Mulheres encarceradas em São Paulo: saúde mental e religiosidade
Introdução
Na tradição judaico-cristã é freqüente atribuir à religião um papel determinado
junto aos indivíduos que cometem crimes e foram encarcerados. A religião parece
prestar-se a dar suporte emocional para homens e mulheres presos diante dos
sofrimentos e privações decorrentes dessa situação específica (Oliveira, 1978;
Graham, 1990). Muitos exemplos, encontrados em diferentes países e culturas,
demonstram transformações importantes, decorrentes de conversão ou envolvimento
religioso, nas atitudes de indivíduos que cometeram crimes. Embora esse
fenômeno pareça ser bastante freqüente também no Brasil, poucos estudos
sistemáticos abordaram o tema, sobretudo em mulheres.
Mulheres presidiárias: a população feminina encarcerada
Uma das possíveis conseqüências da escalada da violência em nosso país é o
expressivo crescimento do número de pessoas presas. Segundo o Departamento
Penitenciário Nacional (DEPEN, 2000), entre 1993 e 2000 o número de indivíduos
presos cresceu cerca de 68% no estado de São Paulo e 53% no Brasil. O estado de
São Paulo tinha, em 2002, cerca de 60 mil presos, 3% deles do sexo feminino
(Latin American Research Center, 2002). No Brasil as mulheres representam algo
em torno de 4% da população carcerária (DEPEN, 2000), sendo tal percentual
minoritário encontrado na maior parte dos países (Lemgruber, 1999; Kravitz et
al., 2002; Soares e Ilgenfritz, 2002).
Há várias evidências que indicam uma considerável prevalência de transtornos
mentais entre indivíduos encarcerados (Cardoso et al., 2004; Kravitz et al.,
2004). Jordan et al. (1996) sugerem que entre um terço e a metade da população
carcerária feminina britânica possa apresentar algum tipo de transtorno mental.
Teplin (1996) realizou uma série de estudos sobre a prevalência de transtornos
mentais graves em homens e mulheres presos na cidade de Chicago (EUA). Quando
em comparação com os dados de saúde mental da população geral, a população
carcerária apresentava taxas de transtornos mentais três a quatro vezes
superiores às da população geral, entretanto as prevalências são ainda mais
altas quando se consideram apenas as mulheres presas (excetuando-se a
esquizofrenia). Os transtornos mentais mais encontrados foram depressão, abuso
de substâncias psicoativas e transtorno de estresse pós-traumático.
Aproximadamente 81% das mulheres presas em Chicago apresentaram ao menos um
transtorno psiquiátrico ao longo da vida, de acordo com os critérios
diagnósticos da terceira revisão do Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders (DSM-III) (Teplin, 1996).
Existem ainda poucos estudos sobre a saúde mental da população carcerária
feminina, principalmente no Brasil. Em pesquisa realizada numa penitenciária
feminina em São Paulo, Almeida (1998) encontrou como sintomas mais prevalentes:
insônia, ansiedade, somatização, depressão e irritabilidade. Cerca de 77% das
presas entrevistadas queixaram-se de uma sensação contínua de mal-estar
emocional.
Religiosidade e prisão
A religiosidade ocupa um lugar importante na vida de muitas presidiárias e
altera de alguma forma a pesada rotina da unidade prisional. Diversos grupos
religiosos, de diferentes tradições, fazem seus cultos e estudos doutrinários
com as internas. A oferta de cultos, encontros e celebrações não decorre apenas
de um direito assegurado por lei, que garante ao preso o atendimento religioso
solicitado, mas também da crença generalizada de que a religiosidade e a
espiritualidade podem trazer benefícios psíquicos e sociais para os presos e
contribuírem para a tranqüilidade da unidade carcerária e a reabilitação de
alguns detentos (Oliveira, 1978; Larson et al., 1997; Varella, 2000). A
religiosidade, juntamente com outros fatores como trabalho, estudo,
possibilidade de manutenção dos vínculos familiares, parece contribuir para um
melhor ajustamento do indivíduo à realidade e para a superação de situações
difíceis como a experiência do aprisionamento e da vida numa prisão de
segurança máxima (Almeida, 1998).
O objetivo deste trabalho foi verificar a prevalência de possível transtorno
mental e como a experiência religiosa relaciona-se com tal perfil de saúde
mental numa amostra de mulheres encarceradas.
