (diabetes
mellitus, hipertensão arterial sistêmica, doenças pulmonares, fratura de
quadril, reumatismo, déficits visual e auditivo e câncer), medicamentos em uso
contínuo e número de internamentos no último ano;
capacidade funcional: atividades básicas da vida diária (ABVD) pelo índice de
Katz (Katz et al., 1963) e atividades instrumentais da vida diária (AIVD) pelo
índice de Lawton (Lawton e Brody, 1969);
aspectos de saúde mental: na avaliação da presença de sintomatologia
depressiva foi utilizada a Escala de Depressão Geriátrica (GDS-15) (Shah et
al., 1997), com o ponto de corte padrão de cinco pontos para a presença de
sintomatologia depressiva. Na avaliação da função cognitiva foi utilizada a
escala Short Portable Mental Status Questionnaire (SPMSQ), de Pfeiffer (1975).
Após essa etapa, foi feito um estudo-piloto para testagem e calibração do
entrevistador e, em seguida, iniciada a coleta dos dados.
Terminada a coleta, os dados foram introduzidos em um banco de dados do
programa estatístico SPSS (versão 10.0). A análise foi realizada valendo-se de
abordagens de estatística descritiva e outra analítica. Na abordagem descritiva
foi feita a distribuição de freqüências absolutas e relativas para variáveis
categóricas e médias com ± para variáveis contínuas.
Na abordagem analítica foi realizada análise bivariada utilizando o teste do
qui-quadrado de Pearson (c2), para se observarem as possíveis associações
existentes entre as variáveis independentes e as dependentes, com cálculo das
odds ratios(OR) brutas. Em seguida foi realizada análise multivariada, por
regressão logística binária, utilizando análise hierarquizada. Mediante a
estratégia estabelecida de associações entre as dimensões estudadas
(sociodemográficas, de saúde física, capacidade funcional e
neuropsiquiátricas), foram elaborados três modelos explicativos de regressão
logística binária, introduzindo as variáveis em forma de blocos, permanecendo
no modelo subseqüente apenas aquelas que tiveram significância estatística (p<
0,05) no modelo anterior. O critério de saída para todas as variáveis
introduzidas em cada modelo foi p< 0,1. Ao final, chegou-se a um modelo final
de regressão com apenas as variáveis de maior significância estatística. O
método adotado para introdução das variáveis nos modelos foi o backward
stepwise. Considerou-se um nível de significância p< 0,05 e intervalo de
confiança (IC) de 95%, com cálculo das OR ajustadas.
Resultados
Um total de 310 idosos residentes na zona urbana do município de Santa Cruz foi
avaliado, o que correspondeu a 10,09% da população de 3.070 idosos cadastrados
no SIAB do Departamento de Informação e Informática do Sistema Único de Saúde
(SUS), Ministério da Saúde (SIAB/DATASUS/MS) em dezembro de 2001, dos quais 128
(41,3%) pertenceram ao bairro Paraíso, 91 (29,4%) ao CCM e 91 (29,4%) ao
Centro. A idade variou de 60 a 99 anos, com média de 73,7 ± 9,03. A
distribuição das variáveis sociodemográficas, de saúde física e capacidade
funcional pelas zonas estão contidas nas Tabelas_1, 2e 3, respectivamente.
Em relação à presença de sintomatologia depressiva, observou-se uma prevalência
de 25,5% de idosos, sendo o bairro Paraíso o local com maior freqüência. O
déficit cognitivo foi encontrado em 26,8% dos entrevistados (Tabela_4). Para a
realização das análises bivariada e multivariada foram feitos reagrupamentos em
algumas variáveis, com o objetivo de melhor executá-las. Isso ocorreu levando
em conta a distribuição de freqüência e modelos encontrados na literatura.
Também foram retirados da análise todos os sujeitos que não responderam ao
teste (n= 15), uma vez que eram, na sua maioria, pessoas com elevado grau de
déficit cognitivo ou distúrbio de comunicação (auditivo ou da fala).
