Tratamento farmacológico da gagueira: evidências e controvérsias
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Introdução
A gagueira é definida como transtorno de fluência (Canevini, 2002)
caracterizado pela ocorrência freqüente de um ou mais dos seguintes sinais:
repetição de sons, de sílabas ou palavras inteiras, prolongamento de sons,
interjeição, quebra na produção de palavra ' bloqueios ou interrupções (Gordon,
2002). Pode ainda apresentar circunlóquios e palavras produzidas com tensão
física excessiva (Lavid et al., 1999). Há um segundo componente caracterizado
pela ansiedade antecipatória, resultado das situações específicas de fala. Essa
ansiedade desencadeia bloqueios na fala, tremores de lábios e mandíbula,
movimentos palpebrais rápidos, movimentos bruscos de cabeça, braços e tronco
superior (Brady e Ali, 2000).
Estudos recentes relatam que a gagueira é um transtorno motor da fala
caracterizado por falta de sincronismo entre língua, lábios, laringe e músculos
respiratórios (Brin et al., 1994). Esse transtorno é classificado em duas
formas: a gagueira do desenvolvimento e a gagueira adquirida ou neurogênica. A
primeira, mais comum, tem início na infância ou na adolescência (Canevini,
2002) e pode ou não estar associada a transtornos psiquiátricos. Ocorre no
período de desenvolvimento mais significativo da fala e da linguagem e não é
secundária a dano cerebral adquirido (Costa e Kroll, 2000). A alteração pode
desaparecer no período da puberdade, mas também pode persistir até a vida
adulta (Gordon, 2002). A de origem neurogênica é resultado de controle motor
anormal (Canevini, 2002).
A gagueira do desenvolvimento predomina no sexo masculino e tem incidência de
1% a 4% em crianças (Rosenfield, 2000 apudGordon, 2002). Estudo realizado pela
American Psychiatric Association mostrou prevalência de 2% em 1.879 estudantes
universitários (quarta revisão do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais [DSM-IV]).
Até o momento não existe consenso sobre os fatores etiológicos da gagueira.
Fatores psicológicos (Andrews et al., 1983 apudBoldrini, 2003), lesões
encefálicas estruturais (Gordon, 2002), disfunção dopaminérgica (Brin et al.,
1994), condições neurodegenerativas e fatores genéticos têm sido implicados
(Gordon, 2002; Boldrini, 2003). Algumas investigações sobre a
neurofisiopatologia têm sugerido hiperatividade nos sistemas dopaminérgicos nas
regiões relacionadas à linguagem. Drogas que estimulam a liberação de dopamina
podem induzir a ocorrência de gagueira (Lavid et al., 1999). Alguns autores
comparam a gagueira com movimentos involuntários distônicos ' disfonia
espasmódica ', sugerindo a hipótese de o transtorno ser uma forma segmentar ou
focal de ação distônica. Sugere-se também que a gagueira seja reflexo de
dominância lateral anômala ou conexão inter-hemisférica atípica (Nass, 1996). O
papel de fatores genéticos tem sido amplamente reconhecido. A taxa de
concordância de ocorrência de gagueira entre gêmeos monozigóticos e dizigóticos
é de 90% e 20%, respectivamente (Gordon, 2002).
Ainda não há protocolo específico para o tratamento farmacológico da gagueira,
e os ensaios terapêuticos raramente mostram resultados benéficos em longo prazo
(Brin et al., 1994). Este artigo analisa a situação do tratamento farmacológico
da gagueira, discutindo a eficácia de diferentes abordagens baseadas em drogas
psiquiátricas e a explicação para a escolha de cada uma delas, além de
evidenciar a utilização de outros fármacos no tratamento da enfermidade.
Método
Foi realizada uma revisão em literatura médica especializada ' base de dados
Medline ' entre os anos de 1980 e 2005. Foram utilizados os seguintes termos:
stuttering treatment, disfluency, disfluency treatments, botulinum toxin and
stuttering treatment, botulinum toxin and disfluency treatment.Incluíram-se
estudos controlados e não-controlados. Todos os artigos utilizados foram
escritos na língua inglesa. Algumas referências das fontes pesquisadas também
serviram como base para o presente estudo.