Métodos
Amostra
Os dados deste trabalho provêm de uma pesquisa original com mulheres presas que
cumpriam pena na Penitenciária Feminina da Capital (PFC). Esse presídio de
segurança máxima está localizado na zona norte da cidade de São Paulo (SP) e
integra o Complexo Penitenciário do Carandiru. Os dados foram levantados entre
março de 2003 e dezembro de 2004.
De um total inicial de 405 pessoas disponíveis, concordaram em participar e
foram inclusas neste estudo 358 mulheres (88,4%) condenadas pela prática de
pelo menos um ato considerado ilegal e passível de pena de reclusão.
Instrumentos
Foi utilizado um questionário geral (QG) de autopreenchimento (com auxílio
posterior à entrevistada) elaborado especificamente para este estudo. Esse
instrumento teve o objetivo de obter informações sobre essa população, nos
seguintes aspectos: a) levantamento de dados sociodemográficos; b)
religiosidade (atual e anterior ao aprisionamento); c) saúde mental; d) perfil
criminal e questões legais. Quanto aos aspectos relacionados à religiosidade, o
QG investigou qual a importância atribuída naquele momento à religiosidade em
sua vida (as internas, para esta questão, optaram por uma das seguintes
alternativas: 1. muito religiosa; 2. religiosa; 3. pouco religiosa; 4. sem
religiosidade); a existência de práticas religiosas anteriores à prisão; a
filiação religiosa anterior à prisão e a freqüência com que participava dos
cultos e celebrações religiosas de seu grupo religioso.
Com relação à religiosidade no período após o aprisionamento foram
questionados: 1. filiação religiosa atual; 2. freqüência atual a esse culto ou
igreja; 3. filiação religiosa atual do grupo familiar (pais, irmãos, marido e
filhos); 4. práticas religiosas atuais e a freqüência com que são efetuadas
(prática da oração ou reza, leitura da Bíblia, e a quem recorre para obter
ajuda espiritual). Perguntou-se ainda, de forma aberta, se a entrevistada havia
vivenciado a experiência da conversão religiosa e, em caso afirmativo,
solicitou-se uma breve descrição.
Com relação à saúde mental, o QG recolheu as seguintes informações: 1. quem
desempenhou as funções parentais; 2. ocorrência ou tentativa de fuga de casa;
3. ocorrência de violência não-sexual durante a infância ou a adolescência; 4.
ocorrência de violência sexual durante a infância ou a adolescência; 5.
comportamentos de auto-agressão (ideação suicida e tentativas de suicídio).
Também foram levantados dados sobre aspectos jurídicos e criminais: 1. data da
prisão (atual); 2. artigos do Código Penal nos quais a presidiária foi
enquadrada; 3. total da pena recebida; 4. tempo já cumprido da pena; 5.
reincidência criminal; 6. motivos existentes para o envolvimento com o crime
praticado pela presidiária.
Para os aspectos referentes à saúde mental foi utilizado o General Health
Questionnaire (GHQ-12), que permite rastrear possíveis transtornos mentais não-
graves e detectar sintomas psicopatológicos (depressivos, ansiosos, somáticos e
inespecíficos). Foi também aplicado o item de transtorno de personalidade anti-
social (TPAS) do Mini-International Neuropsychiatric Interview (MINI).
Procedimentos
A aplicação de ambos os instrumentos foi feita em grupos de dez pessoas nas
dependências da escola da penitenciária. Os grupos foram constituídos pelo
Setor de Saúde, havendo a preocupação de incluir pessoas de diferentes
pavilhões, oficinas e outros setores. Embora não tenha sido possível obter uma
amostra aleatória (por condições inerentes às exigências das autoridades do
presídio), esse procedimento permitiu o contato com os mais variados perfis de
pessoas que formavam a população da PFC naquele momento.
Após a aplicação dos questionários e seu recolhimento, fez-se uma entrevista
individual; o material escrito pelas presas era conferido (devido a respostas
incompletas ou desconexas, dificuldades na leitura do material escrito),
havendo a possibilidade de se levantarem novas informações e se complementarem
outras.
Aspectos éticos
O protocolo deste estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de
Ciências Médicas da UNICAMP.
