Um modelo para o parecer psiquiátrico no hospital geral
Introdução
A interconsulta psiquiátrica pode ser definida como uma subespecialidade da
psiquiatria que se ocupa de assistência, ensino e pesquisa na interface entre
psiquiatria e medicina (Lipowski, 1986). Em geral ela difere da prática
psiquiátrica no tipo de abordagem ao paciente, no ambiente em que ocorre e pela
intensa interação com outras especialidades (Querques e Stern, 2004). Existem
dois modelos de interconsulta psiquiátrica: a psiquiatria de ligação, em que o
psiquiatra faz parte de um serviço ou departamento como membro da equipe e/ou a
consultoria psiquiátrica, em que o psiquiatra tem uma atuação episódica,
identificando e tratando transtornos psiquiátricos.
Em um serviço de consultoria psiquiátrica, a comunicação entre médicos
freqüentemente é feita através de pedidos de parecer com suas respostas. Logo,
a eficiência desse serviço oscila de acordo com a comunicação escrita entre
médicos, que é uma via de mão dupla (Williams e Wallace, 1974).
Dois estudos mostram a importância do parecer psiquiátrico no tratamento de
pacientes atendidos por serviços médicos. O primeiro (Schnyder et al., 1997)
mostrou que as informações obtidas através dos pareceres psiquiátricos de
pacientes internados em hospitais gerais são freqüentemente transmitidas aos
médicos responsáveis pelo atendimento ambulatorial aos pacientes. Esses dados
estão presentes em até 84% dos boletins de alta, sendo a solicitação de um
parecer (presente em 71,5% dos boletins de alta), o diagnóstico psiquiátrico
(66,7%) e o tratamento proposto (76,2%) as informações mais freqüentemente
relatadas. Outro estudo (Cotton e Ellis, 2001) mostrou que 85% dos clínicos
gerais gostariam de receber os pareceres psiquiátricos sobre seus pacientes em
um formulário estruturado no mesmo dia da avaliação, e que 83% dos clínicos
gostariam que o psiquiatra fizesse a prescrição dos medicamentos psicotrópicos,
caso fossem necessários.
Muitos estudos sobre o processo de consultoria como um todo já foram
realizados, mas ainda há poucos artigos que abordem o documento do parecer
psiquiátrico (Alexander e Block, 2002). A liderança nessa área de pesquisa cabe
aos ingleses (Bicalho et al., 1995) que, devido à organização de seu sistema de
saúde em níveis hierárquicos baseados em referência e contra-referência,
necessitam de um sistema eficiente de comunicação médica.
O parecer psiquiátricoé o registro da história, dos achados do exame e da
impressão do psiquiatra acerca do paciente. São informações que devem ser
reunidas de maneira clara e sucinta. Por outro lado, ele ainda inclui um plano
terapêutico, embora não represente diretamente uma prescrição, e não trata
apenas das preocupações do paciente, mas se refere principalmente às questões
envolvendo o médico assistente e seu paciente (Garrick e Stotland, 1982). Sua
função ultrapassa a condição assistencial, pois o parecer psiquiátrico também
contribui para a educação e o treinamento dos profissionais que o solicitaram
(Alexander e Block, 2002).
Durante a elaboração do parecer devemos levar em consideração que esse
documento é formalmente dirigido ao médico assistente do paciente, mas também
poderá ser lido por toda a equipe encarregada do paciente ' que pode incluir
enfermeiros, assistentes sociais, outros médicos e alunos ', por comissões de
revisão de prontuários e pelo próprio paciente, visto que o prontuário lhe
pertence (Garrick e Stotland, 1982).
Para elaborar o parecer, o psiquiatra deve conversar diretamente com o
profissional que o solicitou, determinar o grau de urgência de sua resposta,
rever o prontuário e os exames complementares, examinar o paciente, obter
informações adicionais da família do paciente ou de outros informantes,
estabelecer hipóteses diagnósticas e realizar os procedimentos necessários ao
diagnóstico diferencial (solicitar exames complementares e obter mais
informações sobre a história do paciente), assim como pode recomendar um
tratamento (Kunkel et al., 2001).