Tratamento
Várias drogas têm sido rotineiramente empregadas no tratamento da gagueira
(Tabela), entre as quais destacam-se agentes antipsicóticos, benzodiazepínicos,
inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS) e antidepressivos
tricíclicos.
O citalopram, um ISRS, é citado no tratamento da gagueira como droga que não
deve ser utilizada isoladamente, pois uma minoria apresenta melhora
significativa. Contudo, em estudo de três casos com duração de 20 semanas,
observou-se melhora dos sintomas da gagueira quando a droga (10mg ao dia e 20mg
ao dia) foi utilizada em conjunto com o alprazolan (1mg duas vezes ao dia) e
com a clomipramina (100mg ao dia). Nos três casos foram relatados poucos
efeitos colaterais (Brady e Ali, 2000).
A paroxetina, bloqueador seletivo de recaptação de serotonina, utilizada para
tratar o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), foi relatada em um estudo de
caso tendo a gagueira como fator de co-morbidade. Observou-se melhora tanto do
transtorno psiquiátrico quanto dos sintomas da gagueira depois de quatro meses
de tratamento, sendo utilizada uma dose inicial de 20mg ao dia e, depois, de
30mg ao dia. O estudo não descreveu efeitos colaterais (Murray e Newman, 1997).
São relatados estudos com o uso de drogas antipsicóticas no tratamento da
gagueira em indivíduos sem história de doença psiquiátrica. Uma dessas drogas é
a pimozida, que foi utilizada em ensaio clínico controlado em indivíduos gagos
e sem sintomas psiquiátricos. Esse estudo evidenciou que 50% da amostra
desenvolveu sintomas de depressão, apesar da diminuição dos sintomas da
gagueira (Bloch et al., 1997).
A risperidona causa bloqueio concomitante dos receptores de dopamina D2 dos
núcleos da base e de receptores de serotonina (5-HT2). Um estudo de caso-
controle realizado com 16 indivíduos com gagueira, com administração de 0,5 a
2mg ao dia de risperidona durante seis semanas, mostrou diminuição da gravidade
da gagueira sem causar eventos adversos (Maguire et al., 2000). Os mesmos
autores desenvolveram um ensaio clínico, randomizado, duplo-cego, placebo-
controlado, com 24 pacientes para avaliar a eficácia da olanzapina (dose 2,5
até 5mg/dia) no tratamento da gagueira do desenvolvimento com duração de 20
semanas. A droga mostrou-se significativamente superior ao placebo (Maguire et
al., 2004).
Um ensaio clínico placebo-controlado duplo-cego comparou a utilização de
clomipramina e desipramina ' antidepressivos tricíclicos ' no tratamento da
gagueira em 16 indivíduos durante 12 semanas, utilizando dose máxima de 250mg
ao dia. Os auto-res afirmam a superioridade da primeira sobre a segunda. Doze
pacientes apresentaram melhora com o uso da clomipramina e seis, com o uso da
desipramina. O estudo ainda relaciona o efeito à maior seletividade da droga na
inibição de recaptação de serotonina (Stager et al., 1995).
Em estudo de caso foi utilizado o levetiracetam para o tratamento de crises
epilépticas em paciente com gagueira do desenvolvimento associada. Observaram-
se diminuição da freqüência de crises epilépticas e desaparecimento da gagueira
após 12 semanas de tratamento. Os autores justificam esse fato a partir da
possível ação do levetiracetam no metabolismo em áreas cerebrais relacionadas à
linguagem. Contudo o estudo não revelou a dose utilizada nem se houve
ocorrência de efeitos adversos (Canevini et al., 2002).
A eficácia do divalproato de sódio no tratamento da gagueira adquirida é
relatada em um caso de paciente com crises epiléticas. A droga foi utilizada na
dose de 500mg duas vezes ao dia entre os anos de 1995 e 1999. Seu uso foi
interrompido e retomado em 2001, com seguimento do paciente até o ano de 2002.
Observou-se melhora da gagueira, contudo sem seu desaparecimento completo
durante o uso da medicação. Sedação foi o evento adverso observado (Mulder e
Spierings, 2003).