As detentas foram informadas sobre os objetivos da pesquisa, sendo-lhes
garantido o sigilo sobre as respostas e as informações dadas. Considerando a
quase absoluta falta de autonomia que o sistema carcerário impõe ao indivíduo
preso (Goffman, 1961; Thompson, 1976), enfatizou-se a não-obrigatoriedade da
participação, sendo assegurado que a participação também não traria qualquer
benefício material ou legal. Todas as participantes assinaram um termo de
consentimento livre e esclarecido antes que qualquer procedimento de
investigação fosse iniciado.
Análise estatística
Para a análise estatística dos dados coletados foram feitas análises
descritivas das variáveis categóricas. Na comparação dos escores obtidos no
GHQ-12 com relação às variáveis categóricas foi utilizado o teste qui-quadrado.
Para verificação das variáveis que influenciaram nos escores do GHQ-12
(possível caso x possível não-caso) foi utilizada a análise de regressão
logística multivariada para respostas dicotômicas.
Resultados
Na amostra de 358 presidiárias, a idade média foi 30,7 anos ± 8,5 e a mediana,
29 anos. Essa população é composta em grande parte por mulheres brancas
(48,5%), solteiras (52%) e mães de 2,1 ± 1,7 filhos com mediana de dois filhos.
Quanto ao número de anos de estudo com sucesso, foi encontrado o tempo médio de
5,9 anos ± 2,9 e a mediana de cinco anos. Nasceram no estado de São Paulo 68,5%
da amostra. A Tabela_1apresenta dados sociodemográficos mais específicos da
amostra como estado civil, número de filhos, anos de estudo com sucesso e
profissões exercidas antes do aprisionamento.
Na Tabela_2são apresentados os tipos de crime praticados, especificando-se o
que foi considerado violento, não
violento, relacionado ao tráfico de drogas e combinados. Nessa tabela
apresentam-se também a pena imposta (em anos) e o tempo durante o qual a mulher
está presa.
Em relação à religiosidade, identificou-se que antes do aprisionamento 257
(72%) presas tinham práticas religiosas, 151 (42%) eram evangélicas, 94 (26%)
eram católicas e 95 (26%) não tinham religião. Um terço delas tinha freqüência
assídua a cultos, um terço a tinha irregular e outro terço não freqüentava
reuniões religiosas. Cinqüenta e sete por cento das presas referiram ter tido
uma experiência de conversão religiosa em suas vidas. Quanto à intensidade da
religiosidade no momento, 86% declararam-se muito religiosas ou religiosas.
A Tabela_3mostra os dados de afiliação religiosa das presas no momento atual
(após o aprisionamento) e a comparação entre a afiliação religiosa das presas e
a de suas famílias, permitindo que se percebam as relações entre histórico
familiar e transformações vivenciadas pelas internas depois que foram
encarceradas.
A Tabela_4traz informações sobre a saúde mental das internas, mostrando os
resultados obtidos com o GHQ-12 e informações sobre a prevalência do TPAS.
Na Tabela_5é apresentada a relação entre a intensidade de envolvimento
religioso (como a pessoa se considera em relação à vida religiosa) e o escore
obtido no GHQ-12, que indica se o sujeito é um possível caso de transtorno
mental.
Finalmente, realizaram-se análises de regressão logística bivariada e
multivariada que investigaram todas as variáveis colhidas e a sua influência
sobre os escores do GHQ-12. Nas análises de regressão logística bivariada, as
únicas variáveis que se associaram significativamente a um escore acima de 3 no
GHQ-12 (possível caso) foram: ter perdido o sono ultimamente(odds4,12; IC:
2,39-7,8; p< 0,001), ter menor intensidade do envolvimento religioso(odds2,47;
IC: 1,22-5,01; p< 0,05), ter tido idéias suicidas no passado(odds1,85; IC:
1,15-2,98; p< 0,05) e ter tido uma tentativa de suicídio no passado(odds1,86;
IC: 1,1-3,14; p< 0,05). Também revelaram tendência à significação estatística
as variáveis ter sofrido agressão sexual na infância(odds1,67; IC: 0,97-2,9; p=
0,06) e família não freqüentar a igreja(odds1,79; IC: 0,96-3,34; p = 0,07).
Na regressão logística multivariada apenas se mantiveram no modelo final ter
perdido o sono ultimamente(odds4,44; IC: 2,547,76; p< 0,001) e ter tido uma
tentativa de suicídio no passado(odds 2,12; IC: 1,21-3,71; p < 0,001).
Discussão
Os dados apresentados neste trabalho concordam com a evidência, demonstrada
pelas literaturas nacional e internacional, da importância da religiosidade na
vida de sujeitos encarcerados; no presente trabalho 86% das presas afirmaram
ser muito religiosasou religiosas.