Para Alexander e Bloch (2002), um parecer psiquiátrico deve responder a oito
perguntas fundamentais sobre o paciente:
quem é o paciente?
por que foi solicitado um parecer psiquiátrico para esse paciente?
o que encontramos ao examiná-lo?
como é a família do paciente e seus outros suportes?
o que nós concluímos a partir do exame?
o que recomendamos para o tratamento?
o que recomendamos no acompanhamento psicossocial?
o que aconteceu depois do parecer?
O modelo de parecer que recomendamos responde a essas perguntas em suas sete
seções (cabeçalho, motivo do pedido, anamnese, exame psíquico, exame físico,
diagnóstico e recomendações) (Tabela_1).
Métodos
Foi realizada uma pesquisa bibliográfica nas bases de dados PubMed/Medline e
PsycINFO a fim de localizar artigos que descrevessem modelos de respostas às
solicitações de pareceres psiquiátricos em hospitais gerais. Portanto foram
realizadas pesquisas nas duas bases de dados, utilizando-se os termos general
hospital psychiatry, consultation psychiatry, consultation-liaison psychiatrye
psychiatric consultationcombinados com written report. As bases de dados também
foram pesquisadas através da combinação dos termos do Medical Subject
Headingsinerentes ao assunto. Não foram utilizados limites em relação às datas
de publicação, ao tipo de artigo e à língua em que o artigo foi publicado. Além
da pesquisa nas bases de dados, todos os artigos sobre psiquiatria de ligação
publicados no Jornal Brasileiro de Psiquiatria(indexado no PsycINFO) nos
últimos dez anos foram detalhadamente analisados à procura de contribuições
brasileiras sobre o tema. Também se pesquisou a bibliografia citada pelos
artigos selecionados, a fim de identificar novos artigos relevantes para o
nosso estudo. Os modelos de respostas descritos foram analisados e então se
desenvolveu um novo modelo de parecer.
Resultados
Foram encontrados dois artigos (Garrick e Stotland, 1982; Alexander e Block,
2002) que descreviam modelos de resposta aos pareceres psiquiátricos em
hospitais gerais. Outros cinco artigos (Small e Fawzy, 1988; Carvalho et al.,
1993; Bicalho et al., 1995; Souza, 1995; Cotton e Ellis, 2001) que discutiam
problemas apresentados pelos pareceres em serviços de psiquiatria de ligação
foram analisados para a construção de nosso modelo.
Discussão
Com base nos dados obtidos nos artigos selecionados, foi elaborado um modelo de
parecer estruturado em sete seções (cabeçalho, motivo do pedido, anamnese,
exame psíquico, exame físico, diagnóstico e recomendações) que será discutido
pormenorizadamente a seguir. Foi elaborada uma ficha padronizada para resposta
aos pedidos de parecer (Anexo_1). Nessa ficha, os campos em negrito são os
campos a serem preenchidos e as instruções em itálico são as orientações sobre
o preenchimento, que não devem ser reproduzidas na ficha para uso.
Cabeçalho
O cabeçalho deve permitir a fácil localização do parecer psiquiátrico entre as
diversas anotações existentes no prontuário. Em seguida ao título, deve incluir
uma informação sobre a evolução do processo (como primeira entrevista,
avaliação inicial e evolução), a data e a hora de seu registro, bem como as
fontes de informação consultadas naquela observação (entrevista com o paciente
ou familiares, revisão de prontuário e resultados de exames complementares)
(Garrick e Stotland, 1982).
Motivo do pedido
Os pareceres podem ser solicitados porque o médico assistente percebeu sintomas
de transtornos psiquiátricos em seus pacientes, como humor deprimido e/ou
comportamento agitado ou inadequado. Entretanto, a solicitação de um parecer
pode indicar frustração, medo, culpa ou perturbação do médico assistente
relacionados à sua dificuldade para diagnosticar, tratar, dar alta e/ou
comunicar algo a um paciente (Garrick e Stotland, 1982).
Um psiquiatra de ligação experiente pode traçar hipóteses preliminares ao
receber o pedido de parecer, conhecendo os diversos setores do hospital onde
trabalha e suas particularidades, ou comparando o pedido que tem em mãos com os
recebidos anteriormente, e então identificar os primeiros aspectos que deverá
abordar. Entre os objetivos do psiquiatra, destacam-se o de remover os
impedimentos e o de melhorar o entendimento e a relação entre paciente e médico
assistente para que eles possam progredir com as medidas diagnósticas e
terapêuticas.