A clonidina utilizada para o tratamento da gagueira infantil aparece em estudo
do tipo cruzado, duplo-cego com duração de 28 semanas, envolvendo 25
indivíduos, utilizando a dose de 4m/kg ao dia, no qual não se obteve resultado
significante para o tratamento da gagueira (Althaus et al., 1995).
Estudo experimental cruzado envolvendo dez adultos foi desenvolvido durante um
ano com o objetivo de mensurar o efeito do betanecol sobre a gagueira. Foi
administrada a dose de 10mg três vezes ao dia. Não foi encontrada superioridade
dessa droga em relação ao placebo, mas se observou resposta favorável em dois
casos. Foi relatada a ocorrência de alguns efeitos colaterais que, entretanto,
não foram caracterizados (Kampman e Brady, 1993).
Novas perspectivas
Estudos que descrevem a ação dos músculos da fala durante a gagueira (Ludlow,
1990) têm demonstrado aumento de atividade, longos períodos de atividade pré-
movimento e espasmos de musculatura antagonista de laringe, mandíbula e lábios.
Essas características também são encontradas em pacientes com disfonia
espasmódica. Por conta disso, foram desenvolvidos ensaios clínicos com a
utilização de injeções locais de drogas anestésicas e toxina botulínica do tipo
A (BTX-A) na musculatura laríngea para o tratamento da gagueira.
A toxina botulínica é a mais potente neurotoxina biológica conhecida e um
grande instrumento na terapia de muitas doenças. Tem sido utilizada para o
tratamento de estrabismo, distonias e outras desordens de movimento, além do
tratamento da espasticidade. Um número potencial de novas indicações tem
emergido e atraído o interesse da comunidade científica. A droga age em uma ou
mais proteínas neurossecretoras nas terminações nervosas pré-sinápticas,
inibindo a mediação de cálcio para a liberação de acetilcolina na fenda
sináptica. Esse fenômeno resulta em denervação química local e perda da
atividade neuronal (Thant e Tan, 2003).
Estudo envolvendo sete indivíduos gagos foi realizado para avaliar a eficácia
da TBX-A. Os indivíduos foram observados durante o período em que a droga
demonstra efeito, ou seja, quatro meses. Foram aplicadas 10 a 78U de toxina no
músculo tireoaritenóideo (TA) esquerdo para provocar paralisia. Significativa
redução dos sintomas da gagueira foi detectada, contudo apenas quatro
indivíduos repetiram a aplicação. Isso ocorreu devido ao efeito colateral
transitório provocado: dispnéia (Ludlow, 1990).
Em outro estudo, 14 pacientes com gagueira do desenvolvimento de grau severo e
com espasmos adutores que obstruíam o fluxo aéreo glótico foram submetidos a
injeções de 1,25U de TBX-A em cada prega vocal e observados durante 12 semanas.
Os benefícios descritos pelos pacientes foram observados na sexta semana após a
aplicação, mas o efeito do tratamento diminuiu na 12ª semana. Nesse estudo
foram observadas fraqueza da voz e disfagia de grau moderado, bem toleradas
pelos pacientes, sem desenvolvimento de bronquite ou aspiração (Brin et al.,
1994).
Os resultados encontrados nesses estudos podem ser explicados como uma resposta
secundária do sistema nervoso à diminuição de atividade muscular após a
aplicação de TBX-A. O nível de atividade muscular elevado pode levar a
feedbackaumentado no tronco cerebral e, conseqüentemente, exacerbar a
estimulação dos motoneurônios da laringe, provocando um ciclo repetitivo. A
injeção de toxina botulínica reduz o número de fibras que serão ativadas pelo
motoneurônio e, em retorno, reduz o feedbackde hiperativação do motoneurônio
que ocorre no tronco cerebral, criando um efeito de modulação (Ludlow, 1990;
Brin et al., 1994).
Recente estudo de caso envolvendo paciente com gagueira adquirida de grau
severo também demonstrou melhora significativa com a utilização de anestésico.
Lidocaína tópica ' 4cc de 4% ' foi administrada na membrana
transcricotireóidea. Segundo o relato, a solução anestésica se difundiu para os
mecanorreceptores das membranas nas regiões subglótica, glótica e supraglotal.