Parece ser consenso entre os autores que estudam a situação carcerária
brasileira que a maior parte dessa população é formada por indivíduos oriundos
principalmente dos segmentos sociais marcados pela exclusão social, política e
econômica (Palma et al., 1996; Lemgruber, 1999). A presente pesquisa encontrou
que grande parte das internas nessa penitenciária procede das camadas menos
favorecidas da sociedade, o que pode ser constatado pela baixa escolaridade,
pelo predomínio de ocupações de baixa qualificação e salários proporcionais,
por históricos de vida marcados pela precariedade material, educacional e
afetiva e por acontecimentos traumáticos como perda precoce do amparo parental,
violência física e sexual, evasão do lar, entre outros.
Quanto à afiliação religiosa, cerca de 56% das internas declarou participar das
igrejas evangélicas, especialmente das neopentecostais que atuam na PFC, como a
Igreja Apostólica Renascer em Cristo (Renascer) e a Igreja Universal do Reino
de Deus (IURD). Esse dado difere bastante do encontrado para a população geral.
De acordo com o Censo 2000 (Jacob et al., ), 15,6% da população brasileira
total declarou-se filiada a igrejas evangélicas.
Pesquisas anteriores haviam revelado que, na população carcerária brasileira,
os percentuais de afiliação a igrejas evangélicas variava entre 25% e 30%
(Oliveira, 1978; Lemgruber, 1999; Latin American Center Research, 2002). Assim,
os dados de 42% (antes da prisão) e de 56% (no momento da pesquisa) de
afiliadas a igrejas evangélicas encontrados no presente trabalho são, de certa
forma, surpreendentemente altos.
Essa diferença talvez possa ser explicada por alguns fatos como dupla afiliação
religiosa (igrejas evangélicas e igreja católica, igrejas evangélicas e grupos
kardecistas, etc.) ou pela vigorosa, crescente e permanente atuação das igrejas
neopentecostais tanto fora (nos segmentos mais pobres e excluídos da sociedade
brasileira) quanto dentro da penitenciária, em especial a IURD, a Renascer
(igreja evangélica mencionada mais vezes durante o período em que a pesquisa
foi feita) e a Comunidade da Graça. Em particular, dentro da penitenciária
feminina de São Paulo, a Renascer tem uma intensa ação social e proselitista.
Para Pierucci e Prandi (1996) as religiões de conversão, notadamente as
neopentecostais, crescem na pobreza e na marginalidade social. Anteriormente
O'Dea (1969) e D'Epinay (1970) apontaram o crescimento da religiosidade
pentecostal entre as classes mais pobres. Entendiam, a partir de uma
perspectiva sociológica, que a adesão às igrejas evangélicas ' especialmente as
pentecostais ' era uma maneira de indivíduos que tinham sido obrigados a
abandonar um tipo de sociedade mais tradicional (rural ou agrária) e se
deslocar para outras áreas (urbanas ou mais modernas) se organizarem e se
adaptarem a uma nova realidade. Berger (1995) também entende a religião como
uma defesa importante contra a anomia sociale também como poderosa força de
reprodução social. Para Rolim (1981) a vinculação do pentecostalismo (clássico)
às camadas populares desprivilegiadasfaz parte da história e da própria
identidade dessa corrente protestante.
Um dado original e mesmo surpreendente deste trabalho foi a constatação de que
o envolvimento com as igrejas evangélicas muitas vezes é anterior ao
aprisionamento, encontrando-se um nú mero significativo de famílias de mulheres
presas que se declaram evangélicas: 49,2% das famílias das entrevistadas são
evangélicas pentecostais, havendo a possibilidade de que diversas presidiárias
tenham sido criadas freqüentando algumas dessas igrejas. Assim, a hipótese
difundida pelo senso comum de que nos bolsões de miséria da sociedade
brasileira a afiliação a igrejas evangélicas protegeriacontra o envolvimento
criminal parece ser questionada pelos dados do presente trabalho. É possível
que nos meios populares de grande adversidade socioeconômica e cultural
ocorram, de fato, negociações simbólicas muito mais complexas do que o aparente
moralismo rígido da religiosidade evangélica faz supor e o senso comum
registra: negociações que integrem a necessidade de religiosidade, valores
flexíveis e mutantes relacionados a normas e transgressão, assim como formas de
constituir a subjetividade e a identidade e se adaptar às contingências da
vida.