Muitas vezes o motivo da solicitação do parecer não está claro no texto. Um
estudo realizado em 1994 num ambulatório de interconsulta de um hospital geral
(Bicalho et al., 1995) constatou que 65,8% dos pedidos de parecer não continham
uma dúvida específica e que 35,36% foram recusados por serem ilegíveis ou não
apresentarem informações fundamentais para o consultor, como a razão específica
do pedido de parecer, os sintomas principais, a medicação e o tratamento aos
quais o paciente está se submetendo, a opinião e o diagnóstico do solicitante.
É fundamental falar diretamente com o profissional que solicitou o parecer para
esclarecer suas dúvidas reais (Alexander e Bloch, 2002). Nessa seção deve-se
indicar o profissional que solicitou o parecer, transcrever trechos do pedido
de parecer, ou tentar traduzir esse pedido em uma frase que esclareça as
demandas do serviço que solicitou o parecer, permitindo que o médico assistente
possa explicar se seus desejos foram correspondidos com nossa avaliação ou se é
necessário abordar outro aspecto do problema.
Anamnese
A história do paciente a ser registrada no parecer é um relato, organizado
cronologicamente, de todos os fatos relacionados diretamente ao problema do
paciente (eventos médicos, sociais e interpessoais). Muitas vezes informações
essenciais são omitidas no registro da história.
Em um estudo realizado em 1988, Small e Fawzy relataram que os seguintes dados
são omitidos com mais freqüência: história familiar de doença psiquiátrica
(60,3%), história de abuso de substâncias (44,9%), estado civil (37,2%), uso
prévio de psicotrópicos (35,9%), tratamento psiquiátrico anterior (26,9%) e
história prévia de transtorno psiquiátrico (24,4%).
Para que não haja omissões no registro da história, recomenda-se que ela seja
divida em seções como identificação (nome do paciente, sexo, cor, naturalidade
e procedência, data de nascimento, escolaridade, profissão, emprego atual,
estado civil e religião); queixa principal e histórico da doença atual
(incluindo a doença motivo do tratamento do paciente, e esclarecendo se essa é
aguda ou crônica e qual o tratamento utilizado); histórias fisiológica,
patológica pregressa, familiar e pessoal sem omitir os meios de suporte
familiar e social do paciente.
O consultor deve considerar cuidadosamente quais informações podem ser
incluídas no parecer e quais devem permanecer em sigilo. Essa discussão não
exime o psiquiatra de registrar informações relevantes, como comportamento
anti-social e transtornos psiquiátricos (Garrick e Stotland, 1982).
O uso da terminologia psiquiátrica é um ponto delicado do trabalho do
consultor, que deve encontrar um meio-termo entre a simplificação excessiva e a
ofuscação técnica. Em geral, como em toda redação, o objetivo é ser tão claro,
direto e conciso quanto possível. Os termos técnicos devem ser empregados
apenas quando necessários, e uma definição sucinta dos mesmos deve ser incluída
no texto. O profissional solicitante do parecer está procurando a opinião de um
especialista que ele possa entender e aplicar.
Outra característica do parecer psiquiátrico é a sua pretensão de esclarecer
outros profissionais e estudantes sobre os aspectos psicossomáticos das doenças
e estimular o entendimento de um paciente em sua singularidade. Uma avaliação
psiquiátrica formal ajuda a atender a esses objetivos, sendo importante
registrar tanto achados positivos quanto negativos. Contudo uma avaliação
abrangente melhora a relação médico/paciente e será a base para a elaboração do
diagnóstico e para as recomendações pertinentes.
Exame psíquico
O exame psíquico freqüentemente é ignorado. Seu registro pelo psiquiatra marca
sua importância como elemento do trabalho médico e demonstra que os
psiquiatras, como outros médicos, baseiam suas conclusões em uma série ordenada
de avaliações.