Entre as variáveis sociodemográficas, apenas a escolaridade (p= 0,038) e a
ocorrência de atividades nas horas livres (p= 0,003) tiveram significância
estatística com a presença de sintomatologia depressiva. Em relação às
variáveis de saúde física, encontrou-se associação com presença de
sintomatologia depressiva, percepção de saúde atual (p< 0,0001), ABVD (p<
0,0001), AIVD (p< 0) e número de internações no último ano (p= 0,025).
Especificamente por patologias, foi encontrada associação com o acidente
vascular cerebral (AVC) (p= 0,031) e as doenças pulmonares (p= 0,021). Por fim,
a função cognitiva (p= 0,001) também teve significância.
Na análise multivariada, entraram no modelo de regressão apenas as variáveis
que tiveram p< 0,05, e permaneceram com significância estatística as variáveis
idade acima de 75 anos (p= 0,046), analfabetismo (p= 0,037), má percepção de
saúde (p< 0,01) e dependência para as AIVD (p= 0,001) (Tabela_5).
Discussão
A alta prevalência de sintomatologia depressiva de 25,5% encontrada no presente
estudo foi similar à referida em outros trabalhos (Vea et al., 1999; Gazalle et
al., 2004) quando considerados os idosos residentes na comunidade, porém um
pouco maior que um recente estudo realizado no Brasil (Barbosa et al., 2005).
Um fato que pode favorecer essa alta prevalência diz respeito ao local de
realização do estudo, uma vez que o município de Santa Cruz caracteriza-se por
ser uma cidade de recursos sociais escassos. Nesse contexto, a depressão pode
resultar da incapacidade de uma pessoa lidar com determinados níveis de tensão
ambiental. Os fatores externos, como rendimentos, suporte social ou recursos
sociais, afetam a capacidade da pessoa em se adaptar aos diversos fatores
tensiogênicos (Rautio et al., 2001).
Esse quadro foi muito bem representado com os idosos residentes no bairro
Paraíso, que apresentaram os piores resultados (32%), demonstrando o importante
impacto do ambiente na apresentação dessa enfermidade, uma vez que essa zona
compreende a área de menor suporte médico e social, com elevados índices de
morbimortalidade, analfabetismo e desemprego. A própria estrutura física do
bairro, com ruas não-pavimentadas, esgotos a céu aberto e casas de taipa
contribui para a formação de um cenário, por si só, deprimente. Apesar da
pequena diferença para as demais regiões da cidade, podemos considerá-lo
suficientemente estruturado para mostrar piores indicadores de saúde e
qualidade de vida (Costa et al., 2005).
Como resultado, a escassez de uma cobertura social estreita a relação com o
envelhecimento acompanhado de doenças, de limitações para o desempenho de
atividades cotidianas e de incapacidades definitivas, além de reduzir a oferta
de programas de educação em saúde (Feliciano et al., 2004; Kawamoto et al.,
2004). Da mesma forma, a baixa renda per capitados idosos, associada a um
suporte médico ineficiente priva-os de uma adequada assistência de saúde, da
compra dos medicamentos ou do pagamento da mensalidade do plano de saúde, com
reflexos diretos no aumento da chance de surgimento de quadro depressivo, uma
vez que a renda é um dos elementos essenciais para a preservação da autonomia e
para a manutenção ou a recuperação da saúde (Costa et al., 2001). Na grande
maioria, são idosos cadastrados nos programas de transferência de renda do
governo federal, cuja média de benefícios é de um salário mínimo.
As variáveis idade acima de 75 anos, analfabetismo, má percepção de saúde e
dependência para AIVD foram as que permaneceram no modelo de regressão
logística, com associação independente para a presença de sintomatologia
depressiva. Esse fato indica a presença de variáveis dos três blocos de fatores
de exposição analisados, o que reforça a íntima dependência da depressão com as
dimensões sociodemográfica, de saúde física e capacidade funcional.
O impacto da idade na ocorrência de depressão pode ser compreendido pela
própria característica do processo de envelhecimento, pois há diminuição na
qualidade e na quantidade de informações necessárias para um controle emocional
eficiente (erosão afetiva). Além disso, com o passar dos anos, eventos
relacionados a perdas, como comprometimento da saúde, morte de familiares,
perda das relações sociais, do trabalho e do prestígio social, diminuição do
sono, perda do prazer nas atividades habituais e sexuais, favorecem o
surgimento daquela patologia (Mehta et al., 2002).