Depois de 15 minutos, a disfluência foi reduzida em 75%, e a velocidade de fala
foi de 82 sílabas por minuto. Após uma semana, a redução alcançou 90%, e a taxa
de sílaba/minuto foi de 127. Foram feitos três seguimentos durante o período de
um ano. O paciente obteve fluência normal e aumento da velocidade de fala sem
recidiva. Não foram descritos efeitos colaterais. Os autores utilizaram a mesma
justificativa dos estudos com BTX-A, relatando uma quebra do braço do feedback
sensorial (Dworkin et al., 2002).
Considerações sobre os ensaios clínicos envolvendo o tratamento da gagueira
As dificuldades relativas à caracterização da gagueira refletem-se,
conseqüentemente, em uma variedade de propostas de tratamento com o uso de
drogas tanto de ação sistêmica como de ISRS, antipsicóticos, antidepressivos
tricíclicos, anticonvulsivantes, ansiolíticos, agonistas alfa-2 adrenérgicos,
agonistas colinérgicos e drogas de ação tópica (BTX-A e lidocaína). Em alguns
estudos os efeitos sobre a gagueira não foram previstos, como no caso daqueles
realizados utilizando paroxetina (Murray e Newman, 1997), divalproato de sódio
(Mulder e Spierings, 2003) e levetiracetam (Canevini et al., 2002). Isso indica
que nem todos os estudos encontrados sobre o tratamento farmacológico da
gagueira tiveram como fator primordial a melhora dessa condição.
Diferentes medicamentos foram estudados no tratamento da gagueira. O estudo de
caso com maior seguimento (seis anos) foi um com a utilização do divalproato de
sódio (Mulder e Spierrings, 2003); o início do tratamento não foi motivado pela
gagueira, que era secundária ao transtorno de base (crises epilépticas). O
tratamento foi interrompido após quatro anos devido à detecção de deficiência
de piruvato quinase, sendo retomado dois anos mais tarde, apesar de ter ficado
claro no relato que o divalproato foi prescrito novamente por solicitação do
paciente para melhora da gagueira, efeito que havia ocorrido anteriormente. Por
outro lado, o maior período de seguimento de ensaios clínicos (12 meses) não
foi longo o suficiente para avaliação de recidiva. Alguns relatam efeitos
colaterais, como a ocorrência de depressão em indivíduos sem sintomas
psiquiátricos (Bloch et al., 1997). A falta de critério rígido para a
diferenciação entre gagueira do desenvolvimento e gagueira neurogênica, em
grande parte dos estudos envolvendo o tratamento com fármacos, dificulta a
compreensão acerca da eficácia das drogas (Gordon, 2002; Dworkin et al., 2002).
Nos estudos que utilizaram injeções locais de TBX-A observou-se também a
ocorrência de efeitos colaterais (Ludlow, 1990; Brin et al., 1994). A falta de
padronização de dose e sítio de aplicação é uma lacuna que ainda limita a
utilização de BTX-A em larga escala no tratamento de gagueira.
Apesar dos diferentes mecanismos de ação, o resultado final encontrado no
tratamento da gagueira utilizando psicotrópicos, TBX-A ou anestésicos parece
ser o mesmo: a diminuição da atividade muscular. Mas essa hipótese só pode ser
considerada com o desenvolvimento de ensaios clínicos controlados com grandes
amostras. Muitos dos artigos encontrados em literatura científica para o
tratamento da gagueira tiveram como alvo a redução da atividade dopaminérgica.
Esses resultados podem sugerir a importância do sistema dopaminérgico na
fisiopatologia da gagueira, reforçando a hipótese de que há pelo menos um
componente fisiológico na origem dessa alteração.
A maioria das pesquisas relativas ao tratamento farmacológico da gagueira se
restringe aos estudos de casos e ensaios clínicos com pequenas amostras. É
necessária maior produção de ensaios clínicos controlados com amostras mais
significativas.
Conclusão
Não existem evidências suficientes até o momento que justifiquem a utilização
de um tratamento farmacológico específico para a gagueira. Os estudos
apresentados indicam a necessidade de realização de ensaios clínicos e duplo-
cegos controlados com placebo envolvendo casuística maior e tempo de seguimento
prolongado. Ainda são escassos os estudos envolvendo determinadas drogas, o que
dificulta o avanço das pesquisas no controle de efeitos colaterais.