Os seguintes aspectos devem ser avaliados: aparência, atitude, consciência,
orientação, atenção, memória, inteligência, sensopercepção, fala, pensamento,
humor, afeto, consciência do eu, vontade, pragmatismo, consciência de morbidade
e planos para o futuro. Isso ajuda o consultor a se recordar e orienta a pessoa
que pediu o parecer como organizar seu pensamento sobre o estado mental do
paciente. É importante informar ao profissional que solicitou o parecer a
influência do estado mental do paciente sobre o seu quadro clínico.
Exame físico
O exame físico é um aspecto freqüentemente negligenciado na elaboração dos
pareceres psiquiátricos. Entretanto, ele pode ser de grande importância no
diagnóstico diferencial dos transtornos mentais orgânicos e das manifestações
psiquiátricas de doenças clínicas. O exame neurológico, por exemplo,
freqüentemente é omitido ou realizado de maneira incompleta (Alexander e Block,
2002), porém a avaliação de um serviço de consultoria psiquiátrica em um
hospital geral mostrou que ele foi necessário na avaliação de 24,52% dos
pacientes (Souza, 1995). Além de ser fundamental à elaboração de alguns
diagnósticos, o exame físico é uma maneira de aliviar a ansiedade que o
paciente sente por ser examinado por um psiquiatra (Querques e Stern, 2004).
Diagnóstico
O problema do diagnóstico em psiquiatria é central (Lopes, 1983). Diagnósticos
fazem parte da tradição médica, ajudam a estruturar um conjunto de observações
para o diagnóstico diferencial e o tratamento. Entretanto, "os consultores
psiquiátricos são freqüentemente vistos como intrusos, com conceitos vagos e
estranhos" (Lipowski, 1986). Tal proposição pode ser confirmada por um estudo
(Fortes, 1990) mostrando que psiquiatrias de um mesmo serviço de interconsultas
utilizavam diagnósticos da nona versão da Classificação Internacional de
Doenças (CID-9), do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais III
(DSM-III), diagnósticos sindrômicos e relatos de queixas (nervoso) ou
inespecíficos (poliqueixoso).
A padronização dos diagnósticos visa melhorar o atendimento aos pacientes, com
o reconhecimento e o tratamento dos problemas mentais de forma mais adequada,
permitir estudos epidemiológicos e pesquisas em interconsulta psiquiátrica
(Carvalho et al., 1993).
A utilização de um sistema padronizado de diagnósticos como a CID-10 (OMS,
1996) é uma oportunidade para familiarizar os outros médicos com esse sistema
de classificação, assim como é uma demonstração dos esforços da psiquiatria
para formular diagnósticos mais precisos. Se não for possível fazer um
diagnóstico, essa impossibilidade deve ser claramente explicada.
Recomendações
Essa seção é a única algumas vezes lida. Há dois tipos de recomendações:
aquelas necessárias ao esclarecimento do diagnóstico (exames complementares;
obtenção de detalhes da história, se do prontuário ou de um informante) e as
prescrições, que podem incluir medidas farmacológicas, psicoterapêuticas,
sociais, situacionais e legais. Pode ser necessário que o psiquiatra faça novas
avaliações do paciente para verificar a resposta aos tratamentos prescritos e
sua evolução. Essas visitas também devem ser registradas, seguindo o método
descrito e anotando-se a evolução, as alterações no exame psíquico, no exame
físico e nas recomendações.
O parecer deve ser assinado e a assinatura deve explicitar a função da pessoa
que respondeu ao parecer (se é interno, residente ou supervisor).
Conclusão
Um parecer psiquiátrico no hospital geral é uma ferramenta de grande utilidade
no diagnóstico e no tratamento dos pacientes. Além disso, pode ser uma maneira
de familiarizar médicos de outras especialidades com as características do
diagnóstico e dos tratamentos psiquiátricos. Entretanto, para que o parecer
cumpra essas funções, é necessário que seja escrito de maneira clara e precisa.
A divisão do parecer em seções e o estabelecimento de itens a serem respondidos
em cada uma facilitam a elaboração desse documento e evita falhas e omissões,
tornando-o um instrumento mais eficiente. Mais estudos serão necessários para
avaliar a utilidade desse modelo e sua adaptação a contextos específicos.