Aproximadamente 57% das internas afirmaram ter vivido a experiência da
conversão religiosa. Entretanto existem várias e diferentes interpretações
quanto a natureza, significado e conseqüências do fenômeno, tanto entre os
sociólogos quanto entre teólogos e religiosos. Para James (1995) a conversão
religiosa é uma experiência profunda, intensa e arrebatadora que possibilita a
integração da personalidade, trazendo sentimentos de segurança e bem-estar ao
indivíduo. Segundo Alves (1982), o sujeito que se converte passará a dividir
sua vida em duas metades: antes e depois da conversão. A consciência de pecado
e imperfeição é substituída por sentimentos de renovação, de novidade de vida,
um novo nascimento, segundo a linguagem bíblica.
A título de exemplo, reproduzimos aqui duas falas pertinentes que exemplificam
as teses desses autores:
"Sonho com o dia que eu reencontre o meu Salvador. Sou ingrata com o meu Deus,
meu coração pende aos desejos carnais, então às vezes fico com vergonha de Deus
porque eu não O mereço. Eu me preparei durante meses buscando a conversão
verdadeira, porém depois do batismo eu me rebelei completamente" (GEMF, 31
anos, presa por tráfico de drogas ' Igreja Universal).
"Foi bom [a conversão religiosa], mas como não somos justos e eu sei que sou
muito falha, acabei caindo. Não tenho muito mais o que falar. Caí!" (CEM, 28
anos, presa por tráfico de drogas ' Igreja Universal).
Possível transtorno mental entre as presas
A aplicação do GHQ-12 identificou 95 pessoas com pontuação igual ou acima de 4,
representando 26,6% da amostra. Esse resultado foi próximo (ou um pouco abaixo)
dos mencionados por Almeida Filho (1997) e Costa (2001) para a população
brasileira em geral e substancialmente inferior aos encontrados para as
mulheres presas na Irlanda, em 1999 (WHO, 2000; Kravitz et al., 2002). Nesse
país, em 13 prisões foi utilizado o GHQ-12 (nota de corte 3) numa amostra de
800 pessoas de ambos os sexos. Nas prisões irlandesas estudadas, a aplicação do
GHQ-12 demonstrou que 48% da população masculina e 75% da feminina foram
considerados possíveis casos psiquiátricos. Essas pessoas passaram por
entrevistas psiquiátricas posteriores, tendo sido constatado um nível muito
elevado de ansiedade e depressão entre os entrevistados, conforme indicado pelo
questionário Health in Prisons Project.
Como mencionado anteriormente, Teplin et al. (1996) encontraram que
aproximadamente 80% da população estudada teria desenvolvido ao menos um
sintoma psicopatológico significativo ao longo da vida.
O item de transtorno de personalidade anti-social do MINI evidenciou uma
freqüência de 15,6%. Afreqüência por nós encontrada foi muito inferior às
relatadas por outros autores (Rigonatti, 2003).
Os resultados do presente estudo revelando baixa prevalência de possíveis casos
psiquiátricosdevem ser analisados com cautela. Deve-se considerar que
portadores de transtornos psiquiátricos mais graves não permanecem nas
penitenciárias, sendo transferidos para os hospitais judiciários. Isso é feito
por força de lei e também porque pacientes psiquiátricos podem causar problemas
sérios em um ambiente comumente tenso e agitado. Mas tal procedimento não é
exclusividade do sistema carcerário brasileiro e possivelmente também tem sua
influência (reduzindo as prevalências) nos estudos mencionados.
Também é necessário considerar a possível influência de uma certa cultura
institucionalou ethosda prisão. De acordo com depoimento de psicólogas da
penitenciária e também notado claramente por um dos pesquisadores (PACM), em um
meio violento como o existente na PFC não há espaço ou condições para que as
pessoas demonstrem fragilidade ou se exponham excessivamente. O ethos
penitenciárioparece exigir que as pessoas sejam ou muito fortes e dominadoras
ou extremamente sagazes. E esse ethospoderia ter interferido nas respostas
dadas pelas presidiárias.
No modelo de regressão logística multivariado apenas as variáveis ter perdido o
sono ultimamentee ter tido uma tentativa de suicídio no passadopermaneceram
significativas no modelo final. Esse resultado implica apenas que o sofrimento
atual das mulheres que obtiveram pontuação mais alta no GHQ-12 se relaciona com
as dificuldades presentes ao longo de suas vidas (tentativas de suicídio no
passado). Sendo o sono um dos itens do próprio GHQ
12, o achado é, de fato, redundante.