A baixa escolaridade também é considerada um importante fator de risco
associado à depressão (Kulaksizoglu, 2005). A educação é um dos principais
critérios de avaliação do nível socioeconômico de uma população, outra
importante variável, como citado anteriormente. Desta forma, a alta prevalência
de analfabetos em Santa Cruz, em associação ao suporte social inadequado, tende
a agravar os efeitos negativos da doença e ainda dificultar o acesso aos
métodos terapêuticos, sendo um fator de limitação para a sobrevivência e para a
qualidade de vida (Feliciano et al., 2004).
Apesar de sua subjetividade, a percepção de saúde de um indivíduo, ou seja, a
forma como ele se vê em relação ao seu estado geral, incluindo as dimensões
biológica, psíquica e social, associa-se intimamente aos quadros depressivos.
Uma vez que elementos como perda das funções cognitiva, sexual e laboral,
diminuição das relações sociais, sentimento de invalidez, entre outros,
influenciam simultaneamente tanto a percepção de saúde como o surgimento de
depressão, é justificável a associação entre ambas (Costa et al., 2005). Esse
indicador de saúde relaciona-se com sintomas somáticos, principalmente as
enfermidades crônicas e invalidantes, que, ao se agravarem, repercutem
diretamente na falta de motivação, no aparecimento de sentimentos depressivos e
na limitação funcional.
Nas atividades instrumentais, por se tratar de funções que requerem maior
elaboração e coordenação, há maior probabilidade de qualquer alteração mínima
já constituir um fator para o desenvolvimento de alguma deficiência e com isso
gerar um sentimento negativo, que pode levar a um episódio depressivo. O risco
aumentado de depressão nas pessoas idosas com incapacidade torna essencial
identificar os fatores que estão causando a limitação. Apatia, redução do
prazer nas atividades sociais e retardo psicomotor diminuem a capacidade de
execução das AIVD, fazendo com que tarefas aparentemente simples passem a
exigir quantidades excessivas de energia, tornando-se extremamente difíceis
(Steffens et al., 2005).
Dessa forma, as limitações funcionais configuram-se como os primeiros
indicativos de um possível quadro de institucionalização e surgimento de
síndromes geriátricas, entre outras complicações, como a depressão. Além disso,
a visão de uma provável invalidez e o isolamento social podem contribuir para o
surgimento e a persistência desse quadro (Menchetti et al., 2001).
Apesar de algumas limitações, principalmente pelo desenho do estudo, mas
considerando a consistência das associações encontradas, é possível afirmar que
aquelas variáveis são potenciais fatores associados ao aparecimento e ao
agravamento dos quadros depressivos na população idosa. Existe uma ampla gama
de fatores que contribuem para a saúde dos idosos ou os colocam em situações de
risco. Esses determinantes raramente existem separadamente e, por isso mesmo,
poucas vezes se beneficiam de soluções unidimensionais. Assim, é necessária a
colaboração de múltiplos setores e parceiros para atender a fatores de risco
inter-relacionados e salvaguardar aqueles que promovem o envelhecimento ativo.
Em termos de ações de combate a esse mal, as políticas de assistência ao idoso
podem ser orientadas pelos achados de estudos dessa natureza. Mesmo
considerando a idade uma variável imutável, a percepção de saúde, a manutenção
da capacidade funcional e a melhor oferta de programas de alfabetização podem
ser instituídas nas políticas de assistência ao idoso.
Conclusão
As variáveis idade acima de 75 anos, analfabetismo, má percepção de saúde e
dependência para AIVD estiveram associadas de forma independente à presença de
sintomatologia depressiva nos idosos da nossa população. Diante do exposto, a
partir da metodologia empregada e dos resultados obtidos, foi possível alcançar
os objetivos propostos e fazer esclarecimentos pertinentes à saúde dos idosos
do município de Santa Cruz. Em virtude das limitações do estudo, merece ser
considerada a hipótese de uma possível generalização dos resultados a outras
comunidades de mesmo nível socioeconômico.