Comparando o grau de envolvimento das presidiárias com a religiosidade e a
saúde mental, foi encontrada nas análises bivariadas uma associação positiva
para esses itens. Na população pesquisada, as mulheres que se declararam muito
religiosase religiosasapresentaram menos freqüências de casodo que as pessoas
que se declararam pouco religiosas ou sem religião.
Embora esse achado não se tenha mantido no modelo multivariado, pode-se sugerir
esteja na mesma linha de achados da literatura internacional (Larson et al.,
1997; Koenig e Larson, 2001; Dalgalarrondo, 2004) que indicam ser a
religiosidade, de forma geral, um elemento protetor da saúde mental. É possível
que a religiosidade contribua para a recuperação da auto-imagem do indivíduo
preso. No caso específico da PFC, é possível que a adesão a uma nova forma de
religiosidade contribua para a sensação de ter sido perdoado de seus pecados,
deixando de se considerar apenas um criminoso para se transformar em filho de
Deus. Ocorreria um processo culturalmente sancionado de reconstituição da
identidade e de criação de novas perspectivas para a trajetória de vida, pelo
menos para algumas das mulheres estudadas.
A religiosidade também pode representar um sentido para a áspera experiência do
aprisionamento, o que ajudaria a presa a enfrentar o cotidiano de uma
penitenciária.A transcrição a seguir da fala de uma presa objetiva exemplificar
como a religiosidade atuou em sua vida. Ela é solteira, analfabeta e mãe de
três filhos que no momento da entrevista, moravam em uma favela de São Paulo
sob os cuidados de uma amiga. Cumpre observar que a situação dos filhos era
motivo de grande preocupação para a entrevistada. Perguntada sobre como a
religiosidade interferia no seu cotidiano, respondeu da seguinte forma:
"Eu quero ser serva de Jesus. Entrego tudo nas mãos de Deus. Eu não sou
neurótica, nunca briguei aqui. (...) Deus alegra a gente. Mas o lugar é triste,
muito triste, entristece a gente. Peço para tirar uma palavrana Bíblia. E Deus
fala claramente, a gente pede e Ele fala e acalma... Ele coloca a gente num
lugar como este pra gente ver que Ele existe. Isto [a penitenciária] é coisa do
inimigo [Satanás]... Estou mais calma agora, se Jesus fala [promete], eu vou
sair desta vida". (43 anos, presa por tráfico de drogas ' Igreja Universal).
Conclusão
O presente trabalho encontrou uma prevalência relativamente baixa de
transtornos mentais em mulheres encarceradas no Presídio Feminino de São Paulo.
Verificou também possíveis relações positivas entre religiosidade e saúde
mental junto a mulheres presas, concordando em parte com a literatura
existente. Observou alta freqüência de presas afiliadas a igrejas evangélicas,
embora estas circulem entre as diferentes confissões e cultos existentes na
unidade prisional.
É plausível que a conversão religiosa contribua para a reconstrução da auto-
imagem e forneça um sentido para a existência do indivíduo, não só para a sua
situação de encarcerado, mas também para outros aspectos como pobreza e
exclusão social, falta de trabalho, desestruturação familiar, entre outros.
Ao contrário do imaginado pelo senso comum, não foram encontrados dados
sugestivos de que a religiosidade pudesse evitar o envolvimento com a
criminalidade. Assim a suposição de que nos bolsões de pobreza das grandes
cidades brasileiras a presença maciça de igrejas pentecostais e neopentecostais
inibe comportamentos criminosos não foi evidenciada empiricamente por este
trabalho (pois mais de 40% das presas já eram evangélicas antes do
aprisionamento). Foi encontrado um expressivo interesse religioso anterior ao
aprisionamento, questão que mereceria estudos posteriores envolvendo a
população geral e estudos etnográficos nas comunidades.
A questão da saúde mental da população carcerária é relativamente pouco
estudada no Brasil. O tema é de grande importância por estar relacionado com o
crescimento da violência em todo o país, pela importância da religiosidade,
sobretudo nas classes populares, e por serem as presidiárias um dos grupos
minoritários substancialmente negligenciados por estudos científicos e por
ações de reabilitação.